THE NEW YORK TIMES – Uma série de entrevistas gravadas quando o nazista Adolf Eichmann ainda vivia escondido na Argentina e mantidas por décadas no arquivo do governo alemão revelam as confissões orgulhosas do criminoso de guerra em sua própria voz.
Horas de antigas gravações de áudio, que foram negadas aos procuradores israelenses na época do julgamento de Eichmann, forneceram a base para a série intitulada “The Devil’s Confession: The Lost Eichmann Tapes” (Confissões do diabo: as gravações perdidas de Eichmann, em tradução livre), que gerou um atento interesse em Israel depois de ser veiculada, no mês passado.
Os áudios caíram em várias mãos particulares depois de serem gravados, em 1957, por um holandês simpatizante nazista, antes de finalmente acabarem em um arquivo do governo alemão, que, em 2020, deu aos cocriadores da série — Kobi Sitt, o produtor; e Yariv Mozer, o diretor — permissão para usá-los.
Eichmann foi capturado insistindo que não passava de um mero funcionário que seguia ordens, negando responsabilidade por crimes pelos quais acabou condenado. Descrevendo-se como uma pequena engrenagem no aparato do Estado, encarregado de organizar horários de trens, sua professada mediocridade engendrou a teoria da filósofa Hannah Arendt a respeito da banalidade do mal.
Adolf Eichmann, criminoso de guerra nazista
Os áudios exibidos pela série documental, no entanto, mostram um nazista plenamente consciente da magnitude de seus crimes. A série intercala as horripilantes palavras de Eichmann, em alemão, em defesa do Holocausto, com reencenações de reuniões de simpatizantes nazistas ocorridas em 1957, em Buenos Aires, onde as gravações foram feitas.
Crimes nazistas
Evidências inéditas
Expondo o antissemitismo visceral e ideológico de Eichmann, seu afinco em caçar judeus e sua função na mecânica do genocídio, a série revela ao público pela primeira vez na história evidências que não foram apresentadas no julgamento.
Ele disse aos seus interlocutores que “não dava a mínima” se judeus enviados a Auschwitz sobreviviam ou morriam. No julgamento, ele negou ter conhecimento específico sobre o destino dos judeus; nas gravações, ele afirmou que a ordem era “que judeus aptos para o trabalho fossem mandados para trabalhar, e judeus não aptos para o trabalho fossem mandados para a Solução Final, e ponto”, o que significava sua execução sumária.
“Se tivéssemos matado 10,3 milhões de judeus, eu diria com satisfação: ‘Muito bem, destruímos um inimigo’. Deste modo teríamos cumprido nossa missão”, afirmou ele, em referência ao total de judeus na Europa. As gravações ainda registraram Eichmann esmagando uma mosca que zumbia pelo recinto enquanto descrevia “a natureza judaica” do inseto.
Escutando as gravações hoje, as confissões francas de Eichmann são assustadoras.
“É algo difícil o que lhe estou dizendo”, afirma Eichmann na gravação, “e sei que serei julgado por isso. Mas não posso lhe dizer que foi diferente. Esta é a verdade. Por que devemos negá-la?”. “Para mim, não há nada pior”, acrescentou ele, “do que uma pessoa que faz algo e posteriormente nega o que fez”.
Mozer, o diretor da série documental, que também escreveu o roteiro da obra e é neto de sobreviventes do Holocausto, afirmou: “Isso serve de prova contra negacionistas do Holocausto e é uma maneira de ver a cara real de Eichmann”.
“Com toda franqueza, através da série, as gerações mais jovens saberão do que tratou o julgamento e conhecerão a ideologia por trás da Solução Final”, acrescentou ele.
O documentário foi exibido recentemente para comandantes militares e oficiais das agências de inteligência israelenses — uma indicação da importância atribuída à obra em Israel.
Um julgamento histórico
O julgamento de Eichmann ocorreu em 1961, depois de agentes do Mossad o capturarem na Argentina e o levarem para Israel. Os depoimentos chocantes dos sobreviventes e o absoluto horror do Holocausto são expostos com detalhes assustadores para israelenses e cidadãos de todo o mundo.
A corte contou com abundante documentação e depoimentos de várias testemunhas para fundamentar a condenação de Eichmann. A acusação também obteve mais de 700 páginas de transcrições dos áudios gravados em Buenos Aires, marcadas por correções escritas por Eichmann.
Eichmann afirmava que as transcrições distorceram suas palavras. A Suprema Corte de Israel não as aceitou como evidências, com exceção das anotações por escrito, e Eichmann desafiou o procurador-chefe, Gideon Hausner, a apresentar as gravações originais, certo de que elas estavam bem escondidas.
No livro que escreveu a respeito do julgamento, “Justice in Jerusalem” (Justiça em Jerusalém), Hausner relatou como tentou obter as fitas até o último dia do interrogatório de Eichmann — e notou: “Ele dificilmente teria sido capaz de negar que se travava de sua própria voz”.
Hausner contou que as fitas lhe foram oferecidas por US$ 20 mil, uma vasta quantia na época, e que ele estava preparado para aprovar o gasto, “considerando sua importância histórica”. Mas o vendedor não identificado impunha a condição de que elas não fossem levadas a Israel antes da conclusão do julgamento, afirmou Hausner.
