Atrocidades na Ucrânia possuem raízes profundas no Exército russo


Brutalidade da guerra de Moscou contra os ucranianos assume formas distintas, mas familiares para aqueles que viram os militares russos em ação em outros lugares

Por Anton Troianovski
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Em uma fotografia tirada em Bucha, um subúrbio de Kiev, na Ucrânia, uma mulher está no jardim de uma casa, com uma das mãos cobrindo a boca, num gesto de horror, diante de três cadáveres de civis. Quando Aset Chad viu a foto, começou a tremer, atropelada pelo passado, assolada por uma memória de 22 anos.

Em fevereiro de 2000, ela entrou no jardim de um vizinho, na Chechênia, e se deparou com os corpos de três homens e uma mulher que haviam sido alvo de inúmeros disparos diante a filha dela, de 8 anos. Soldados haviam tomado seu vilarejo e assassinado pelo menos 60 pessoas, estuprado pelo menos 6 mulheres e arrancado dentes de ouro dos mortos, segundo constataram observadores de direitos humanos.

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“Estou tendo uns flashbacks horripilantes”, afirmou Chad, que atualmente vive em Nova York, numa entrevista pelo telefone. “Sei exatamente o que está acontecendo: vejo os mesmos militares, as mesmas táticas que os russos usam desumanizando as pessoas”.

Ira Gavriluk segura seu gato ao caminhar entre os corpos de seu marido, seu irmão e outro homem mortos do lado de fora de sua casa, em Bucha  Foto: Felipe Dana/AP

A brutalidade da guerra de Moscou contra a Ucrânia assume duas formas distintas, familiares para aqueles que viram os militares russos em ação em outros lugares.

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Há a violência programática distribuída pelas bombas e mísseis russos disparados contra civis e alvos militares, destinada a quebrar o moral do inimigo tanto quanto a derrotá-lo. Esses ataques remetem à destruição que a Força Aérea russa infligiu a Grozny, a capital chechena, entre 1999 e 2000, e no bastião rebelde de Alepo, na Síria, em 2016.

E então há a crueldade individual de soldados e unidades, os horrores de Bucha parecem descender diretamente do morticínio de uma geração atrás no vilarejo de Chad, Novye Aldi, no subúrbio de Grozny.

Mortes de civis e crimes cometidos por soldados ocorrem em todas as guerras, incluindo nas combatidas pelos Estados Unidos nas décadas recentes no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque. Nunca foi fácil explicar por que soldados cometem atrocidades ou descrever a maneira como ordens de comandantes, cultura militar, propaganda nacional, frustrações em combate e crueldade individual podem se juntar para produzir tais horrores.

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Na Rússia, porém, essas ações raramente são investigadas ou até mesmo reconhecidas, muito menos punidas. Isso obscurece a fonte dessa brutalidade praticada por soldados: se ela emana da intenção dos líderes militares ou se os comandantes fracassam em controlar suas tropas. A combinação desse elemento com a aparente estratégia de bombardear alvos civis leva muitos observadores a concluir que o governo russo — e, talvez, parte da sociedade russa — aprova de fato o uso de violência contra civis.

Sem punição

Na Ucrânia, pelo que parece, os soldados russos podem continuar a matar civis impunemente, conforme ressaltado pelo fato de que virtualmente nenhum perpetrador de crimes de guerra na Chechênia, onde o Kremlin esmagou um movimento de independência sob o custo de dezenas de milhares de vidas de civis, jamais foi processado judicialmente na Rússia.

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Naquela época, investigadores russos disseram a Chad que as mortes em Novye Aldi podiam ter sido praticadas por chechenos trajando uniformes russos, recordou-se ela. Agora, o Kremlin afirma que qualquer atrocidade na Ucrânia foi ou encenada ou realizada por ucranianos e seus “patrões” ocidentais, enquanto denuncia como nazista qualquer um que resista contra o avanço russo.

Muitos russos acreditam nessas mentiras, enquanto aos que não acreditam resta o desgosto de ver crimes de guerra como esses sendo praticados em seu nome.

A violência continua um lugar-comum entre as Forças Armadas russas, em que superiores com frequência abusam de militares de graduação mais baixa. Apesar de duas décadas de tentativas de tornar o Exército uma força mais profissional, a corporação jamais desenvolveu um escalão forte e intermediário de suboficiais que fazem a ponte entre os comandantes e os militares de graduação mais baixa, parecido com o que existe nas Forças Armadas americanas. Em 2019, um conscrito que servia na Sibéria abriu fogo e matou oito colegas de base e posteriormente afirmou que tinha realizado o massacre porque os outros soldados fizeram de sua vida um “inferno”.

