THE WASHINGTON POST - Dentro de um armazém, em um setor agitado da capital, Kiev, os incessantes estalos dos disparos ecoavam através das paredes. Homens trajando uniformes de camuflagem verde-oliva treinavam para a guerra. A maioria usava capacetes e coletes à prova de balas. Alguns calçavam tênis de cano alto. Todos engatilhavam fuzis AK-47 e esperavam sua vez de atirar contra um alvo redondo a 50 metros de distância. No centro do alvo, o rosto do presidente russo, Vladimir Putin — crivado de buracos de bala.
Invisível, ainda que palpável, é a sombra que paira sobre este novo regimento tanto quanto qualquer outra unidade do Batalhão de Azov. Alexi Suliima sabia deste nefasto passado, mas se alistou mesmo assim. Dois amigos já haviam se juntado ao Azov, e ele sentiu que este seria o grupo que o treinaria melhor para defender sua pátria-mãe.
“São sujeitos que simplesmente amam seu país e o povo ucraniano”, afirmou Suliyma, de 23 anos, ex-funcionário de construção civil. “Nunca ouvi dizer que eles fossem nazistas ou fascistas, nunca soube deles pedindo um Terceiro Reich.”
O Batalhão de Azov é a mais controvertida entre todas as forças que combatem a invasão militar russa. É uma das mais competentes unidades militares da Ucrânia e tem combatido as forças russas em localidades cruciais, incluindo a sitiada cidade de Mariupol e as proximidades da capital. Com as forças russas se retirando de regiões ao norte de Kiev, possivelmente se reposicionando no sul e no leste da Ucrânia, que Moscou declarou seus focos principais, as forças Azov poderiam crescer em significância.
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Mas a ideologia nacionalista de extrema direita do batalhão levanta preocupações sobre a possibilidade de o grupo estar atraindo extremistas, incluindo supremacistas brancos neonazistas, que poderiam representar uma ameaça no futuro. Quando Putin classificou seu ataque contra a Ucrânia como uma jornada para “desnazificar” o país, buscando deslegitimar o governo e o nacionalismo ucraniano qualificando-os como fascistas, ele se referiu em parte às forças Azov.
Ainda que o batalhão defenda atualmente um presidente judeu, cujos parentes foram mortos combatendo nazistas, seus integrantes continuam a ser usados como alvos fáceis da propaganda russa, enquanto Putin busca convencer os russos que sua custosa invasão à Ucrânia foi uma manobra necessária.
Contudo, entrevistas com combatentes Azov e um dos fundadores do grupo — e também com especialistas que acompanham o batalhão desde seu início — produzem uma imagem mais matizada a respeito de sua atual condição, mais complexa do que é conhecido convencionalmente.
Os próprios líderes e combatentes do batalhão reconhecem que alguns extremistas continuam em suas fileiras, mas o grupo evoluiu desde seu surgimento, em 2014, durante o conflito no leste da Ucrânia contra forças russas e separatistas apoiados por Moscou.
Ideologia política
Sob pressão dos Estados Unidos e das autoridades ucranianas, o Batalhão de Azov suavizou seus elementos extremistas. E o Exército ucraniano se fortaleceu nos oito anos recentes e, portanto, passou a depender menos de grupos paramilitares. Além disso, a atual guerra contra a Rússia é bem diferente do conflito de 2014, alimentada menos por ideologia política e mais por um senso de patriotismo e ultraje moral em face à invasão não provocada da Rússia à Ucrânia, especialmente em razão dos ataques contra os civis ucranianos. Extremistas não parecem compor grande parte dos estrangeiros que foram para o país pegar em armas contra a Rússia, afirmaram analistas.
“Vemos combatentes chegando de todas as partes do mundo, inflamados pelo que Putin fez”, afirmou Colin Clarke, diretor de pesquisa do Soufan Group, uma firma de consultoria em inteligência e segurança. “Portanto, não se trata de uma questão de defender uma ou outra ideologia — eles estão simplesmente perplexos com o que viram os russos fazer.”
“Certamente não foi assim em 2014″, acrescentou ele. “Então, ainda que o elemento da extrema direita ainda seja um fator, considero-o uma parte muito menor em relação ao todo. Isso se diluiu, em alguns aspectos.”
Analistas também notaram que o movimento de extrema direita na Ucrânia, além de fraco dentro do país, é eclipsado por movimentos de extrema direita de outras partes da Europa.
Em entrevista, o mais graduado comandante do Batalhão de Azov e cofundador da força, coronel Andrii Biletskii, não negou suas próprias inclinações ultraconservadoras de extrema direita nem a presença de extremistas nas unidades que comanda. Mas rejeitou alegações a respeito de posicionamentos nazistas ou de supremacismo branco, descrevendo essas acusações como propaganda russa.
“Não nos identificamos com a ideologia nazista”, afirmou Biletskii, de 41 anos. “Temos alguns integrantes com visões políticas conservadoras, e me considero nesse campo. Assim como qualquer pessoa, porém, não quero que meu ponto de vista seja definido por outros. Não sou nazista. Nós rejeitamos completamente o nazismo.”
Michael Colborne, que monitora e pesquisa a extrema direita e escreveu um livro sobre o Batalhão de Azov, afirmou que “não o classificaria explicitamente como um movimento neonazista”.
“Claramente há neonazistas em suas fileiras”, afirmou Colborne, autor de From the Fires of War: Ukraine’s Azov Movement and the Global Far Right (Das chamas da guerra: o movimento ucraniano de Azov e a extrema direita global).
“Há elementos que são neofascistas e há elementos talvez mais similares ao nacionalismo ucraniano mais tradicional”, afirmou ele. “Em seu núcleo, ele é hostil à democracia liberal, hostil a tudo que decorra da democracia liberal, como direitos de minorias, direitos eleitorais, coisas assim.”
Ataques xenofóbicos
O Batalhão de Azov emergiu na primavera de 2014, como uma força de voluntários lançada pelo movimento ultranacionalista Patriota da Ucrânia e pelo grupo extremista Assembleia Social-Nacional. Ambas as organizações se envolveram em ataques xenofóbicos contra migrantes, ciganos e outras minorias.
Biletskii, que atuou como líder de ambos os grupos, afirmou em 2010 que o propósito da Ucrânia era “liderar as raças brancas do mundo numa cruzada final (…) contra as Untermenschen (raças inferiores) lideradas por semitas”, de acordo com reportagens locais. Seus apoiadores o chamavam de “Bely Vozd”, ou “Líder Branco”.
Biletskii negou as alegações de xenofobia, afirmando que o regimento Azov atraiu judeus das Forças de Defesa de Israel e muçulmanos chechenos, o que “não combina muito com supremacismo branco”. Ainda assim, Biletskii foi citado no passado expressando convicções supremacistas brancas. Ele negou ter feito essas declarações.
Em 2014, Biletskii foi eleito para o Parlamento, onde atuou como legislador até 2019. Em 2016, ele criou o Partido do Corpo Nacional, composto em sua maioria por veteranos do Batalhão de Azov.
A unidade paramilitar era financiada inicialmente por ucranianos ricos e contava com a ajuda do então ministro do interior — e o investimento logo se pagou. Depois da invasão russa de 2014 e da anexação da Crimeia, os combatentes Azov repeliram os separatistas com apoio russo da região do Donbas, no leste da Ucrânia, e conseguiram manter a cidade portuária de Mariupol sob controle ucraniano. “São nossos melhores combatentes”, afirmou publicamente na época o então presidente da Ucrânia, Petro Poroshenko.
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Apesar de seus sucessos militares, o Batalhão de Azov continuou a ser criticado, classificado como adepto da ideologia nazista. Mesmo que o grupo tenha negado insistentemente afiliações nazistas, os uniformes e as tatuagens de seus combatentes ostentam vários símbolos fascistas e nazistas, incluindo suásticas e símbolos da SS. Em 2015, Andrii Diachenko, na época porta-voz do regimento, afirmou ao USA Today que entre 10% e 20% dos recrutas do Batalhão de Azov eram nazistas.
Nos anos seguintes, funcionários de direitos humanos da ONU acusaram o regimento de violar o direito internacional humanitário; EUA e Canadá declararam que os Exércitos de seus países não dariam treinamento a combatentes Azov em razão das ligações da unidade com neonazistas, apesar de Washington ter suspendido seu banimento desde então. Alguns congressistas americanos continuaram a insistir para que o Batalhão de Azov seja designado como organização terrorista estrangeira.
O Facebook também designou o Batalhão de Azov como uma “organização perigosa” e baniu o grupo de suas plataformas dois anos atrás. Mas depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, em 24 de fevereiro, o Facebook reverteu seu banimento, afirmando que faria “uma exceção específica para comentários elogiando o regimento Azov estritamente no contexto da defesa da Ucrânia ou em relação ao seu papel como parte da guarda nacional da Ucrânia”.
O gigante das redes sociais enfatizou que não suspendeu seu banimento contra “qualquer discurso de ódio, simbolismo de ódio, elogio à violência ou elogio genérico, apoio ou representação do regimento Azov”. Hoje, o Batalhão de Azov está sendo muito elogiado por sua forte resistência contra a Rússia em Mariupol. Os vários canais de Telegram do batalhão postam notícias de suas façanhas e vídeos de suas batalhas, detalhando suas vitórias com detalhes de arrepiar.
O batalhão possui mais de mil combatentes em Kiev, Kharkiv e Dnipro, além de outras unidades menores estacionadas em seis outras cidades e vilarejos espalhados pelo país, afirmou Biletskii, que estimou o número total de soldados Azov em mais de 10 mil. Apenas em Mariupol, afirmou ele na semana passada, cerca de 3 mil combatentes de seu batalhão enfrentavam 14 mil soldados russos “combatendo em terra e água, bem como entre as forças especiais da marinha”.
As forças Azov, afirmou Biletskiy, incluem hoje escritores e outros progressistas — e até pessoas de extrema esquerda e antifascistas. “Estamos em guerra pela existência da Ucrânia neste momento”, afirmou ele. “No mês passado, não perguntei para ninguém que tenha aparecido para se juntar a nós a respeito de suas posições políticas. Hoje, os ucranianos têm apenas uma alternativa para orientação política: a favor ou contra a Ucrânia.”
A Rússia também possui um longo histórico de tolerar grupos e indivíduos neonazistas, e personalidades de extrema direita nos EUA e outros lugares têm louvado Putin desde que sua invasão começou. Putin concedeu abrigo seguro para o Movimento Imperial Russo, uma organização militante de supremacistas brancos que ajudou anteriormente as forças apoiadas pela Rússia no leste da Ucrânia, de acordo com o Centro Stanford para Segurança Internacional e Cooperação. Membros do Grupo Wagner, uma sigilosa organização de mercenários russos, também têm posicionamentos neonazistas e, acredita-se, estão operando amplamente na Ucrânia.
Se a guerra se arrastar, a presença e a influência de extremistas entre os ucranianos, por menor que seja neste momento, poderia crescer, afirmam analistas. Estrangeiros que se uniram aos combates por outras razões podem se radicalizar por lutar ao lado de indivíduos extremistas, por sofrer os efeitos do estresse pós-traumático ou pela frustração em razão dos países ocidentais não se esforçarem mais para ajudar a Ucrânia. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL