Em 23 de junho de 2016, os britânicos aprovavam em referendo a saída do Reino Unido da União Europeia. O Brexit então se tornou uma dor de cabeça para o governo, levando à queda de dois primeiros-ministros e a dificuldade em chegar a um acordo final. Seis anos depois da votação e mais de um ano após a saída definitiva, os britânicos começam a sentir os efeitos na economia que ainda está se adaptando à nova realidade.
O mundo como um todo viu uma queda substancial das suas economias por causa da pandemia de covid-19. Em seguida, uma guerra na Ucrânia tem levado a impactos globais nas cadeias de abastecimento de alimentos e energia, com especial impacto na Europa. Ainda assim, as maiores economias começam a ver sinais de retomada conforme caem as restrições pandêmicas, enquanto o Reino Unido vê um desempenho tímido do seu comércio, da moeda e, principalmente, das exportações.
Dos países do G7 - as sete maiores economias do mundo - o Reino Unido apresenta a maior taxa de inflação, com 9% no segundo trimestre deste ano, segundo dados da OCDE. Em seguida vem Alemanha com 7,7%, que tem sofrido com os impactos da guerra no setor de energia; e Estados Unidos com 7,6%.
A diferença, porém, são as projeções de inflação para os trimestres seguintes. Enquanto a OCDE projeta uma melhora no poder de compra em quase todos os países do G7 já a partir do próximo trimestre - com exceção da Alemanha que deve ultrapassar 8% antes de ver uma melhora - o Reino Unido só deve ver uma redução da inflação no ano que vem, quando o índice já tiver ultrapassado os dois dígitos. Economistas já temem uma recessão.
“O Reino Unido sofreu três pancadas muito brutas: o Brexit, a pandemia e agora a guerra”, aponta Leonardo Paz, analista de Inteligência Qualitativa no Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV. “Todas as três afetaram muito a economia do país. Mas precisamos de um pouco mais de tempo para ver os impactos reais do Brexit.”
Mas economistas já apontam alguns setores que começam a sentir os primeiros impactos da saída do bloco europeu, especialmente o comércio e a força de trabalho. “O Brexit é um fator que contribui para o fraco desempenho do Reino Unido”, explica o economista e professor na University College London, Morten O. Ravn.
“O comércio do Reino Unido com a UE foi atingido, o investimento no setor empresarial estagnou, a mão de obra altamente qualificada deixou o Reino Unido e o setor financeiro está agora começando a lutar”, completa.
O aumento dos preços dos produtos não foi acompanhado pela melhora salarial, pelo contrário, os britânicos tem visto um crescimento muito tímido no salário real nos últimos meses. Junto com uma desvalorização da libra esterlina frente ao dólar, a situação da economia tem gerado protestos e pressionando cada vez mais o governo já em crise de Boris Johnson.
As promessas
Há seis anos, quando o referendo ocorria, as promessas de quem argumentava a favor da saída giravam em torno de possuir maior controle sobre as decisões econômicas do país, na época muito dependente das burocracias do bloco europeu.
No site em favor do Brexit, no ar até hoje, as principais promessas são: economizar 350 milhões de libras esterlinas por semana - “podemos gastar nosso dinheiro em nossas prioridades, como o NHS (sistema público de saúde), escolas e moradias” diz o site -, fronteiras mais rígidas e “fazer comércio com o mundo inteiro”. “A UE nos impede de assinar nossos próprios acordos comerciais com aliados importantes como Austrália ou Nova Zelândia, e economias em crescimento como Índia, China ou Brasil”, argumentava.
A execução, no entanto, não seria tão simples ou rápida quanto os britânicos podiam imaginar. “Essencialmente, nenhuma das promessas foi cumprida, a não ser um pequeno número de acordos comerciais com parceiros menores que foram assinados”, pontua Ravn. “Vimos o comércio Reino Unido-UE sendo atingido, o investimento estagnado e o Reino Unido passou de um sólido desempenho de crescimento antes do Brexit e alinhado com a UE para um desempenho significativamente pior.”