Nazistas na Argentina
As fitas foram gravadas por Willem Sassen, jornalista holandês, oficial da SS nazista e propagandista durante a 2.ª Guerra. Enquanto integravam um grupo de nazistas que fugiram para Buenos Aires, ele e Eichmann empreenderam o projeto das gravações almejando a publicação de um livro após a morte de Eichmann. Membros do grupo se reuniam por horas na casa de Sassen semanalmente, onde bebiam e fumavam.
E Eichmann falava sem parar.
Depois dos israelenses capturarem Eichmann, Sassen vendeu as transcrições das gravações para a revista Life, que publicou dois trechos resumidos da fala do nazista. Hausner considerou-os uma versão “cosmetizada”.
Após a execução de Eichmann, em 1962, as fitas originais foram vendidas para uma editora na Europa e acabaram compradas por uma empresa que permaneceu anônima e entregou-as para os arquivos federais da Alemanha em Koblenz, com instruções para que as gravações fossem usadas somente em pesquisas acadêmicas.
Áudios inéditos
Bettina Stangneth, filósofa e historiadora alemã, baseou em parte seu livro de 2011, “Eichmann Before Jerusalem” (Eichmann antes de Jerusalém) nas gravações. As autoridades alemãs tornaram públicos apenas poucos minutos dos áudios, mais de duas décadas atrás, “para provar que existiam”, afirmou Mozer.
Sitt, o produtor do novo documentário, fez um filme sobre Hausner para a TV israelense 20 anos atrás. A ideia de obter as fitas de Eichmann ficou em sua cabeça desde então, afirmou ele. Assim como Mozer, o diretor da série documental, Sitt também é neto de sobreviventes do Holocausto.
“Não tenho medo da memória, tenho medo do esquecimento”, afirmou Sitt a respeito do Holocausto, acrescentando que seu objetivo com o filme foi “prover uma ferramenta de alento para a memória” à medida que a última geração de sobreviventes desaparece.
Sitt se aproximou de Mozer depois de assistir o documentário que ele dirigiu em 2016, “Ben-Gurion, Epilogue” (Ben-Gurion, epílogo), que transcorre em torno de uma entrevista com o primeiro-ministro fundador de Israel que havia se perdido.
As autoridades alemãs e os proprietários das fitas de Eichmann deram aos documentaristas livre acesso às 15 horas de gravações que sobreviveram. (Sassen gravou cerca de 70 horas, mas reutilizou muitos dos caros rolos de gravação depois de transcrever seu conteúdo.) Mozer afirmou que o proprietário das fitas e do arquivo em texto por fim concordaram em dar aos documentaristas acesso ao material, certos de que eles usariam o conteúdo de maneira respeitosa e responsável.
O projeto cresceu e se transformou em uma coprodução de quase US$ 2 milhões, realizada pela Metro-Goldwyn-Mayer; a Sipur, uma produtora israelense anteriormente conhecida como Tadmor Entertainment; a Toluca Pictures; e a Kan 11, a emissora pública de TV israelense.
Uma versão de 108 minutos estreou na abertura do Docaviv, o Festival Internacional de Documentários de Tel-Aviv, nesta primavera. Uma versão de 180 minutos, dividida em três episódios, foi exibida na TV israelense em junho. A Metro-Goldwyn-Mayer busca parceiros para licenciar e colocar a série no ar mundialmente.
As conversas na sala de estar de Sassen são intercaladas com imagens do julgamento e entrevistas com sobreviventes do Holocausto que participaram das audiências. As imagens de arquivo foram colorizadas porque, segundo os documentaristas, os jovens de hoje consideram irrealistas imagens em preto e branco, como se viessem de um outro planeta.
A professora Dina Porat, historiadora-chefe do Yad Vashem, o museu oficial de Israel em memória ao Holocausto, afirmou que escutou no rádio a transmissão do julgamento de Eichmann diariamente, “da manhã até a noite”, enquanto cursava o último ano ensino médio.
“Toda a sociedade israelense estava ouvindo — motoristas de táxi ouviam, foi uma experiência nacional”, afirmou ela.
A professora Porat afirmou que o último grande evento relacionado ao Holocausto em Israel foi provavelmente o julgamento de John Demjanjuk, no fim dos anos 80, e sua subsequente apelação bem-sucedida à Suprema Corte israelense.
“A cada poucas décadas há um tipo diferente de sociedade israelense escutando”, notou ela. “Os jovens de hoje não são iguais aos jovens das décadas anteriores.”
O documentário também analisa os interesses dos líderes israelenses e alemães em uma época de cooperação crescente, e como isso pode ter influenciado os procedimentos do tribunal.
O filme afirma que David Ben-Gurion, o então primeiro-ministro, preferiu que as fitas de Eichmann não fossem ouvidas por causa de detalhes constrangedores que poderiam emergir a respeito de um ex-nazista que trabalhava no gabinete do então chanceler alemão e por causa do controvertido tema de Rudolf Kastner, um judeu húngaro que ajudou muitos judeus a fugir em segurança mas também foi acusado de colaborar com Eichmann./ TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO