Barreiras especiais impedem inundações em Veneza, mas ‘cidade dos canais’ continua vulnerável


Sistema de barreiras suporta elevação de 30 cm do nível do mar, mas pode ser insuficiente para conter inundações a longo prazo

Por Chico Harlan e Stefano Pitrelli

Três anos atrás, um fluxo de água histórico cobriu Veneza, inundando restaurantes e igrejas, arrastando barcos sobre as ruas e deixando os venezianos preocupados com um futuro de eventos climáticos extremos. Mas na semana passada, um desses eventos irrompeu – uma maré quase tão alta quanto a de 2019 – e os moradores mal foram incomodados, exceto por algum vento e chuva. A cidade foi poupada do desastre.

Isso ocorreu por causa de um projeto de engenharia de US$ 6 bilhões destinado a proteger Veneza de inundações. A cidade dos canais agora é guardada por 78 barreiras retangulares de metal, cada uma com altura de um edifício de cinco andares, que são movimentadas com bombas pneumáticas e erguidas do leito marinho toda vez que a maré alta ameaça a cidade.

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Trata-se de uma solução ambiental literalmente divisora de águas, que precisou de 30 anos de planejamento e 20 anos para ser construída – e reduziu o temor de que Veneza pudesse se tornar uma Atlântida dos dias modernos.

Em dias calmos, quando as barreiras estão submersas, o tráfego marino é permitido em Veneza Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

Mas para uma das cidades mais frágeis do mundo, há uma diferença entre ser protegida e ser salva. O sistema que protege Veneza poderia ficar sobrecarregado até com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, afirmam seus operadores – algo que, segundo projeções atuais (e em transformação) poderia ocorrer em meados deste século. Com sorte, se os maiores países cortarem dramaticamente suas emissões, o Mose, como é conhecido o sistema, ainda poderia funcionar por 100 anos conforme o projetado, afirmam cientistas. Mas cenários mais negativos poderiam cortar em décadas o período de funcionamento do sistema.

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Cidade vulnerável a longo prazo

O resultado é que a cidade continua vulnerável no longo prazo. “Dura de 50 a 100 anos – algo entre essas duas datas”, afirmou Pierpaolo Campostrini, diretor de um consórcio de pesquisa que estuda a Lagoa de Veneza. “Isso não significa que o Mose não seja útil. Mas sabemos que é uma solução temporária.”

Muitas partes do mundo localizadas em terreno baixo e em perigo não possuem recursos para se defender contra a elevação no nível do mar, inundações e outros eventos climáticos extremos. Mas a experiência de Veneza demonstra os desafios da adaptação mesmo quando dinheiro não é problema. A Itália tornou uma missão nacional salvar Veneza, um labirinto de tesouros medievais surpreendentemente construído sobre 118 ilhas. Apesar de algumas das dificuldades do projeto terem sido específicas, um escândalo de corrupção em 2014 levou a uma onda de prisões e mudanças nos quadros de funcionários, uma de suas lições é mais universal: é difícil sintonizar um projeto grande e vagaroso com a dinâmica veloz da ciência.

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Vista de perto, a escala do sistema Mose é estarrecedora. As barreiras amarelas se estendem por quase 1,6 quilômetro e são operadas a partir de uma ilha artificial, que os funcionários comparam a um forte de concreto. Uma visita do Washington Post incluiu uma caminhada através de túneis submarinos usados para manutenção e inspeção – um mundo oculto de tubos de ar comprimido e mostradores a menos de 5 quilômetros dos campanários e abóbadas da antiga Veneza.

Em contraste com barragens e diques permanentemente visíveis construídos em lugares como os Países Baixos, as barreiras retráteis do sistema Mose ficam escondidas no leito marinho. Isso permite à lagoa existir naturalmente na maioria dos dias. As embarcações podem circular. E, de maneira crucial, as marés podem encher e vazar, com as águas salgadas do Adriático ajudando a limpar a lagoa e impedindo que ela se torne um pântano fétido. Mas há um lado negativo no conceito inerente ao projeto, que foi finalizado nos anos 90, em um estágio inicial da ciência climática: o sistema foi projetado para ser usado ocasionalmente. Em certo momento, a elevação no nível do mar forçará o Mose a funcionar tão regularmente que o sistema se tornará uma barreira quase permanente, alterando o ecossistema da lagoa, não permitindo o tráfego marítimo e sobrecarregando o próprio sistema, que precisa de manutenção constante. A única dúvida entre operadores e cientistas é quando esse momento chegará.

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Por enquanto, o Mose está sendo usado ocasionalmente, normalmente no inverno, quando ventos em altitudes maiores tendem a formar tempestades em todo o Adriático. Cada acionamento custa em média US$ 300 mil (R$ 1,55 bi).

Turistas posam para fotos em uma das passarelas de Veneza, na Itália Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

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Mas se o nível do mar se elevar 30 centímetros, o Mose teria de ser acionado a cada três ou quatro dias. Questionado sobre a funcionalidade do Mose com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, Giovanni Zarotti, diretor técnico do Consorzio Venezia Nuova, que opera o sistema, afirmou: “Da maneira que vejo, é impossível”. E se o mar subir 60 centímetros – um cenário dentro das previsões para 2100 – o Mose seria usado 500 vezes ao ano. Projeções mais negativas para 2100 sugerem uma elevação de mais de 1 metro no nível do mar. Nesse ponto, a lagoa ficaria interditada essencialmente o ano inteiro.

Mose pode ser adaptado, diz o pai do projeto

Alberto Scotti, engenheiro que com frequência é descrito como pai do projeto, afirmou que o sistema Mose poderia ser adaptado para operar com uma elevação de 60 centímetros no nível do mar, mas isso requereria novas manobras – como elevar mais algumas barreiras, mas não todas, sacrificando um grau de proteção para permitir que a lagoa troque as águas mais regularmente.

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Outro passo, afirmou ele, envolveria aumentar o limite que determina o acionamento do sistema. Em outras palavras: Veneza teria de se conformar com um certo nível, baixo, de enchente. “Hoje ninguém pode aceitar a ideia nem de alguns poucos centímetros de inundação, depois de tanto dinheiro ser gasto”, afirmou Scotti. “Mas e no futuro? Até lá, outras cidades no Adriático já terão sido perdidas.”

Operado em parte a partir de uma ilha artificial comparada a uma fortaleza de concreto, o Mose fica a apenas três milhas de distância dos locais famosos de Veneza Foto: Carolyn Van Houten/The Washington Post

Em muitos episódios ao longo da história, Veneza encontrou maneiras de resistir à sua precária natureza. Os primeiros engenheiros descobriram como construir edifícios sobre as planícies lamacentas, usando postes de madeira como fundação. Especialistas durante a Renascença orquestraram um plano monumental para desviar cursos de rios que expeliam sedimento dentro da lagoa, arriscando transformar sua água em solo. Três séculos atrás, trabalhadores construíram ilhas que funcionaram como barreiras, com pedras impermeáveis, reformando-as posteriormente para transformá-las em muros contra tempestades. Mas as margens para a sobrevivência de Veneza têm se estreitado.

Em comparação a 150 anos atrás, o nível médio da água está hoje 32 centímetros mais elevado. Isso se deve em parte ao derretimento das calotas polares e à elevação do nível dos oceanos. Mas também ocorre em razão de uma decisão catastrófica, dos anos 50 e 60, de bombear água de aquíferos subterrâneos para uso na indústria – manobra que fez Veneza afundar cerca de 12 centímetros. Em uma cidade tão próxima ao nível do mar, esses centímetros fazem uma diferença enorme.

Inundações se tornaram mais frequentes e maiores nos últimos anos

Antes da introdução do sistema Mose, inundações que ocorriam uma vez a cada década um século atrás tinham passado a ocorrer quatro vezes ao ano. Entre as 20 maiores enchentes registradas na história da cidade, 11 ocorreram depois de 2000. A icônica Piazza San Marco, delineada pelo palácio gótico ducal e pela basílica dourada, que data de 1063, raramente ficou coberta de água ao longo de sua história. Agora, mesmo com o sistema Mose ativado, a piazza – que também é o ponto mais baixo de Veneza – fica inundada cerca de 100 dias ao ano.

O sistema Mose é projetado para ser acionado quando a água fique 110 centímetros acima do “nível zero” – o nível médio no século 19, quando Veneza começou a manter registros. “Em 75 centímetros, a piazza começa a encher, e em 95, tudo fica coberto de água”, afirmou Alvise Papa, diretor do serviço de previsão do tempo em Veneza.

Mulher caminha em meio a praça inundada de Veneza, em imagem de 21 de novembro de 2022 Foto: Manuel Silvestri / Reuters

Pequenas inundações, que se esvaziam à medida que a maré baixa, perturbam pouco a vida na cidade. Mas mesmo assim são prejudiciais, deixando para trás cristais de sal capazes de devastar os edifícios antigos. Mario Piana, restaurador responsável pela Basilica di San Marco, descreve um tesouro que tem envelhecido rapidamente, com sal acumulado rompendo rebocos, lascando paredes e danificando mosaicos e mármores insubstituíveis, da época bizantina.

Com as barreiras usadas apenas para eventos de elevação de águas, a basílica foi forçada recentemente a construir proteções: seu exterior agora é cercado por uma barreira de vidro que chega à altura do tórax, e se aprofunda dois metros abaixo do chão. A água na piazza hoje para nas portas da basílica.

Há também outros projetos – muitos concluídos, alguns não – destinados a suplementar o sistema Mose. O Consorzio Venezia Nuova tem trabalhado para restaurar pântanos salgados e fortalecer as ilhas-barreira, acrescentando novos montes de areia e quebra-mares. Em grande parte da cidade, o pavimento foi elevado para 110 centímetros, o nível de ativação do Mose. Logo serão iniciadas obras para uma elevação similar na Piazza San Marco. Mas esses projetos são relativamente modestos.

Soluções a longo prazo

Dados os potenciais limites da vida útil do sistema Mose, alguns especialistas afirmam que já é necessário começar a pensar em outras soluções. Entre as propostas a longo prazo, a de maior destaque prevê a injeção de água do mar em aquíferos profundos. Tais injeções, por meio de vários sumidouros que seriam cavados por toda a cidade, elevariam o nível de Veneza em 20 a 25 centímetros – efetivamente anulando 150 anos de afundamento e alterações no nível do mar, afirmou Pietro Teatini, um dos engenheiros hidráulicos por trás da ideia. Injeções similares foram usadas por empresas de energia para armazenamento de gás natural e para ajudar a mitigar afundamentos ou elevar terrenos de cidades como Tóquio e Taipé.

Cientistas que conversaram com o The Washington Post se mostraram divididos a respeito dessa ideia para Veneza. Um a qualificou como “terrível” e expressou preocupação sobre o modo que a superfície da cidade poderia ser elevada uniformemente. Mas outros disseram que a ideia pode funcionar. Seria necessária anteriormente a realização de testes em pequena escala. Um sistema desse tipo, se algum dia for criado, poderia trabalhar paralelamente ao Mose.

Mas o oceanógrafo Georg Umgiesser, que passou 40 anos simulando a elevação das águas na Lagoa de Veneza, acredita que a cidade acabará forçada a usar um método mais bruto para bloquear o mar: um muro permanente. Uma muralha marítima transformará a lagoa de maneiras que os venezianos têm se oposto energicamente: as águas em torno da cidade se tornariam um lago salobro. Habitats que hoje sustentam a pesca ficariam em perigo. Assim como as entradas dos portos. A cidade teria de encontrar uma nova maneira de manter a água limpa. Segundo Umgiesser, que dirige o CNR-Ismar, um conselho nacional de pesquisa na Itália, talvez alguma tecnologia ainda desconhecida possa adiar o que ele sente como inevitável. “Na sua ausência, o Mose nos dará algum tempo”, afirmou. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Três anos atrás, um fluxo de água histórico cobriu Veneza, inundando restaurantes e igrejas, arrastando barcos sobre as ruas e deixando os venezianos preocupados com um futuro de eventos climáticos extremos. Mas na semana passada, um desses eventos irrompeu – uma maré quase tão alta quanto a de 2019 – e os moradores mal foram incomodados, exceto por algum vento e chuva. A cidade foi poupada do desastre.

Isso ocorreu por causa de um projeto de engenharia de US$ 6 bilhões destinado a proteger Veneza de inundações. A cidade dos canais agora é guardada por 78 barreiras retangulares de metal, cada uma com altura de um edifício de cinco andares, que são movimentadas com bombas pneumáticas e erguidas do leito marinho toda vez que a maré alta ameaça a cidade.

Trata-se de uma solução ambiental literalmente divisora de águas, que precisou de 30 anos de planejamento e 20 anos para ser construída – e reduziu o temor de que Veneza pudesse se tornar uma Atlântida dos dias modernos.

Em dias calmos, quando as barreiras estão submersas, o tráfego marino é permitido em Veneza Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

Mas para uma das cidades mais frágeis do mundo, há uma diferença entre ser protegida e ser salva. O sistema que protege Veneza poderia ficar sobrecarregado até com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, afirmam seus operadores – algo que, segundo projeções atuais (e em transformação) poderia ocorrer em meados deste século. Com sorte, se os maiores países cortarem dramaticamente suas emissões, o Mose, como é conhecido o sistema, ainda poderia funcionar por 100 anos conforme o projetado, afirmam cientistas. Mas cenários mais negativos poderiam cortar em décadas o período de funcionamento do sistema.

Cidade vulnerável a longo prazo

O resultado é que a cidade continua vulnerável no longo prazo. “Dura de 50 a 100 anos – algo entre essas duas datas”, afirmou Pierpaolo Campostrini, diretor de um consórcio de pesquisa que estuda a Lagoa de Veneza. “Isso não significa que o Mose não seja útil. Mas sabemos que é uma solução temporária.”

Muitas partes do mundo localizadas em terreno baixo e em perigo não possuem recursos para se defender contra a elevação no nível do mar, inundações e outros eventos climáticos extremos. Mas a experiência de Veneza demonstra os desafios da adaptação mesmo quando dinheiro não é problema. A Itália tornou uma missão nacional salvar Veneza, um labirinto de tesouros medievais surpreendentemente construído sobre 118 ilhas. Apesar de algumas das dificuldades do projeto terem sido específicas, um escândalo de corrupção em 2014 levou a uma onda de prisões e mudanças nos quadros de funcionários, uma de suas lições é mais universal: é difícil sintonizar um projeto grande e vagaroso com a dinâmica veloz da ciência.

Vista de perto, a escala do sistema Mose é estarrecedora. As barreiras amarelas se estendem por quase 1,6 quilômetro e são operadas a partir de uma ilha artificial, que os funcionários comparam a um forte de concreto. Uma visita do Washington Post incluiu uma caminhada através de túneis submarinos usados para manutenção e inspeção – um mundo oculto de tubos de ar comprimido e mostradores a menos de 5 quilômetros dos campanários e abóbadas da antiga Veneza.

Em contraste com barragens e diques permanentemente visíveis construídos em lugares como os Países Baixos, as barreiras retráteis do sistema Mose ficam escondidas no leito marinho. Isso permite à lagoa existir naturalmente na maioria dos dias. As embarcações podem circular. E, de maneira crucial, as marés podem encher e vazar, com as águas salgadas do Adriático ajudando a limpar a lagoa e impedindo que ela se torne um pântano fétido. Mas há um lado negativo no conceito inerente ao projeto, que foi finalizado nos anos 90, em um estágio inicial da ciência climática: o sistema foi projetado para ser usado ocasionalmente. Em certo momento, a elevação no nível do mar forçará o Mose a funcionar tão regularmente que o sistema se tornará uma barreira quase permanente, alterando o ecossistema da lagoa, não permitindo o tráfego marítimo e sobrecarregando o próprio sistema, que precisa de manutenção constante. A única dúvida entre operadores e cientistas é quando esse momento chegará.

Por enquanto, o Mose está sendo usado ocasionalmente, normalmente no inverno, quando ventos em altitudes maiores tendem a formar tempestades em todo o Adriático. Cada acionamento custa em média US$ 300 mil (R$ 1,55 bi).

Turistas posam para fotos em uma das passarelas de Veneza, na Itália Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

Mas se o nível do mar se elevar 30 centímetros, o Mose teria de ser acionado a cada três ou quatro dias. Questionado sobre a funcionalidade do Mose com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, Giovanni Zarotti, diretor técnico do Consorzio Venezia Nuova, que opera o sistema, afirmou: “Da maneira que vejo, é impossível”. E se o mar subir 60 centímetros – um cenário dentro das previsões para 2100 – o Mose seria usado 500 vezes ao ano. Projeções mais negativas para 2100 sugerem uma elevação de mais de 1 metro no nível do mar. Nesse ponto, a lagoa ficaria interditada essencialmente o ano inteiro.

Mose pode ser adaptado, diz o pai do projeto

Alberto Scotti, engenheiro que com frequência é descrito como pai do projeto, afirmou que o sistema Mose poderia ser adaptado para operar com uma elevação de 60 centímetros no nível do mar, mas isso requereria novas manobras – como elevar mais algumas barreiras, mas não todas, sacrificando um grau de proteção para permitir que a lagoa troque as águas mais regularmente.

Outro passo, afirmou ele, envolveria aumentar o limite que determina o acionamento do sistema. Em outras palavras: Veneza teria de se conformar com um certo nível, baixo, de enchente. “Hoje ninguém pode aceitar a ideia nem de alguns poucos centímetros de inundação, depois de tanto dinheiro ser gasto”, afirmou Scotti. “Mas e no futuro? Até lá, outras cidades no Adriático já terão sido perdidas.”

Operado em parte a partir de uma ilha artificial comparada a uma fortaleza de concreto, o Mose fica a apenas três milhas de distância dos locais famosos de Veneza Foto: Carolyn Van Houten/The Washington Post

Em muitos episódios ao longo da história, Veneza encontrou maneiras de resistir à sua precária natureza. Os primeiros engenheiros descobriram como construir edifícios sobre as planícies lamacentas, usando postes de madeira como fundação. Especialistas durante a Renascença orquestraram um plano monumental para desviar cursos de rios que expeliam sedimento dentro da lagoa, arriscando transformar sua água em solo. Três séculos atrás, trabalhadores construíram ilhas que funcionaram como barreiras, com pedras impermeáveis, reformando-as posteriormente para transformá-las em muros contra tempestades. Mas as margens para a sobrevivência de Veneza têm se estreitado.

Em comparação a 150 anos atrás, o nível médio da água está hoje 32 centímetros mais elevado. Isso se deve em parte ao derretimento das calotas polares e à elevação do nível dos oceanos. Mas também ocorre em razão de uma decisão catastrófica, dos anos 50 e 60, de bombear água de aquíferos subterrâneos para uso na indústria – manobra que fez Veneza afundar cerca de 12 centímetros. Em uma cidade tão próxima ao nível do mar, esses centímetros fazem uma diferença enorme.

Inundações se tornaram mais frequentes e maiores nos últimos anos

Antes da introdução do sistema Mose, inundações que ocorriam uma vez a cada década um século atrás tinham passado a ocorrer quatro vezes ao ano. Entre as 20 maiores enchentes registradas na história da cidade, 11 ocorreram depois de 2000. A icônica Piazza San Marco, delineada pelo palácio gótico ducal e pela basílica dourada, que data de 1063, raramente ficou coberta de água ao longo de sua história. Agora, mesmo com o sistema Mose ativado, a piazza – que também é o ponto mais baixo de Veneza – fica inundada cerca de 100 dias ao ano.

O sistema Mose é projetado para ser acionado quando a água fique 110 centímetros acima do “nível zero” – o nível médio no século 19, quando Veneza começou a manter registros. “Em 75 centímetros, a piazza começa a encher, e em 95, tudo fica coberto de água”, afirmou Alvise Papa, diretor do serviço de previsão do tempo em Veneza.

Mulher caminha em meio a praça inundada de Veneza, em imagem de 21 de novembro de 2022 Foto: Manuel Silvestri / Reuters

Pequenas inundações, que se esvaziam à medida que a maré baixa, perturbam pouco a vida na cidade. Mas mesmo assim são prejudiciais, deixando para trás cristais de sal capazes de devastar os edifícios antigos. Mario Piana, restaurador responsável pela Basilica di San Marco, descreve um tesouro que tem envelhecido rapidamente, com sal acumulado rompendo rebocos, lascando paredes e danificando mosaicos e mármores insubstituíveis, da época bizantina.

Com as barreiras usadas apenas para eventos de elevação de águas, a basílica foi forçada recentemente a construir proteções: seu exterior agora é cercado por uma barreira de vidro que chega à altura do tórax, e se aprofunda dois metros abaixo do chão. A água na piazza hoje para nas portas da basílica.

Há também outros projetos – muitos concluídos, alguns não – destinados a suplementar o sistema Mose. O Consorzio Venezia Nuova tem trabalhado para restaurar pântanos salgados e fortalecer as ilhas-barreira, acrescentando novos montes de areia e quebra-mares. Em grande parte da cidade, o pavimento foi elevado para 110 centímetros, o nível de ativação do Mose. Logo serão iniciadas obras para uma elevação similar na Piazza San Marco. Mas esses projetos são relativamente modestos.

Soluções a longo prazo

Dados os potenciais limites da vida útil do sistema Mose, alguns especialistas afirmam que já é necessário começar a pensar em outras soluções. Entre as propostas a longo prazo, a de maior destaque prevê a injeção de água do mar em aquíferos profundos. Tais injeções, por meio de vários sumidouros que seriam cavados por toda a cidade, elevariam o nível de Veneza em 20 a 25 centímetros – efetivamente anulando 150 anos de afundamento e alterações no nível do mar, afirmou Pietro Teatini, um dos engenheiros hidráulicos por trás da ideia. Injeções similares foram usadas por empresas de energia para armazenamento de gás natural e para ajudar a mitigar afundamentos ou elevar terrenos de cidades como Tóquio e Taipé.

Cientistas que conversaram com o The Washington Post se mostraram divididos a respeito dessa ideia para Veneza. Um a qualificou como “terrível” e expressou preocupação sobre o modo que a superfície da cidade poderia ser elevada uniformemente. Mas outros disseram que a ideia pode funcionar. Seria necessária anteriormente a realização de testes em pequena escala. Um sistema desse tipo, se algum dia for criado, poderia trabalhar paralelamente ao Mose.

Mas o oceanógrafo Georg Umgiesser, que passou 40 anos simulando a elevação das águas na Lagoa de Veneza, acredita que a cidade acabará forçada a usar um método mais bruto para bloquear o mar: um muro permanente. Uma muralha marítima transformará a lagoa de maneiras que os venezianos têm se oposto energicamente: as águas em torno da cidade se tornariam um lago salobro. Habitats que hoje sustentam a pesca ficariam em perigo. Assim como as entradas dos portos. A cidade teria de encontrar uma nova maneira de manter a água limpa. Segundo Umgiesser, que dirige o CNR-Ismar, um conselho nacional de pesquisa na Itália, talvez alguma tecnologia ainda desconhecida possa adiar o que ele sente como inevitável. “Na sua ausência, o Mose nos dará algum tempo”, afirmou. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Três anos atrás, um fluxo de água histórico cobriu Veneza, inundando restaurantes e igrejas, arrastando barcos sobre as ruas e deixando os venezianos preocupados com um futuro de eventos climáticos extremos. Mas na semana passada, um desses eventos irrompeu – uma maré quase tão alta quanto a de 2019 – e os moradores mal foram incomodados, exceto por algum vento e chuva. A cidade foi poupada do desastre.

Isso ocorreu por causa de um projeto de engenharia de US$ 6 bilhões destinado a proteger Veneza de inundações. A cidade dos canais agora é guardada por 78 barreiras retangulares de metal, cada uma com altura de um edifício de cinco andares, que são movimentadas com bombas pneumáticas e erguidas do leito marinho toda vez que a maré alta ameaça a cidade.

Trata-se de uma solução ambiental literalmente divisora de águas, que precisou de 30 anos de planejamento e 20 anos para ser construída – e reduziu o temor de que Veneza pudesse se tornar uma Atlântida dos dias modernos.

Em dias calmos, quando as barreiras estão submersas, o tráfego marino é permitido em Veneza Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

Mas para uma das cidades mais frágeis do mundo, há uma diferença entre ser protegida e ser salva. O sistema que protege Veneza poderia ficar sobrecarregado até com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, afirmam seus operadores – algo que, segundo projeções atuais (e em transformação) poderia ocorrer em meados deste século. Com sorte, se os maiores países cortarem dramaticamente suas emissões, o Mose, como é conhecido o sistema, ainda poderia funcionar por 100 anos conforme o projetado, afirmam cientistas. Mas cenários mais negativos poderiam cortar em décadas o período de funcionamento do sistema.

Cidade vulnerável a longo prazo

O resultado é que a cidade continua vulnerável no longo prazo. “Dura de 50 a 100 anos – algo entre essas duas datas”, afirmou Pierpaolo Campostrini, diretor de um consórcio de pesquisa que estuda a Lagoa de Veneza. “Isso não significa que o Mose não seja útil. Mas sabemos que é uma solução temporária.”

Muitas partes do mundo localizadas em terreno baixo e em perigo não possuem recursos para se defender contra a elevação no nível do mar, inundações e outros eventos climáticos extremos. Mas a experiência de Veneza demonstra os desafios da adaptação mesmo quando dinheiro não é problema. A Itália tornou uma missão nacional salvar Veneza, um labirinto de tesouros medievais surpreendentemente construído sobre 118 ilhas. Apesar de algumas das dificuldades do projeto terem sido específicas, um escândalo de corrupção em 2014 levou a uma onda de prisões e mudanças nos quadros de funcionários, uma de suas lições é mais universal: é difícil sintonizar um projeto grande e vagaroso com a dinâmica veloz da ciência.

Vista de perto, a escala do sistema Mose é estarrecedora. As barreiras amarelas se estendem por quase 1,6 quilômetro e são operadas a partir de uma ilha artificial, que os funcionários comparam a um forte de concreto. Uma visita do Washington Post incluiu uma caminhada através de túneis submarinos usados para manutenção e inspeção – um mundo oculto de tubos de ar comprimido e mostradores a menos de 5 quilômetros dos campanários e abóbadas da antiga Veneza.

Em contraste com barragens e diques permanentemente visíveis construídos em lugares como os Países Baixos, as barreiras retráteis do sistema Mose ficam escondidas no leito marinho. Isso permite à lagoa existir naturalmente na maioria dos dias. As embarcações podem circular. E, de maneira crucial, as marés podem encher e vazar, com as águas salgadas do Adriático ajudando a limpar a lagoa e impedindo que ela se torne um pântano fétido. Mas há um lado negativo no conceito inerente ao projeto, que foi finalizado nos anos 90, em um estágio inicial da ciência climática: o sistema foi projetado para ser usado ocasionalmente. Em certo momento, a elevação no nível do mar forçará o Mose a funcionar tão regularmente que o sistema se tornará uma barreira quase permanente, alterando o ecossistema da lagoa, não permitindo o tráfego marítimo e sobrecarregando o próprio sistema, que precisa de manutenção constante. A única dúvida entre operadores e cientistas é quando esse momento chegará.

Por enquanto, o Mose está sendo usado ocasionalmente, normalmente no inverno, quando ventos em altitudes maiores tendem a formar tempestades em todo o Adriático. Cada acionamento custa em média US$ 300 mil (R$ 1,55 bi).

Turistas posam para fotos em uma das passarelas de Veneza, na Itália Foto: Carolyn Van Houten / The Washington Post

Mas se o nível do mar se elevar 30 centímetros, o Mose teria de ser acionado a cada três ou quatro dias. Questionado sobre a funcionalidade do Mose com uma elevação de 30 centímetros no nível do mar, Giovanni Zarotti, diretor técnico do Consorzio Venezia Nuova, que opera o sistema, afirmou: “Da maneira que vejo, é impossível”. E se o mar subir 60 centímetros – um cenário dentro das previsões para 2100 – o Mose seria usado 500 vezes ao ano. Projeções mais negativas para 2100 sugerem uma elevação de mais de 1 metro no nível do mar. Nesse ponto, a lagoa ficaria interditada essencialmente o ano inteiro.

Mose pode ser adaptado, diz o pai do projeto

Alberto Scotti, engenheiro que com frequência é descrito como pai do projeto, afirmou que o sistema Mose poderia ser adaptado para operar com uma elevação de 60 centímetros no nível do mar, mas isso requereria novas manobras – como elevar mais algumas barreiras, mas não todas, sacrificando um grau de proteção para permitir que a lagoa troque as águas mais regularmente.

Outro passo, afirmou ele, envolveria aumentar o limite que determina o acionamento do sistema. Em outras palavras: Veneza teria de se conformar com um certo nível, baixo, de enchente. “Hoje ninguém pode aceitar a ideia nem de alguns poucos centímetros de inundação, depois de tanto dinheiro ser gasto”, afirmou Scotti. “Mas e no futuro? Até lá, outras cidades no Adriático já terão sido perdidas.”

Operado em parte a partir de uma ilha artificial comparada a uma fortaleza de concreto, o Mose fica a apenas três milhas de distância dos locais famosos de Veneza Foto: Carolyn Van Houten/The Washington Post

Em muitos episódios ao longo da história, Veneza encontrou maneiras de resistir à sua precária natureza. Os primeiros engenheiros descobriram como construir edifícios sobre as planícies lamacentas, usando postes de madeira como fundação. Especialistas durante a Renascença orquestraram um plano monumental para desviar cursos de rios que expeliam sedimento dentro da lagoa, arriscando transformar sua água em solo. Três séculos atrás, trabalhadores construíram ilhas que funcionaram como barreiras, com pedras impermeáveis, reformando-as posteriormente para transformá-las em muros contra tempestades. Mas as margens para a sobrevivência de Veneza têm se estreitado.

Em comparação a 150 anos atrás, o nível médio da água está hoje 32 centímetros mais elevado. Isso se deve em parte ao derretimento das calotas polares e à elevação do nível dos oceanos. Mas também ocorre em razão de uma decisão catastrófica, dos anos 50 e 60, de bombear água de aquíferos subterrâneos para uso na indústria – manobra que fez Veneza afundar cerca de 12 centímetros. Em uma cidade tão próxima ao nível do mar, esses centímetros fazem uma diferença enorme.

Inundações se tornaram mais frequentes e maiores nos últimos anos

Antes da introdução do sistema Mose, inundações que ocorriam uma vez a cada década um século atrás tinham passado a ocorrer quatro vezes ao ano. Entre as 20 maiores enchentes registradas na história da cidade, 11 ocorreram depois de 2000. A icônica Piazza San Marco, delineada pelo palácio gótico ducal e pela basílica dourada, que data de 1063, raramente ficou coberta de água ao longo de sua história. Agora, mesmo com o sistema Mose ativado, a piazza – que também é o ponto mais baixo de Veneza – fica inundada cerca de 100 dias ao ano.

O sistema Mose é projetado para ser acionado quando a água fique 110 centímetros acima do “nível zero” – o nível médio no século 19, quando Veneza começou a manter registros. “Em 75 centímetros, a piazza começa a encher, e em 95, tudo fica coberto de água”, afirmou Alvise Papa, diretor do serviço de previsão do tempo em Veneza.

Mulher caminha em meio a praça inundada de Veneza, em imagem de 21 de novembro de 2022 Foto: Manuel Silvestri / Reuters

Pequenas inundações, que se esvaziam à medida que a maré baixa, perturbam pouco a vida na cidade. Mas mesmo assim são prejudiciais, deixando para trás cristais de sal capazes de devastar os edifícios antigos. Mario Piana, restaurador responsável pela Basilica di San Marco, descreve um tesouro que tem envelhecido rapidamente, com sal acumulado rompendo rebocos, lascando paredes e danificando mosaicos e mármores insubstituíveis, da época bizantina.

Com as barreiras usadas apenas para eventos de elevação de águas, a basílica foi forçada recentemente a construir proteções: seu exterior agora é cercado por uma barreira de vidro que chega à altura do tórax, e se aprofunda dois metros abaixo do chão. A água na piazza hoje para nas portas da basílica.

Há também outros projetos – muitos concluídos, alguns não – destinados a suplementar o sistema Mose. O Consorzio Venezia Nuova tem trabalhado para restaurar pântanos salgados e fortalecer as ilhas-barreira, acrescentando novos montes de areia e quebra-mares. Em grande parte da cidade, o pavimento foi elevado para 110 centímetros, o nível de ativação do Mose. Logo serão iniciadas obras para uma elevação similar na Piazza San Marco. Mas esses projetos são relativamente modestos.

Soluções a longo prazo

Dados os potenciais limites da vida útil do sistema Mose, alguns especialistas afirmam que já é necessário começar a pensar em outras soluções. Entre as propostas a longo prazo, a de maior destaque prevê a injeção de água do mar em aquíferos profundos. Tais injeções, por meio de vários sumidouros que seriam cavados por toda a cidade, elevariam o nível de Veneza em 20 a 25 centímetros – efetivamente anulando 150 anos de afundamento e alterações no nível do mar, afirmou Pietro Teatini, um dos engenheiros hidráulicos por trás da ideia. Injeções similares foram usadas por empresas de energia para armazenamento de gás natural e para ajudar a mitigar afundamentos ou elevar terrenos de cidades como Tóquio e Taipé.

Cientistas que conversaram com o The Washington Post se mostraram divididos a respeito dessa ideia para Veneza. Um a qualificou como “terrível” e expressou preocupação sobre o modo que a superfície da cidade poderia ser elevada uniformemente. Mas outros disseram que a ideia pode funcionar. Seria necessária anteriormente a realização de testes em pequena escala. Um sistema desse tipo, se algum dia for criado, poderia trabalhar paralelamente ao Mose.

Mas o oceanógrafo Georg Umgiesser, que passou 40 anos simulando a elevação das águas na Lagoa de Veneza, acredita que a cidade acabará forçada a usar um método mais bruto para bloquear o mar: um muro permanente. Uma muralha marítima transformará a lagoa de maneiras que os venezianos têm se oposto energicamente: as águas em torno da cidade se tornariam um lago salobro. Habitats que hoje sustentam a pesca ficariam em perigo. Assim como as entradas dos portos. A cidade teria de encontrar uma nova maneira de manter a água limpa. Segundo Umgiesser, que dirige o CNR-Ismar, um conselho nacional de pesquisa na Itália, talvez alguma tecnologia ainda desconhecida possa adiar o que ele sente como inevitável. “Na sua ausência, o Mose nos dará algum tempo”, afirmou. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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