A decisão de os Estados Unidos suspenderem o financiamento à Organização Mundial da Saúde (OMS) em meio à pandemia do novo coronavírus é uma maneira de o presidente Donald Trump tirar o foco de seus erros na gestão dessa crise e poderia até ser considerada um crime contra a humanidade. A avaliação é da pesquisadora Deisy Ventura, professora da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo.
"É uma cortina de fumaça para esconder a catástrofe que foi a resposta americana à pandemia", disse a professora, que coordena a pós-graduação em saúde global na mesma instituição. "Trump é responsável pela morte de milhares de americanos porque tardou a reagir, disseminou informações falsas e admitiu muito tarde a gravidade da pandemia".
Na terça-feira, o presidente disse que o financiamento ficaria suspenso até seu governo analisar a resposta da entidade à pandemia. Ele acusa a OMS de favorecer a China e sonegar informações. Pressionado por não ter minimizado a pandemia no início, Trump vem tentando buscar culpados para pendurar a conta dos mais de 600 mil infectados e quase 30 mil mortos por covid-19 nos EUA.
A decisão foi criticada por governos de países europeus, China, Rússia, por epidemiologistas e cientistas de renome internacional e até pela Organização das Nações Unidas. Em resposta, a OMS lamentou e disse que o momento é de união e solidariedade.
Abaixo, a entrevista completa.
Quais os impactos dessa decisão para o orçamento da Organização Mundial da Saúde - de US$ 5,6 bilhões no biênio 2018-2019?
O financiamento da OMS é um problema há décadas. Existe uma fonte de financiamento que são as contribuições obrigatórias dos Estados-membros, em que cada um aporta um valor estipulado pela Assembleia Mundial da Saúde. Esse valor constitui uma espécie de fundo que a OMS administra e decide como utilizar. Todos os integrantes são obrigados a pagar. Mas esse valor, há algumas décadas, era até 70% do orçamento OMS. Hoje, é de 17%. Já as contribuições voluntárias podem vir de Estados, de financiadores privados, de fundações, da indústria farmacêutica. Elas estão subindo e são direcionadas a programas específicos.
Quais as consequências dessa elevação das contribuições voluntárias?
Essa necessidade de captar recursos faz a OMS trabalhar em setores que não seriam os prioritários. Ela age onde há financiamento. Há um orçamento muito baixo para a missão que a instituição tem - coordenar a ação internacional em matéria de saúde pública - e dentro desse contexto mais de 2/3 são direcionados a demandas dos doadores. São recursos previamente determinados. Significa que a capacidade que a OMS tem de definir é pequena em função de haver poucos recursos dos quais ela mesma pode dispor, sem muita margem de manobra para investimentos.
Então, o financiamento da OMS é um problema há décadas. É claro que esse valor aportado pelos EUA (cerca de US$ 656 milhões em contribuições voluntárias) faz falta ao orçamento de uma entidade que já tem um déficit importante. Mas a OMS não depende dele para existir. E isso abre uma janela de oportunidades para que outros doadores ganhem espaço e outros Estados assumam essa liderança.
Por que Donald Trump anunciou essa interrupção no financiamento?
É uma cortina de fumaça para esconder a catástrofe que tem sido a resposta americana à pandemia de covid-19. É um mecanismo para produzir narrativas que visam alimentar os movimentos extremistas, que funcionam essencialmente a partir da constituição de adversários. O presidente não pode mais atacar a China e, para mobilizar suas bases em plena campanha eleitoral, precisa arranjar um novo adversário, que é fácil de ser caracterizado. A OMS é uma entidade global, com processos complexos, que muita gente não compreende. E ela tem um diretor etíope e pardo. Aos olhos da supremacia branca, com certeza causa algum tipo de ruído ver uma grande autoridade internacional assim.
Quem atacar a OMS neste momento não está falando sério. Não há seriedade em atacar uma organização que reúne dados do mundo inteiro, emite protocolos, recomendações técnicas, faz reuniões e mobiliza especialistas internacionais. Ela é importante para todos os Estados.
Atacar a OMS nesse momento é totalmente irresponsável e leviano. Mas, claro, é difícil aceitar, para quem dizia que faria os 'EUA grande de novo', que não há um sistema de saúde adequado nos Estados Unidos porque o próprio Partido Republicano se opôs às reformas propostas durante o governo de Barack Obama.
Portanto, trata-se de uma estratégia de campanha eleitoral?
Se essa retirada fosse um movimento que todos os financiadores americanos - privados inclusive - fizessem, seria diferente. É mais um erro gravíssimo do governo americano, que fica excluído de uma zona de influência muito importante e dá sequência a um processo que vem se desenvolvendo há alguns anos, particularmente com a ascensão de Trump ao poder. Pelo lado ruim, é uma perda objetiva para a OMS, mas ocorre em um momento em que os EUA lideram uma 'aliança pela família' - com Hungria, Polônia e Brasil, entre outros Estados - para tirar dos documentos os direitos sexuais e reprodutivos e remover a palavra gênero, por exemplo. Reduzir sua importância dentro da OMS faz com que os objetivos dessa aliança conservadora sejam prejudicados.
Figuras importantes no cenário, como o caso de Richard Holton, editor da revista médica Lancet, utilizaram a expressão crime contra a humanidade para definir a conduta do governo de Trump. Nós poderíamos imaginar que reduzir os recursos da OMS durante uma emergência internacional dessa gravidade é um ato que causa intencionalmente grande sofrimento ou afeta gravemente a integridade física, a saúde física ou mental de uma população. Ora, esse é o conceito de crime contra a humanidade que está no Estatuto de Roma, que cria o Tribunal Penal Internacional, um acordo internacional da maior importância datado de 1998 e que o Brasil ratificou em 2002.
Além disso, é enfraquecer todos os estandares científicos no âmbito da OMS, que constitui um acervo de uma riqueza extraordinária e é decisiva para a saúde de todos os países, auxiliando diretamente na resposta concreta dos governos nacionais, em especial dos países mais pobres.
Dá para dizer que a OMS errou?
A OMS não dispõe de poder para punir Estados que não cumprem suas obrigações. E quando ela critica um Estado, ela gera fortes tensões que podem ser contraproducentes. O Trump defende que a OMS invada os Estados e vá procurar nos computadores dos ministérios da Saúde para ver se estão dando informações corretas? É de uma leviandade, de uma irresponsabilidade dizer isso. Quem poderia agir? Uma polícia internacional que iria invadir os países e ver se existem surtos ou não? A OMS fez o que poderia fazer. Transmitiu as informações que recebeu da China. O que a OMS poderia fazer se hoje os EUA estão de joelhos diante da China implorando por máscaras, respiradores e outros insumos?
Uma organização internacional é sempre aquilo que os Estados querem que ela seja. É muito mais fácil criticar do que propor melhorias. Ninguém é obrigado a concordar com tudo que a OMS diz. Com certeza há críticas a se fazer. Mas no momento de uma pandemia? Tem que fazer exatamente o contrário. Se há disfunções, depois podem ser corrigidas de forma construtiva. Na crise do ebola, o Barack Obama decidiu mandar três mil oficiais da Marinha para a África e apoiou a criação de uma missão da ONU. Era uma grande liderança. Agora a gente vê uma atuação absolutamente egoísta que esvazia a capacidade internacional de influência dos EUA.