Centenas de pessoas protestaram e tentaram correr atrás de passageiros judeus que desembarcaram em Makhachkala, capital da região do Daguestão no último domingo, 28. Eles proferiram gritos antissemitas e queriam checar os passaportes dos passageiros para saber quem era israelense. Em Berlim, capital de um país que carrega consigo o passado nazista, casas de residentes judeus foram pichadas com a estrela de Davi, uma prática muito conhecida durante o Terceiro Reich.
Nos Estados Unidos, o palestino-americano de 6 anos Wadea al-Fayoume levou 26 facadas e foi brutalmente assassinado em um crime de islamofobia. No Brasil, um casal de refugiados afegãos foi hostilizado e acusado de fazer parte do Hamas.
O ataque terrorista do Hamas contra Israel em 7 de outubro e a resposta israelense com ataques aéreos terra e a invasão da Faixa de Gaza, levou a uma alta de casos de antissemitismo e islamofobia no Brasil e no exterior. Analistas consultados pelo Estadão atribuem essa alta a um preconceito enraizado contra judeus e muçulmanos em diversas sociedades.
No Brasil, segundo entidades judaicas, houve um aumento de 1.200% dos casos de antissemitismo desde o início da guerra. Casos de preconceito contra muçulmanos foram registrados sobretudo em São Paulo, onde a comunidade de refugiados de origem islâmica é maior.
Nos Estados Unidos, o aumento de casos de ódio contra judeus é de 400% e os ataques contra muçulmanos têm o maior número desde 2015. Tendências similares foram observadas na Europa, em países como Reino Unido, Alemanha e França.
De acordo com um relatório da Liga Anti-Difamação (ADL), divulgado no dia 25 de outubro, incidentes antissemitas nos Estados Unidos tiveram um aumento de quase 400% desde o início da guerra entre Israel e o grupo terrorista Hamas.
A ADL também aponta que houve um crescimento de 388% nos incidentes de ódio contra judeus em todo o território americano entre os dias 7 e 23 de outubro. Os EUA tem a maior comunidade judaica no mundo fora de Israel, com um pouco mais de 6 milhões de pessoas.
O aumento de manifestações antissemitas nas universidades americanas também tem preocupado. Na prestigiosa Universidade de Cornell, ameaças de morte contra judeus foram publicadas na internet. A Casa Branca emitiu um comunicado em que confirma o “aumento alarmante” de ataques antissemitas em escolas e universidades.
“Costumo dizer que quando vemos uma onda de racismo desencadeada por um fato específico, isso é sinal de que o racismo estava ali antes, não foi produzido pelo gatilho específico, mas por uma estrutura formativa anterior”, avalia Michel Gherman, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e assessor acadêmico do Instituto Brasil Israel (IBI).
“O 7 de outubro foi mais do que um ato terrorista, foi um massacre, estruturado por referências genocidarias, o que se seguiu foi uma reação desproporcional das Forças de Defesa de Israel em Gaza. Se isso tudo produziu antissemitismo, é sinal de que o antissemitismo já estava antes”.
De acordo com o Conselho de Relações Islãmico-Americanas (CAIR), cerca de 774 queixas de islamofobia foram relatadas nos EUA desde os ataques terroristas do Hamas no dia 7 de outubro. Segundo a organização, este é o maior número de reclamações desde 2015. O Comitê Árabe-Americano Antidiscriminação (ADC), disse à Associated Press que a organização recebeu mais de 100 relatos que incluem ameaças, assédio verbal, intimidação e ataques físicos desde 7 de outubro.
Para Natalia Nahas, doutora em Ciência Política e pesquisadora do Núcleo de Trabalho do Oriente Médio e Mundo Muçulmano da USP, os crimes de ódio não contribuem para que ocorra um entendimento do que está acontecendo no Oriente Médio. “Não ajuda em uma maior compreensão das violações de direitos humanos e nem uma solução negociada e preocupa que essas linhas continuem a serem ultrapassadas”, aponta a pesquisadora.
Brasil
O Brasil não está alheio a este movimento de aumento do antissemitismo e da islamofobia. De acordo com dados da Confederação Israelita do Brasil (Conib), os ataques antissemitas cresceram 1,200% no País desde o dia 7 de outubro e a Conib já acionou a polícia e o Ministério Público. Neste período, cartazes também foram vistos na capital carioca com a frase “judeu, câncer do mundo”. A comunidade judaica brasileira é a segunda maior da América Latina, com 120 mil pessoas.
A entidade que representa a comunidade judaica no Brasil abriu um canal de denuncias de antissemitismo junto com a Federação Israelita do Estado de São Paulo (FISESP). As denúncias são enviadas diretamente para as autoridades competentes.
O professor da UFRJ relembra que casos de antissemitismo já foram registrados por políticos de diversos espectros. “No Brasil, o uso do tema ocorre por grupos da política local, bolsonarista ou de esquerda, mas esse é um fenômeno que ocorre em vários cantos do mundo, o antissemitismo está em alta”, completa Gherman.
A secretária Nacional de Finanças e Planejamento do Partido dos Trabalhadores (PT) e conselheira de Itaipu, Gleide Andrade de Oliveira, afirmou no dia 24 de outubro em uma publicação na plataforma X que Israel não “merecia ser um Estado”, classificando o país como “assassino” e “vergonha da humanidade”. Após a repercussão negativa dos posts, ela pediu desculpas à comunidade judaica e reiterou que defende a posição do governo do Brasil de defender um cessar-fogo entre Israel e o grupo terrorista Hamas.
No governo de Jair Bolsonaro os casos também aumentaram, segundo o Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil, com 55 casos de antissemitismo e 114 de neonazismo entre janeiro de 2019 e junho de 2022. Um dos casos mais famosos ligados ao governo foi quando o então secretário da Cultura, Roberto Alvim, fez um discurso similar ao do ministro da propaganda nazista, Joseph Goebbels, com uma música de Richard Wagner, um dos compositores preferidos de Adolf Hitler.
Casos de islamofobia também foram registrados. Um casal de refugiados afegãos no Brasil foram chamados de terroristas e militantes do Hamas no bairro do Bom Retiro, na região central de São Paulo. A mulher afegã usava trajes típicos da religião muçulmana.
Para Nahas, não há um incentivo ao diálogo democrático sobre o conflito Israel-Palestina. “Existe um movimento de que se o outro pensa diferente de mim, então ele vai ser excluído, quando características fenotípicas saltam os olhos, é mais fácil de excluir aquele outro”, afirma a pesquisadora. “Quando este caráter está ligado à guerra, pode ocorrer uma relação entre a violência política e o caráter religioso em uma tentativa de deslegitimar ou desumanizar aquela pessoa como diferente, e facilita a criação de um inimigo”.
No Brasil, existem entre 800 mil e 1,5 milhão de muçulmanos, de acordo com dados da Federação das Associações Muçulmanas no Brasil (Fambras). No ano passado, pesquisadores do Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos (Gracias), ligado à Universidade de São Paulo (USP) , lançaram o primeiro relatório sobre islamofobia no País. Segundo o relatório, a violência verbal é apontada como mais frequente tanto pelos homens (82%) quanto pelas mulheres (92%). Os ambientes de trabalho também são apontados com alta incidência de islamofobia, com 46,4% dos homens afirmando que sofrem violências no trabalho e 39,9% das mulheres.
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Europa
No continente europeu, a situação também é preocupante, com relatos constantes de antissemitismo e islamofobia desde antes da guerra “As autoridades dos países europeus têm a responsabilidade de garantir que todos estejam seguros e protegidos da violência e da discriminação”, afirmou Benjamin Ward, vice-diretor para a Europa e Ásia Central da Human Rights Watch.
Na França, o ministro do Interior, Gérald Darmanin, afirmou que 588 atos antissemitas ocorreram no país após o início da guerra e 336 pessoas foram presas. Incidentes de pichações de estrelas de Davi em apartamentos ou comércios de pessoas de origem judaica também ocorreram em território francês, assim como na Alemanha, onde 202 ataques antissemitas foram registrados.
Um artigo publicado na revista alemã Der Spiegel relata que os judeus que vivem no país europeu estão com medo e tentam esconder elementos físicos de sua identidade judaica como o uso da Kipá. A revista também relata que judeus que vivem no país estão evitando falar hebraico em público. Segundo dados oficiais, cerca de 15 mil israelenses vivem na Alemanha.
Os crimes islamofóbicos também aumentaram de modo acentuado. Em Londres, capital do Reino Unido, 408 incidentes antissemitas foram registrados desde o dia 7 em comparação com 28 no mesmo período do ano passado, enquanto houve 174 crimes islamofóbicos em comparação com 65 no ano passado.
Questionada se as manifestações favoráveis a causa palestina poderiam fazer com que a islamofobia aumentasse, a pesquisadora Natalia Nahas apontou que é necessário fazer uma diferença entre o protesto pela autodeterminação dos palestinos e o terrorismo. “A rigor você fazer uma manifestação com uma bandeira da Palestina não tem nada a ver com o ataque do Hamas, é um apoio a uma causa de autodeterminação e que não deveria provocar nenhum tipo de reação islamofóbica”.