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Especialistas afirmam que a intensidade dos trotes nas forças militares russas baixou em comparação ao início da década de 2000, quando trotes matavam dezenas de conscritos anualmente. Segundo analistas, porém, a ordem em muitas unidades ainda é mantida por meio de sistemas informais similares aos das abusivas hierarquias nas prisões russas.

Para Serguei Krivenko, que lidera um grupo de defesa de direitos que provê assistência jurídica a militares russos, essa violência, aliada a uma falta de supervisão independente, aumentam a possibilidade da ocorrência de crimes de guerra. Soldados russos são capazes praticar contra seus compatriotas o mesmo tipo de crueldade que praticam contra os ucranianos, afirmou ele.

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“Este é o estado do Exército russo: de impunidade, agressão e violência interna, que se expressam nessas condições”, disse Krivenko em entrevista pelo telefone. “Se houvesse uma insurreição em Voronezh” — cidade do oeste da Rússia — “e o Exército fosse acionado, os soldados se comportariam exatamente da mesma maneira”.

Mas os crimes na Ucrânia também podem emanar dos anos de propaganda do Kremlin desumanizando os ucranianos, que os soldados russos são obrigados a assistir. Conscritos da Rússia, segundo mostra uma mensagem no website do Ministério da Defesa do país, são obrigados a assistir “programas de televisão informativos” das 21h às 21h40 todos os dias, exceto aos domingos. A mensagem lhes diz que eles estão combatendo “nazistas” — como seus ancestrais fizeram na 2.ª Guerra — e está sendo transmitida a todas as Forças Armadas, mostram reportagens russas.

‘Traição’

Essa propaganda também preparou os soldados russos para não esperar muita resistência à invasão — afinal, segundo a narrativa do Kremlin, o povo da Ucrânia estava subjugado pelo Ocidente e esperava ser libertado pelos seus irmãos russos.

Os ucranianos reagiram lutando, mesmo depois que Putin os chamou de parte de “uma nação” conformada com os russos num ensaio publicado no ano passado, que o Ministério da Defesa tornou leitura obrigatória para seus soldados. A feroz resistência de um povo considerado parte de outro contribuiu para uma noção de que os ucranianos são piores do que um adversário típico de batalha, afirmou Mark Galeotti, que estuda assuntos de segurança russos.

“O fato de os ucranianos estarem pegando em armas contra os russos engendra uma noção de que os ucranianos não são apenas inimigos, são também traidores”, afirmou ele. E traição, afirmou Putin, “é o mais grave dos crimes”.

De certo modo, a violência dos militares russos contra os civis é uma característica, não uma anomalia. Na Síria, a Rússia bombardeou hospitais para esmagar os últimos bolsões de resistência contra o presidente Bashar Assad, numa “abordagem brutalmente pragmática em relação à guerra” que possui uma lógica “própria e abominável”, afirmou Galeotti. Foi um eco da destruição de Grozny, entre 1999 e 2000, pela Força Aérea russa e um prelúdio ao primeiro cerco da cidade portuária de Mariupol, na atual invasão à Ucrânia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Em uma fotografia tirada em Bucha, um subúrbio de Kiev, na Ucrânia, uma mulher está no jardim de uma casa, com uma das mãos cobrindo a boca, num gesto de horror, diante de três cadáveres de civis. Quando Aset Chad viu a foto, começou a tremer, atropelada pelo passado, assolada por uma memória de 22 anos.

Em fevereiro de 2000, ela entrou no jardim de um vizinho, na Chechênia, e se deparou com os corpos de três homens e uma mulher que haviam sido alvo de inúmeros disparos diante a filha dela, de 8 anos. Soldados haviam tomado seu vilarejo e assassinado pelo menos 60 pessoas, estuprado pelo menos 6 mulheres e arrancado dentes de ouro dos mortos, segundo constataram observadores de direitos humanos.

“Estou tendo uns flashbacks horripilantes”, afirmou Chad, que atualmente vive em Nova York, numa entrevista pelo telefone. “Sei exatamente o que está acontecendo: vejo os mesmos militares, as mesmas táticas que os russos usam desumanizando as pessoas”.

Ira Gavriluk segura seu gato ao caminhar entre os corpos de seu marido, seu irmão e outro homem mortos do lado de fora de sua casa, em Bucha  Foto: Felipe Dana/AP

A brutalidade da guerra de Moscou contra a Ucrânia assume duas formas distintas, familiares para aqueles que viram os militares russos em ação em outros lugares.

Há a violência programática distribuída pelas bombas e mísseis russos disparados contra civis e alvos militares, destinada a quebrar o moral do inimigo tanto quanto a derrotá-lo. Esses ataques remetem à destruição que a Força Aérea russa infligiu a Grozny, a capital chechena, entre 1999 e 2000, e no bastião rebelde de Alepo, na Síria, em 2016.

E então há a crueldade individual de soldados e unidades, os horrores de Bucha parecem descender diretamente do morticínio de uma geração atrás no vilarejo de Chad, Novye Aldi, no subúrbio de Grozny.

Mortes de civis e crimes cometidos por soldados ocorrem em todas as guerras, incluindo nas combatidas pelos Estados Unidos nas décadas recentes no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque. Nunca foi fácil explicar por que soldados cometem atrocidades ou descrever a maneira como ordens de comandantes, cultura militar, propaganda nacional, frustrações em combate e crueldade individual podem se juntar para produzir tais horrores.

Na Rússia, porém, essas ações raramente são investigadas ou até mesmo reconhecidas, muito menos punidas. Isso obscurece a fonte dessa brutalidade praticada por soldados: se ela emana da intenção dos líderes militares ou se os comandantes fracassam em controlar suas tropas. A combinação desse elemento com a aparente estratégia de bombardear alvos civis leva muitos observadores a concluir que o governo russo — e, talvez, parte da sociedade russa — aprova de fato o uso de violência contra civis.

Sem punição

Na Ucrânia, pelo que parece, os soldados russos podem continuar a matar civis impunemente, conforme ressaltado pelo fato de que virtualmente nenhum perpetrador de crimes de guerra na Chechênia, onde o Kremlin esmagou um movimento de independência sob o custo de dezenas de milhares de vidas de civis, jamais foi processado judicialmente na Rússia.

Naquela época, investigadores russos disseram a Chad que as mortes em Novye Aldi podiam ter sido praticadas por chechenos trajando uniformes russos, recordou-se ela. Agora, o Kremlin afirma que qualquer atrocidade na Ucrânia foi ou encenada ou realizada por ucranianos e seus “patrões” ocidentais, enquanto denuncia como nazista qualquer um que resista contra o avanço russo.

Muitos russos acreditam nessas mentiras, enquanto aos que não acreditam resta o desgosto de ver crimes de guerra como esses sendo praticados em seu nome.

A violência continua um lugar-comum entre as Forças Armadas russas, em que superiores com frequência abusam de militares de graduação mais baixa. Apesar de duas décadas de tentativas de tornar o Exército uma força mais profissional, a corporação jamais desenvolveu um escalão forte e intermediário de suboficiais que fazem a ponte entre os comandantes e os militares de graduação mais baixa, parecido com o que existe nas Forças Armadas americanas. Em 2019, um conscrito que servia na Sibéria abriu fogo e matou oito colegas de base e posteriormente afirmou que tinha realizado o massacre porque os outros soldados fizeram de sua vida um “inferno”.

Especialistas afirmam que a intensidade dos trotes nas forças militares russas baixou em comparação ao início da década de 2000, quando trotes matavam dezenas de conscritos anualmente. Segundo analistas, porém, a ordem em muitas unidades ainda é mantida por meio de sistemas informais similares aos das abusivas hierarquias nas prisões russas.

Para Serguei Krivenko, que lidera um grupo de defesa de direitos que provê assistência jurídica a militares russos, essa violência, aliada a uma falta de supervisão independente, aumentam a possibilidade da ocorrência de crimes de guerra. Soldados russos são capazes praticar contra seus compatriotas o mesmo tipo de crueldade que praticam contra os ucranianos, afirmou ele.

“Este é o estado do Exército russo: de impunidade, agressão e violência interna, que se expressam nessas condições”, disse Krivenko em entrevista pelo telefone. “Se houvesse uma insurreição em Voronezh” — cidade do oeste da Rússia — “e o Exército fosse acionado, os soldados se comportariam exatamente da mesma maneira”.

Mas os crimes na Ucrânia também podem emanar dos anos de propaganda do Kremlin desumanizando os ucranianos, que os soldados russos são obrigados a assistir. Conscritos da Rússia, segundo mostra uma mensagem no website do Ministério da Defesa do país, são obrigados a assistir “programas de televisão informativos” das 21h às 21h40 todos os dias, exceto aos domingos. A mensagem lhes diz que eles estão combatendo “nazistas” — como seus ancestrais fizeram na 2.ª Guerra — e está sendo transmitida a todas as Forças Armadas, mostram reportagens russas.

‘Traição’

Essa propaganda também preparou os soldados russos para não esperar muita resistência à invasão — afinal, segundo a narrativa do Kremlin, o povo da Ucrânia estava subjugado pelo Ocidente e esperava ser libertado pelos seus irmãos russos.

Os ucranianos reagiram lutando, mesmo depois que Putin os chamou de parte de “uma nação” conformada com os russos num ensaio publicado no ano passado, que o Ministério da Defesa tornou leitura obrigatória para seus soldados. A feroz resistência de um povo considerado parte de outro contribuiu para uma noção de que os ucranianos são piores do que um adversário típico de batalha, afirmou Mark Galeotti, que estuda assuntos de segurança russos.

“O fato de os ucranianos estarem pegando em armas contra os russos engendra uma noção de que os ucranianos não são apenas inimigos, são também traidores”, afirmou ele. E traição, afirmou Putin, “é o mais grave dos crimes”.

De certo modo, a violência dos militares russos contra os civis é uma característica, não uma anomalia. Na Síria, a Rússia bombardeou hospitais para esmagar os últimos bolsões de resistência contra o presidente Bashar Assad, numa “abordagem brutalmente pragmática em relação à guerra” que possui uma lógica “própria e abominável”, afirmou Galeotti. Foi um eco da destruição de Grozny, entre 1999 e 2000, pela Força Aérea russa e um prelúdio ao primeiro cerco da cidade portuária de Mariupol, na atual invasão à Ucrânia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

THE NEW YORK TIMES - Em uma fotografia tirada em Bucha, um subúrbio de Kiev, na Ucrânia, uma mulher está no jardim de uma casa, com uma das mãos cobrindo a boca, num gesto de horror, diante de três cadáveres de civis. Quando Aset Chad viu a foto, começou a tremer, atropelada pelo passado, assolada por uma memória de 22 anos.

Em fevereiro de 2000, ela entrou no jardim de um vizinho, na Chechênia, e se deparou com os corpos de três homens e uma mulher que haviam sido alvo de inúmeros disparos diante a filha dela, de 8 anos. Soldados haviam tomado seu vilarejo e assassinado pelo menos 60 pessoas, estuprado pelo menos 6 mulheres e arrancado dentes de ouro dos mortos, segundo constataram observadores de direitos humanos.

“Estou tendo uns flashbacks horripilantes”, afirmou Chad, que atualmente vive em Nova York, numa entrevista pelo telefone. “Sei exatamente o que está acontecendo: vejo os mesmos militares, as mesmas táticas que os russos usam desumanizando as pessoas”.

Ira Gavriluk segura seu gato ao caminhar entre os corpos de seu marido, seu irmão e outro homem mortos do lado de fora de sua casa, em Bucha  Foto: Felipe Dana/AP

A brutalidade da guerra de Moscou contra a Ucrânia assume duas formas distintas, familiares para aqueles que viram os militares russos em ação em outros lugares.

Há a violência programática distribuída pelas bombas e mísseis russos disparados contra civis e alvos militares, destinada a quebrar o moral do inimigo tanto quanto a derrotá-lo. Esses ataques remetem à destruição que a Força Aérea russa infligiu a Grozny, a capital chechena, entre 1999 e 2000, e no bastião rebelde de Alepo, na Síria, em 2016.

E então há a crueldade individual de soldados e unidades, os horrores de Bucha parecem descender diretamente do morticínio de uma geração atrás no vilarejo de Chad, Novye Aldi, no subúrbio de Grozny.

Mortes de civis e crimes cometidos por soldados ocorrem em todas as guerras, incluindo nas combatidas pelos Estados Unidos nas décadas recentes no Vietnã, no Afeganistão e no Iraque. Nunca foi fácil explicar por que soldados cometem atrocidades ou descrever a maneira como ordens de comandantes, cultura militar, propaganda nacional, frustrações em combate e crueldade individual podem se juntar para produzir tais horrores.

Na Rússia, porém, essas ações raramente são investigadas ou até mesmo reconhecidas, muito menos punidas. Isso obscurece a fonte dessa brutalidade praticada por soldados: se ela emana da intenção dos líderes militares ou se os comandantes fracassam em controlar suas tropas. A combinação desse elemento com a aparente estratégia de bombardear alvos civis leva muitos observadores a concluir que o governo russo — e, talvez, parte da sociedade russa — aprova de fato o uso de violência contra civis.

Sem punição

Na Ucrânia, pelo que parece, os soldados russos podem continuar a matar civis impunemente, conforme ressaltado pelo fato de que virtualmente nenhum perpetrador de crimes de guerra na Chechênia, onde o Kremlin esmagou um movimento de independência sob o custo de dezenas de milhares de vidas de civis, jamais foi processado judicialmente na Rússia.

Naquela época, investigadores russos disseram a Chad que as mortes em Novye Aldi podiam ter sido praticadas por chechenos trajando uniformes russos, recordou-se ela. Agora, o Kremlin afirma que qualquer atrocidade na Ucrânia foi ou encenada ou realizada por ucranianos e seus “patrões” ocidentais, enquanto denuncia como nazista qualquer um que resista contra o avanço russo.

Muitos russos acreditam nessas mentiras, enquanto aos que não acreditam resta o desgosto de ver crimes de guerra como esses sendo praticados em seu nome.

A violência continua um lugar-comum entre as Forças Armadas russas, em que superiores com frequência abusam de militares de graduação mais baixa. Apesar de duas décadas de tentativas de tornar o Exército uma força mais profissional, a corporação jamais desenvolveu um escalão forte e intermediário de suboficiais que fazem a ponte entre os comandantes e os militares de graduação mais baixa, parecido com o que existe nas Forças Armadas americanas. Em 2019, um conscrito que servia na Sibéria abriu fogo e matou oito colegas de base e posteriormente afirmou que tinha realizado o massacre porque os outros soldados fizeram de sua vida um “inferno”.

Especialistas afirmam que a intensidade dos trotes nas forças militares russas baixou em comparação ao início da década de 2000, quando trotes matavam dezenas de conscritos anualmente. Segundo analistas, porém, a ordem em muitas unidades ainda é mantida por meio de sistemas informais similares aos das abusivas hierarquias nas prisões russas.

Para Serguei Krivenko, que lidera um grupo de defesa de direitos que provê assistência jurídica a militares russos, essa violência, aliada a uma falta de supervisão independente, aumentam a possibilidade da ocorrência de crimes de guerra. Soldados russos são capazes praticar contra seus compatriotas o mesmo tipo de crueldade que praticam contra os ucranianos, afirmou ele.

“Este é o estado do Exército russo: de impunidade, agressão e violência interna, que se expressam nessas condições”, disse Krivenko em entrevista pelo telefone. “Se houvesse uma insurreição em Voronezh” — cidade do oeste da Rússia — “e o Exército fosse acionado, os soldados se comportariam exatamente da mesma maneira”.

Mas os crimes na Ucrânia também podem emanar dos anos de propaganda do Kremlin desumanizando os ucranianos, que os soldados russos são obrigados a assistir. Conscritos da Rússia, segundo mostra uma mensagem no website do Ministério da Defesa do país, são obrigados a assistir “programas de televisão informativos” das 21h às 21h40 todos os dias, exceto aos domingos. A mensagem lhes diz que eles estão combatendo “nazistas” — como seus ancestrais fizeram na 2.ª Guerra — e está sendo transmitida a todas as Forças Armadas, mostram reportagens russas.

‘Traição’

Essa propaganda também preparou os soldados russos para não esperar muita resistência à invasão — afinal, segundo a narrativa do Kremlin, o povo da Ucrânia estava subjugado pelo Ocidente e esperava ser libertado pelos seus irmãos russos.

Os ucranianos reagiram lutando, mesmo depois que Putin os chamou de parte de “uma nação” conformada com os russos num ensaio publicado no ano passado, que o Ministério da Defesa tornou leitura obrigatória para seus soldados. A feroz resistência de um povo considerado parte de outro contribuiu para uma noção de que os ucranianos são piores do que um adversário típico de batalha, afirmou Mark Galeotti, que estuda assuntos de segurança russos.

“O fato de os ucranianos estarem pegando em armas contra os russos engendra uma noção de que os ucranianos não são apenas inimigos, são também traidores”, afirmou ele. E traição, afirmou Putin, “é o mais grave dos crimes”.

De certo modo, a violência dos militares russos contra os civis é uma característica, não uma anomalia. Na Síria, a Rússia bombardeou hospitais para esmagar os últimos bolsões de resistência contra o presidente Bashar Assad, numa “abordagem brutalmente pragmática em relação à guerra” que possui uma lógica “própria e abominável”, afirmou Galeotti. Foi um eco da destruição de Grozny, entre 1999 e 2000, pela Força Aérea russa e um prelúdio ao primeiro cerco da cidade portuária de Mariupol, na atual invasão à Ucrânia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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