ENVIADA ESPECIAL AO RIO DE JANEIRO - Ato final da presidência do Brasil no Mercosul, o encontro do bloco sul-americano que acontece esta semana no Rio de Janeiro fecha também o ano em que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentou pôr o País de volta ao cenário internacional. A ‘volta’ do Brasil, como diz Lula, foi marcada também pelos tropeços do petista em política externa. São polêmicas que vão da guerra na Ucrânia à crise na Venezuela e, mais recentemente, o conflito na Faixa de Gaza.
De concreto, o País gostaria de anunciar nesta semana o acordo de livre comércio com a União Europeia, mas chegará à cúpula tendo pela frente encontros cancelados e um cenário de esfriamento das negociações.
Analistas ouvidos pelo Estadão avaliam que, apesar das controvérsias presidenciais, o saldo é positivo a partir da retomada do diálogo com parceiros estratégicos, com o objetivo de colocar o País como um ator regional capaz de construir pontes a partir do chamado “Sul Global”. Apesar disso, dizem os especialistas, a estratégia ainda precisa trazer resultados mais concretos. E a Cúpula do Mercosul será um teste para isso.
O analista Guilherme Casarões (FGV) diz que o Brasil chega ao encontro “plenamente habilitado, mas diante de desafios que ainda não foram superados”. O tempo que o presidente passou fora do Brasil (2 dos 12 primeiros meses de mandato), diz ele, foram importantes para “manifestar seu desejo por liderança” e compromisso com parceiros estratégicos que, nas palavras de Casarões, foram “abandonados ao longo dos últimos anos”.
O problema, ressalva, é que “o Brasil não parece ter adotado uma linha clara de atuação internacional”. Exemplos disso são as tentativas frustradas de se apresentar como mediador para os conflitos na Ucrânia e na Faixa de Gaza. “Daqui em diante, será importante o Brasil abraçar prioridades dentro do que nossas capacidades diplomáticas permitem”, sugere.
Ruídos com o Ocidente
“Há uma retomada do prestígio”, afirma o professor de Relações Internacionais da FAAP Vinícius Vieira. “A maneira como o Brasil foi cortejado por China e EUA - incluindo a parceria assinada entre Joe Biden e Lula no âmbito trabalhista -, mostra que há uma busca pelo Brasil, que tem esse status de Estado-pivô. Ou seja, uma potência regional que tem a capacidade de atrair apoio das superpotências globais e, com isso, aumentar o seu poder de barganha. Agora estamos em uma posição melhor (na comparação com o governo anterior) mas ainda há ruídos, principalmente, com o Ocidente”, explica.
Outro desavio é alinhar essa política externa ativa aos desafios internos. Nesse sentido, é preciso saber se o governo vai conseguir reverter essa melhora da imagem em retornos concretos. “Houve uma retomada de prestígio, mas por outro lado, o Brasil não conseguiu atingir feitos palpáveis”, destaca Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da FGV, que aponta como exceções a retomada da interação estratégica com China e EUA.
Esse último, no entanto, evidencia a diferença entre o prestígio e a prática, como no caso do Fundo Amazônia. Abandonado sob Jair Bolsonaro, o programa foi retomado com a promessa de novos apoiadores de peso, inclusive os Estados Unidos, mas até agora só recebeu 3% do valor esperado. Dos R$ 3 bilhões anunciados para preservação da floresta, só R$ 105 milhões foram depositados de fato.
O cenário em si impõe suas dificuldades. Nos EUA, o democrata Joe Biden entrou em pé de guerra com os radicais republicanos que ameaçaram deixar o governo sem verba a um ano das eleições americanas. Com o risco de shutdown, orçamento deixou de fora até a Ucrânia, tida como uma das prioridades da Casa Branca pelo menos até o início de uma nova guerra, dessa vez, na Faixa de Gaza.
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Negociações do acordo Mercosul-UE
Esse mundo mais tenso e belicoso, no entanto, forçou uma reconfiguração de alianças e uma brecha para novas oportunidades. Nesse sentido, as negociações entre o Mercosul e a União Europeia são um teste para a liderança brasileira.
“É um desafio para ambos os lados de fato implementar o acordo”, reconhece Gustavo Müller do Centro de Estudos para Governança Global da Leuven, a principal universidade da Bélgica. A conclusão do acordo, que ficou mais distante nos últimos dias, seria, porém, algo prático, concreto, para que, a partir daí, os países possam modernizar, avalia.
Após duas décadas de discussão, o acordo de livre comércio entre os blocos foi firmado em 2019 e o texto passa por um processo de revisão técnica, que revelou novas dificuldades. A Europa apresentou exigências adicionais na área ambiental, motivadas pela preocupação da sociedade civil com a crise climática, mas também por um forte lobby do agro, que teme a competição principalmente com Brasil e Argentina. Do lado brasileiro, por sua vez, a preocupação é manter o controle sobre as compras governamentais, que Lula vê como mecanismo de fomento da economia.
O petista manifestou a vontade de anunciar o acordo antes de entregar a presidência rotativa do Mercosul ao Paraguai, em 7 de outubro, mas a chegada de Javier Milei ao poder na Argentina esfriou as negociações.
O presidente da França, Emmanuel Macron, se posicionou nos últimos dias contra o acordo que chamou de “antiquado”. Lula, por sua vez, criticou o protecionismo francês e disse que essa “não é a mesma posição da União Europeia, que pensa outra coisa”.
Müller, que tem estudados essa relação entre as regiões, lembra que apesar do impasse há um interesse da Europa, forçada a buscar alternativas à dependência da Rússia depois da invasão da Ucrânia. “Os europeus renegaram a região por um bom tempo. Agora, eles veem que estão perdendo a corrida principalmente na África, mas também na América Latina”.
Esse senso de urgência foi impulsionado pela eleição de Milei, que já chamou o Mercosul de “estorvo”. Como presidente eleito, o libertário deu sinais de moderação, ao enviar Diana Mondino, a futura chanceler para Brasília, onde teve um encontro com o ministro das Relações Exteriores Mauro Vieira. O Mercosul estava na pauta.
Embora o teor das negociações de última hora não seja público, Gustavo Müller acredita que a cobrança europeia por compromissos ambientais pode ser contornada com compromissos que já existem. No que diz respeito à preocupação brasileira com a indústria local, talvez seja necessário buscar mais soluções criativas, como instrumentos de transferência de tecnologia. Não seria usual para Europa, mas pode ser trabalhado, defende o pesquisador.
O texto ainda precisará ser aprovado no Parlamento Europeu, que tem eleições marcadas para 2024, e por todos os 31 países envolvidos. Isso significa que o acordo — o maior entre blocos do mundo — ainda deve se arrastar até ser plenamente ratificado, mas poderia ser parcialmente implementado até que todos os detalhes sejam resolvidos. Isso desde que o texto base seja concluído.
“A União Europeia já fez isso antes. Mesmo que alguns parlamentos nacionais estejam contrários, eventualmente, se pode implementar (o acordo) de forma provisória e esperar um momento mais adequado para ratificá-lo integralmente”, conclui o pesquisador ao lembrar que esse equilíbrio de forças dentro da Europa muda eleição após eleição.
Um ano de polêmicas
Ainda nos primeiros meses do mandato, Lula casou atrito com os vizinhos sul-americanos ao defender a Venezuela do ditador Nicolás Maduro. “É o começo da volta do Maduro”, disse o petista ao recebê-lo no Palácio do Planalto e ecoar o seu discurso que culpa as sanções de Washington pela crise em Caracas. A declaração foi rebatida à esquerda pelo chileno Gabriel Boric e à direita pelo uruguaio Luis Lacalle Pou.
A polêmica terminou ofuscando o encontro de líderes da América do Sul, em Brasília. O documento final trouxe apenas promessas de maior integração regional, mas sem medidas concretas e sem menção à União de Nações Sul-Americanas, a Unasul defendida por Lula.
Fora da América Latina, o petista foi duramente rebatido por Estados Unidos e Europa, acusados por Lula de prolongar a guerra na Ucrânia em referência ao apoio militar da Otan contra invasão russa. E essa foi apenas uma das polêmicas envolvendo o conflito no Leste Europeu. Lula também questionou a permanência do Brasil no Tribunal Penal Internacional, após afirmar que Vladimir Putin, acusado por crimes de guerra e alvo de um mandado de prisão, poderia visitar o país sem medo de ser preso.
As idas e vindas do petista com relação ao conflito acenderam o alerta para um possível alinhamento brasileiro ao eixo antiocidental, protagonizado por Moscou e Pequim. Preocupação essa que foi reforçada pela adesão de autocracias ao BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). O governo brasileiro era contra, mas acabou cedendo à pressão chinesa pela expansão que inclui Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egito, Irã e Etiópia.
“Os novos países-membros têm, em sua maioria, uma postura muito militante contra o Ocidente. Então nós estamos participando de um grupo que é claramente antiocidental”, disse na época o ex-embaixador Rubens Barbosa ao Estadão.
Defendida pelo Brasil, a Argentina também foi convidada, mas a futura chanceler Diana Mondino já disse que o país não se juntará ao bloco. A primeira derrota imposta por Javier Milei ao governo petista na arena internacional.
Em outra arena, a do Oriente Médio, o presidente voltou a causar polêmica recentemente ao equiparar o Estado de Israel ao grupo terrorista Hamas. Internamente, declarações do petista sobre o conflito na Faixa de Gaza foram rebatidas pela comunidade judaica como “equivocadas e perigosas”.