Um projétil de artilharia que contém dezenas ou centenas de pequenas bombas, como granadas, as chamadas “submunições”. É assim que se definem as controvertidas bombas de fragmentação enviadas pelos Estados Unidos à Ucrânia.
Do ponto de vista militar, faz sentido: um único disparo causa uma série de explosões e cobre uma área muito maior que os projéteis, mísseis e foguetes convencionais.
“São muito mais eficazes contra alvos espalhados como infantaria, artilharia e comboios de blindados”, explicou o coronel aposentado da marinha americana Mark Cancian, conselheiro do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, em entrevista ao Estadão.
“Análises sobre a guerra do Vietnã mostram que as bombas de fragmentação eram oito vezes mais eficientes contra infantaria que um projétil comum”, detalhou.
O efeito no campo de batalha levou ao desenvolvimento das bombas, usadas pela primeira vez durante a 2ª Guerra, na antiga União Soviética. Até que o uso em larga escala a partir da Guerra Fria expôs o drama humanitário, que levou à proibição das armas em 123 países pela Convenção das Bombas de Fragmentação, de 2008.
O problema é que nem todas as pequenas bombas explodem com o impacto e a área contaminada fica como um campo minado, mas, geralmente, sem qualquer tipo de sinalização. Por isso, as bombas continuam apresentando riscos à população civil por anos mesmo depois que a guerra acaba e as tropas se recolhem.
A face mais cruel é o impacto dos explosivos adormecidos sobre as crianças, vítimas frequentes das bombas deixadas para trás pela curiosidade que as submunições pequenas e brilhantes despertam.
A Coalizão Contra Bombas de Fragmentação mostrou que as crianças correspondem a 66% dos mortos e feridos por submunições em 2021, o último ano analisado. Ao todo, 97% das vítimas eram civis.
“É proibido justamente por ser uma arma que não consegue fazer a discriminação entre civil e combatente, por isso pode ser considerado um crime de guerra”, destacou a diretora da ONG Humans Right Wach no Brasil, Maria Laura Canineu ao Estadão.
O texto da convenção é amplo e proíbe a produção, aquisição, transferência e armazenamento. Também exige a destruição dos estoques, ajuda para as vítimas e recursos para a limpeza de áreas contaminadas, um processo que pode levar décadas.
O Laos é o maior exemplo disso. O país é o mais contaminado do mundo por bombas de fragmentação, cinco décadas depois dos conflitos da Guerra Fria. Durante esse período, os explosivos deixaram cerca de 20 mil mortos e feridos. As crianças são 40% das vítimas.
O legado das bombas de fragmentação também prejudica a retomada de atividades econômicas, como a agricultura e representa uma ameaça para os refugiados que tentam voltar para casa depois que o som das explosões deveria ter silenciado.
Bombas de fragmentação na Ucrânia
Na Ucrânia, as bombas de fragmentação foram usadas no conflito de 2014, que opôs o governo central aos separatistas do leste, e voltaram ao campo de batalha na guerra contra a invasão russa. Uma investigação da Human Rights Watch descobriu centenas de ataques ao longo do conflito.
A Rússia é acusada por um dos ataques mais letais registrados. Em abril do ano passado, atingiu uma estação lotada com pessoas que tentavam fugir de Kramatorsk deixando ao menos 58 mortos e mais de 100 feridos.
Ao Estadão diretora da divisão de armas da ONG, Mary Wareham, disse que é “decepcionante” ver o uso das bombas de fragmentação na Ucrânia.
Mary Wareham, diretora da divisão de armas da Human Rights Watch
Mas não é só a Rússia que recorre às bombas de fragmentação no conflito. Na cidade de Izium, há evidências de repetidos ataques durante a ocupação russa, que durou até setembro do ano passado e a acusação recai sobre Kiev.
Mary Wareham conta que, quando a cidade foi liberada, uma equipe da Human Rights Watch foi até lá para investigar eventuais violações de direitos humanos cometidas pela Rússia e se deparou com os rastros dos ataques ucranianos.
“Quando os investigadores olharam para a direção de onde os foguetes foram disparados, apontava para a força ucraniana. E faria pouco sentido a Rússia usar esse tipo de arma na cidade que controlava”, relatou Wareham.
Os estoques que a Ucrânia usou no primeiro ano de guerra são, em grande parte, uma herança dos laços com a Rússia e foram fabricados pela antiga União Soviética até 1991.
Agora, Kiev conta também com as bombas de fragmentação dos Estados Unidos, que começaram a chegar este mês e já despertaram revolta na Rússia.
Moscou acusou a Ucrânia de usar esse tipo de arma no ataque que matou o jornalista russo Rostislav Zhuravlev e deixou mais três feridos no fim de semana. O correspondente da agência de notícias RIA teria sido atingido pelas bombas de fragmentação na região de Zaporizhzhia, segundo o Ministério da Defesa da Rússia.
A porta-voz da pasta Maria Zakharova denunciou o que chamou de “terror criminoso” da Ucrânia e, sem apresentar evidências, disse que o ataque pareceu deliberado.
“Os responsáveis pela represália brutal contra o jornalistas russo enfrentarão as punições merecidas. As responsabilização será compartilhada por aqueles que forneceram as bombas de fragmentação aos seus protegidos de Kiev”, vociferou Zakharova.
Cada projétil americano fornecido à defesa ucraniana pode disparar até 88 submunições e cobrir uma área de até 30.000 m².
Os Estados Unidos - assim como Ucrânia e Rússia - não fazem parte da convenção que proíbe as bombas, mas atropelaram a própria legislação para ajudar Kiev. O país proíbe o envio de bombas de fragmentação que tenham taxa de falha (percentual das bombas que não explodem) superior a 1%. Não é esse o caso.
Mary Wareham, diretora da divisão de armas da Human Rights Watch
De acordo com o próprio governo americano, 2,35% das submunições não explodem, mas esse número também é alvo de questionamentos e a Human Rights Watch cobra mais transparência dos Estados Unidos.
“Nenhuma mídia independente conseguiu checar isso a fundo. Acreditamos que o número seja maior, entre 6% e 14%”, aponta Mary Wareham citando publicações da imprensa americana.
As críticas também apontam que uma coisa é o cenário controlado dos testes, outra coisa é o uso das bombas durante o conflito, explicou Mark Cancian.
“Os números refletem de forma precisa o percentual de falha nos testes. Agora, os testes têm sido criticados porque não representam todos os cenários que podem ocorrer. Alguns argumentam que a taxa é maior dependendo de fatores como o alvo e as condições climáticas”.
O governo Joe Biden reconhece que foi uma decisão difícil, mas argumenta que a Rússia usa bombas de fragmentação com taxas de falha estimadas em até 40% e que a Ucrânia pediu as armas para defender o próprio território.
“Não é uma situação como os Estados Unidos estão disparando contra o Afeganistão ou outro país. As munições serão usadas pela Ucrânia dentro da Ucrânia. Acredito que é uma decisão que o governo ucraniano democraticamente eleito deveria poder tomar. Não devemos anulá-los”, defende Cancian.
O argumento, no entanto, não convence os críticos como Mary Wareham. “O uso dessas armas é inaceitável em qualquer circunstância”, rebate.
Bombas expõem dificuldades da Ucrânia na batalha
No plano de fundo do apelo ucraniano pelas controvertidas bombas, está a esperada e, até agora, lenta contra ofensiva ucraniana. “Ter que apelar para as bombas de fragmentação mostra que está mais difícil do que se esperava. Caso contrário, a Ucrânia não precisaria pedir essas armas agora”, avalia o professor de relações internacionais da ESPM, Gunther Rudzit.
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A Rússia teve meses para consolidar uma extensa frente de fortificações móveis e estáticas, incluindo trincheiras aos moldes da 1ª Guerra. Nesse cenário, a Ucrânia enfrenta dificuldades para atingir as posições russas sem uma força aérea robusta e não há qualquer previsão de mudança na ocupação do espaço aéreo em curto prazo.
Depois de certa resistência, a Otan vai enviar os caças F-16, que Kiev tanto pediu. Mas os pilotos ucranianos, acostumados com as aeronaves da antiga União Soviética, precisam de treinamento para operar os modernos caças da Otan - o que exige tempo. Além disso, o alto nível de defesa antiaérea que caracteriza o conflito deve limitar a atuação dos F-16 quando eles entrarem na guerra.
Nesse sentido, as bombas de fragmentação aparecem como alternativa para otimizar o esforço ucraniano para afastar as tropas inimigas no momento em que as munições de Kiev ficam mais escassas.
“Essas bombas teriam o poder neste momento de, com muito menos projéteis e efetividade maior, romper o sistema defensivo e produzir danos nessas posições”, explica o professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares da ECEME, Sandro Teixeira.
Kiev foi arrastada por Moscou para uma guerra de atrito, que exige muito poder de fogo e começa a sofrer com a falta de munição. A Ucrânia queima mais artilharia do que os Estados Unidos e os aliados da Otan conseguem produzir e, mesmo com os incentivos à indústria bélica, aumentar os estoques requer tempo.
Por trás do descompasso, há uma diferença na concepção de guerra entre potências que estão de lados opostos no conflito, afirma Augusto Teixeira, professor de Relações Internacionais (UFPB), coordenador do Grupos de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Segurança Internacional (GEESI).
De um lado, o ocidente que investiu em armas mais tecnológicas, precisas e caras. Do outro, a Rússia, que seguiu os padrões da antiga União Soviética, e manteve de armas mais simples que podem ser produzidas em larga escala, como a artilharia que causou um efeito devastador em Mariupol.
“A preparação para guerra que preponderou no Imaginário da Otan do final da Guerra Fria para cá eram uma guerras de baixa intensidade, contra terrorismo, guerras limitadas... O que a gente está vendo na guerra Rússia-Ucrânia é uma guerra convencional, de elevada intensidade e utilização cavalar de artilharia”, resume Teixeira.
O custo para esse reforça que Kiev espera com as bombas de fragmentação, entretanto, são os riscos impostos aos próprios ucranianos civis e militares. Isso porque as submunições que não explodem podem ficar no caminho entre as tropas russas e ucranianas.
“Se a Ucrânia usa essas bombas e avança, tem uma chance das próprias tropas serem prejudicadas. É um problema como o mas minas: tem um elemento defensivo que aumenta o custo de acesso do seu inimigo, mas aumenta o tempo e os riscos de um contra-ataque”, exemplifica Augusto Teixeira. .
Com todas as dificuldades enfrentadas pela Ucrânia na contraofensiva, todos os entrevistados pela reportagem concordam com uma coisa: as bombas de fragmentação podem até reforçar a defesa ucraniana, mas são incapazes de virar o jogo sozinhas.
“Um determinado tipo de arma dificilmente muda o corpo da batalha. Tem diversos fatores associados como a qualidade da liderança, o moral da tropa e até a sorte, que pode ser um elemento importante no campo de batalha. O equipamento pode ser um elemento importante, mas sozinho não resolve”, conclui Teixeira.