Se você não sentiu um certo medo na véspera das eleições de meio de mandato, é porque não tem prestado atenção.
Podemos falar dos temas controvertidos destas eleições — suas implicações sobre política econômica, grandes programas sociais, política ambiental, liberdades civis e direitos reprodutivos. E não é errado entrar nessas discussões: A vida seguirá aconteça o que acontecer na cena política, e as políticas do governo continuarão surtindo grande impacto nas vidas das pessoas.
Mas eu, pelo menos, sempre me sinto meio culpado quando escrevo a respeito da inflação ou do destino do Medicare. Sim, são minhas especialidades. Colocar foco nelas, contudo, parece-me negação, ou ao menos evasão, quando desafios fundamentais são neste momento tão existenciais.
Dez ou 20 anos atrás, aqueles de nós que alertaram que o Partido Republicano estava se tornando crescentemente extremista e antidemocrático com frequência foram desprezados e classificados como alarmistas. Mas os alarmistas têm sido vindicados a cada passo do caminho, da venda da Guerra no Iraque sobre falsas pretensões à insurreição de 6 de janeiro de 2021.
De fato, atualmente, é quase sabedoria convencional que o Partido Republicano irá, se puder, transformar os Estados Unidos em algo parecido com a Hungria de Viktor Orbán: uma democracia no papel, mas na prática um Estado etnonacionalista, autoritário e monopartidário. Afinal, os conservadores americanos não fazem segredo de que consideram a Hungria um modelo; eles honraram Orbán e o apresentaram em suas conferências.
Entenda as eleições de meio de mandato nos EUA
Neste ponto, contudo, acredito que até mesmo essa sabedoria convencional está equivocada. Se os EUA descambarem para um regime monopartidário, a coisa será muito pior, muito mais feia do que a Hungria de hoje.
Antes de eu chegar lá, uma palavra a respeito do papel dos temas convencionais de política nestas eleições. Se os democratas perderem a maioria no Congresso, o que agora parece mais distante, haverá um ruidoso coro de recriminações, muitas afirmando que eles deveriam ter colocado o foco em temas cotidianos, não falado em ameaças à democracia.
Eu não clamo especialidade nessa área, mas notaria que o partido do presidente na função quase sempre perde assentos nas eleições de meio de mandato. A única exceção a essa regra neste século ocorreu em 2002, quando George W. Bush conseguiu desviar a atenção de uma recuperação sem criação de empregos posando de defensor dos EUA contra o terrorismo. Se esse registro sugere algo, é que os democratas deveriam ter falado ainda mais de temas além da economia.
Eu também diria que fingir que esta temporada eleitoral foi uma campanha comum, em que apenas a política econômica estava em jogo, seria fundamentalmente desonesto.
Finalmente, até eleitores que estão mais preocupados com seus salários e custos de vida do que com a democracia deveriam, mesmo assim, estar muito preocupados com a rejeição do Partido Republicano às normas democráticas.
Um motivo é que os republicanos foram explícitos a respeito de seu plano para usar a ameaça de caos econômico para extrair concessões que não conseguiriam obter por meio do processo legislativo normal.
Controle do país
Também, ainda que eu compreenda o instinto dos eleitores de escolher um condutor diferente se não gostam do caminho que a economia está tomando, eles deveriam entender que, desta vez, votar nos republicanos não significa simplesmente colocar outra pessoa no volante; mas poderá ser um grande passo na direção de entregar ao Partido Republicano controle permanente do país, sem chance para os eleitores reavaliarem essa decisão caso os resultados não lhes agrade.
O que me traz à questão a respeito de como seriam os EUA de um só partido. Conforme já afirmei, agora é quase sabedoria convencional que os republicanos estão tentando nos transformar em uma Hungria. De fato, a Hungria provê um estudo de caso a respeito de como democracias podem morrer no século 21.
Mas o que me impressiona lendo a respeito do governo de Orbán é que, ainda que seu regime seja profundamente repressivo, a repressão é relativamente sutil. Trata-se, conforme percebe um sensato artigo, de um “fascismo brando”, que tira poder dos dissidentes por meio de seu controle da economia e dos meios de imprensa sem espancá-los nem colocá-los na cadeia.
Você acha que um regime trumpista, com ou sem Donald Trump, seria igualmente sutil? Ouça os discursos de Trump em qualquer comício. Eles são repletos de ressentimentos, desejos de vingança, promessas de prisões e punições para qualquer um — incluindo tecnocratas como Anthony Fauci — que o movimento desgoste.
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E grande parte da direita americana é simpática a — ou pelo menos indisposta a condenar — uso de violência contra seus oponentes. A reação dos republicanos ao ataque contra Paul Pelosi por um trumpista empedernido que invadiu sua casa foi revelador: muitos no partido nem sequer fingiram estar horrorizados. Em vez disso, apregoaram nefastas teorias de conspiração. E o restante do partido não condenou nem penalizou os promotores dessas falsidades vis.
Em suma, se os trumpistas vencerem, provavelmente passaremos a desejar que seu regime fosse tão tolerante, relativamente benigno e não violento quanto o de Orbán.
Mas essa catástrofe não tem de acontecer. Mesmo se os republicanos obtiverem uma grande vitória nas eleições de meio de mandato, isso não será o fim da democracia, mas certamente será um duro golpe. E nada na política, nem mesmo um declínio total ao autoritarismo, é permanente.
Por outro lado, mesmo se conseguirmos um respiro esta semana, continuará verdadeiro que a democracia está profundamente ameaçada pela direita autoritária. Os EUA que conhecemos ainda não se perderam, mas estão à beira do abismo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO