A histórica decisão do Reino Unido de sair da União Europeia já começa a ameaçar a estabilidade de um bloco democrático de nações que coexiste há décadas. E traz incerteza sobre um arranjo ainda maior: estará a ordem pós-1945, imposta ao mundo pelos Estados Unidos e seus aliados, também ameaçada de desestabilização?
A opção britânica de recolher-se no que alguns críticos do resultado do referendo consideram algo como uma “Little England” é apenas uma das incertas perspectivas sugerindo um possível reordenamento global.
O baixo crescimento econômico vem abalando a confiança na tradicional economia liberal, especialmente em face das oscilações causadas pelo comércio e pela crescente imigração. O populismo vem brotando no Ocidente. Fronteiras no Oriente Médio são apagadas em meio a uma onda de sectarismo. A China vem se tornando mais assertiva, e a Rússia, mais aventureira. Refugiados de países pobres castigados pela guerra cruzam territórios e mares em número recorde para tentar a vida melhor mostrada pelas comunicações modernas.
Acompanhadas de uma reviravolta na política e nos fundamentos da classe média, no mundo desenvolvido e no mundo em desenvolvimento, essas forças estão se combinando como nunca para desafiar as instituições e alianças ocidentais estabelecidas depois da 2ª Guerra Mundial, amplamente responsáveis pela manutenção do equilíbrio no mundo.
A Grã-Bretanha tem sido um pilar dessa ordem, bem como um de seus beneficiários. Ocupa um lugar importante nas Nações Unidas e faz parte da Otan, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial – instituições do pós-guerra incumbidas de promover a paz, a segurança e a prosperidade do mundo.
Agora a Grã-Bretanha passou a simbolizar as fraturas no alicerce do pós-guerra. Sua saída da UE enfraquece o bloco que é o maior mercado isolado do planeta e âncora da democracia global. Também solapa o consenso do pós-guerra de que alianças entre nações são essenciais para manter a estabilidade e diluir o nacionalismo que no passado mergulhou a Europa em conflitos sangrentos – mesmo com o nacionalismo ressurgindo.
“Não é como se esse fato, por si só, vá destruir completamente a ordem internacional”, diz Ivo H. Daalder, ex-representante americano na Otan e hoje presidente do Conselho de Chicago para Assuntos Globais. “Mas abre um precedente. É potencialmente corrosivo.”
Enquanto líderes europeus realizavam agitados encontros sábado para estudar uma resposta à saída britânica, o presidente chinês, Xi Jinping, recebia o presidente russo, Vladimir Putin em Pequim numa rápida visita oficial. Mais do que a China, a Rússia situa-se fora do sistema internacional liderado pelos EUA, e Putin – na melhor hipótese, um cauteloso aliado da China, que por sua vez enfrenta severos desafios econômicos – nos últimos anos vem trabalhando para dividir e desestabilizar a Europa.
Putin tem os próprios problemas, incluindo a crise econômica provocada pelo baixo preço do petróleo, que podem limitar sua capacidade de se aproveitar do momento. Mesmo assim, dizem analistas, o voto britânico foi um presente inesperado.
O fim da Pax Americana não é assunto novo. Previsões do declínio dos EUA vêm sendo feitas após a crise econômica global de 2007/8, em meio a previsões paralelas do início de um novo século chinês. Mas a economia americana vem se recuperando gradativamente, embora de modo imperfeito, enquanto a China tem preocupado muitos de seus vizinhos asiáticos com uma nova e agressiva política exterior.
Antes da crise dos refugiados, a União Europeia já era uma entidade inacabada e difícil de controlar. Suas contradições e imperfeições foram exacerbadas pela crise econômica. No entanto, é o avanço de mais de 1 milhão de refugiados marchando através dos Bálcãs e da Grécia para a Alemanha que, no fim, pode vir a se configurar como o mais desestabilizador evento na recente história europeia.
Na esteira da decisão britânica, a Europa enfrenta o duplo desafio de se manter íntegra e preservar sua influência global. / TRADUÇÃO DE ROBERTO MUNIZ
*SÃO REPÓRTERES