Os recentes ataques a tiros em Buffalo, Uvalde e Highland Park, nos Estados Unidos, evidenciam uma tendência observada no país por quem monitora a violência armada. O número de ataques cresceu 48% entre 2010 e 2020, último ano disponível no banco de dados do FBI.
No mesmo período, a fabricação de armas nos EUA aumentou 69%, segundo o Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos, e leis de regulação de armas automáticas se mostraram enfraquecidas.
O número de mortes por arma de fogo, compilado também entre 2010 e 2020 pelo Centro de Controle de Doenças (CDC), passou de 31 mil para 45 mil – um aumento de 42%. Esses dados incluem homicídios, suicídios, violência policial e ataques e colocam os EUA como o país com maior índice de violência armada entre as nações de alta renda.
Os dados sobre a produção de armas indicam uma segunda tendência. As armas de maior calibre foram as mais fabricadas, com um salto de 237% para armas com mais de 9mm, sendo que as de .32 tiveram aumento de 113%, ainda segundo o Escritório de Álcool, Tabaco, Armas de Fogo e Explosivos. São justamente essas armas as mais usadas em ataques em massa, como em Uvalde, Highland Park e Buffallo.
Para Lembrar
“A partir de 2017, houve um aumento no consumo de armas nos EUA que é o maior aumento dos últimos 30 anos. E, com isso, a chance de haver uma elevação no número de mortes pelo uso de armas cresce”, sustenta Mariana Kalil, professora na Escola Superior de Guerra. A razão para este aumento, explica ela, é a radicalização do discurso em torno da segurança pública e autodefesa, encabeçado por grupos radicais de direita.
Cultura armamentista
Segundo sondagens do Gallup, a autodefesa é hoje o principal motivo para os americanos comprarem armas, muito acima da caça e do esporte. Em 2021, 88% dos americanos alegavam a defesa para comprar uma arma, em comparação a 67% em 2005 e 65% em 2000.
“O maior motivo que leva as pessoas a quererem comprar uma arma por razões de segurança é porque elas têm uma percepção de perigo”, explica Trevor Burrus, pesquisador do Centro Robert A. Levy para Estudos Constitucionais do Cato Institute, um centro de estudo de viés liberal com sede em Washington.
Segundo ele, mesmo que a violência nos EUA tenha diminuído nos últimos 20 anos, os americanos têm hoje uma percepção de insegurança muito maior que duas décadas atrás. É uma “paranoia” levando à uma corrida armamentista, explica.
“A pandemia criou uma extravagância de vendas de armas nos EUA. Mais americanos compraram armas em 2020 e 2021 do que em qualquer dos anos anteriores registrados. E isso tem a ver com o desconforto da pandemia e a ideia de que as coisas parecem estar ficando muito ruins e, portanto, você pode precisar se defender. Essas duas coisas realmente contribuem para a percepção de insegurança que leva os americanos a comprar armas para autodefesa”, completa Burrus.
Segunda Emenda
Pesquisadores americanos há anos se debruçam no que chamam de ““cultura de armas” no país. A liberdade para possuir uma arma está garantida na Segunda Emenda da Constituição, tornando-se um direito fundamental como a liberdade de ir e vir. Para esses pesquisadores, o marketing da indústria do setor contribui para essa internalização da necessidade de possuir uma arma. Segundo Kalil, soma-se a isso o uso pela extrema direita da percepção de insegurança.
“É uma corrida armamentista pelos grupos da extrema direita, mas que leva os grupos que se sentem ameaçados, como as minorias, a também buscarem armas para autoproteção. Então é uma corrida armamentista generalizada, com base numa perspectiva paranoica”, afirma.
Com mais armas a disposição, sem uma regulamentação dura e um ambiente de radicalização, atiradores veem uma janela de ação, segundo especialistas. Não que a cultura das armas incentive ataques em massa, explica Trevor Burrus, mas a verificação de antecedentes de indivíduos perigosos tem sido falha. Por isso, argumenta o pesquisador, um dos caminhos para impedir atiradores é melhorar as legislações de monitoramento dos riscos.
“Esses ataques tem mais a ver com imagens. Eles compram as chamadas ‘armas de assalto’ por uma questão de imagem, não porque são mais letais, senão utilizariam pistolas. Eles querem imitar os atiradores do passado”.
Para além dos massacres
Mas, apesar de maior apelo midiático, os ataques a tiros são responsáveis por um número muito baixo de mortes frente ao total do país. As estatísticas do CDC mostram que os suicídios são a maior causa de mortes por armas no país, e ainda assim geram muito menos debate que os massacres. Logo em seguida vêm os homicídios.
“Dois terços das mortes por armas de fogo nos Estados Unidos são suicídios e muitas das leis que são propostas visam as mortes por armas no total. Não fazemos nada por suicídios”, argumenta Burrus. Segundo ele, colocar homicídios, suicídios e massacres no mesmo debate atrapalha a criação de políticas públicas. “Uma das coisas que eu defendo é focar mais em suicídios”.
“O tabu da saúde mental é algo que possui um papel fundamental nos dados de mortes por suicídio”, concorda Kalil. “Não se conversa sobre saúde mental na política pública abertamente, em lugar nenhum do mundo.”
Já os homicídios, argumenta Burrus, são impulsionados por outro problema crônico do país muito pouco explorado: a guerra às drogas. “A violência armada está altamente concentrada em cidades, inclusive em lugares onde há leis de armas muito rígidas, como em Chicago, em Baltimore, Filadélfia e no sul. Não se vê um alto nível de violência armada em lugares como Wyoming, Montana ou Idaho.”
O mapa das mortes por armas de fogo fornecido pelo CDC reforça o argumento de Burrus: os homicídios são concentrados em Estados do sul e meio-leste. Por outro lado, os suicídios são muito mais altos nos últimos Estados citados, do meio-oeste, onde as leis de posse e porte de armas são mais liberais.
“A guerra às drogas cria situações massivas de violência nas ruas dessas cidades, como Chicago, porque é assim que gangues criminosas ilegais resolvem disputas. E é essa guerra que está vitimando jovens negros”, afirma.
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As vítimas ainda não foram divulgadas. Foi o ataque mais mortal em uma escola primária nos EUA desde o massacre da Sandy Hook Elementary, Connecticut, em 2012