Segundo dados do escritório de estatísticas do Reino Unido, o ONS, as importações de bens da União Europeia só cresceram desde a saída definitiva do país do bloco, e agora sob tarifas mais altas que antes - ainda que dentro de um acordo de tarifas menores que para os países de fora do bloco -. As exportações, por outro lado, ficaram estagnadas, tanto para a União Europeia quanto para outros países. A balança comercial está em déficit desde abril de 2021.
O primeiro acordo de livre comércio selado pelo país após a saída da União Europeia foi com a Austrália, em dezembro de 2021. Antes, enquanto ainda negociava os pormenores do Brexit, o país fez acordo com o Japão.
“O Reino Unido, assim que entrou no Brexit, imaginava que ia conseguir e substituir o que eles iam perder da União Europeia com outros países do mundo, fazendo um conjunto enorme de acordo de livre comércio com diversos países, só que acordo comercial leva tempo”, observa Leonardo Paz.
Os principais impactos
Quando o acordo do Brexit completou um ano, a rede britânica BBC promoveu um encontro com pequenos e médios empresários que disseram a mesma coisa: tiveram queda nas vendas para fora, principalmente com o bloco. O problema era não só o aumento de taxas e a competitividade na Europa, mas também uma nova burocracia para lidar.
“Boa parte dos britânicos está sofrendo bastante porque eram integrados à economia da União Europeia e agora, por mais que a renda de taxação seja menor em relação à média internacional, agora eles têm as barreiras tarifárias”, afirma Paz. “Antes a empresa média britânica não tinha papelada para preencher e agora eles estão passando por um processo burocrático muito complexo que eles não estavam acostumados”.
“Isso cria custo, tanto em termos de dinheiro para licença e etc, quanto em termos de tempo. Agora para exportar ou importar o seu produto para a UE você demora mais tempo porque os papéis têm que ser processados e essa coisa toda. E eles estão tendo um problema grave de ajuste dessas coisas”, completa.
O setor de serviços, especialmente com mão de obra menos qualificada, também foi um dos mais impactados, já que trabalhadores migrantes da Europa precisaram deixar o país e seus postos de trabalho não podem ser rapidamente preenchidos. No ano passado, o país quase enfrentou uma crise de abastecimento nas festas de fim de ano devido à falta de motoristas de caminhões.
Outros fatores influenciaram para a ausência de motoristas na época, e o Brexit foi um deles, já que impôs enormes tarifas alfandegárias e tornou as viagens mais demoradas para os trabalhadores de outros países da Europa. Para mitigar o problema, o governo elaborou um plano de visto temporário para os caminhoneiros.
O fenômeno gerou ainda um outro problema, que foi a queda na produtividade no trabalho. Com mão de obra escassa, os trabalhadores podem trocar para empregos que ofereciam cada vez mais, gerando mais custos para os empregadores. O Reino Unido tem, atualmente, um recorde de vagas de trabalho, com mais de 1,3 milhão disponíveis no trimestre de março a maio, maior oferta desde os anos 70.
“As empresas integradas no comércio com a Europa enfrentam dificuldades tanto nos setores da indústria transformadora como dos serviços. Esses setores que tinham a promessa de se beneficiarem [do Brexit], como os setores primários, ainda não viram nenhum benefício. Grande parte dos custos foram pagos pelas partes mais pobres do Reino Unido”, afirma Morten O. Ravn.
A questão das Irlandas
A maior dor de cabeça do acordo do Brexit foi, e continua sendo, a fronteira entre as Irlandas. Criar uma barreira comercial e migratória muito dura entre a Irlanda do Norte (Reino Unido) e a República da Irlanda (União Europeia) pode reacender um conflito a décadas adormecido.
A questão foi uma das principais a levar a consecutivas rejeições dos acordos anteriores para o Brexit, o que culminou na renúncia da então primeira-ministra, Theresa May. No fim, a proposta foi a criação do Protocolo da Irlanda do Norte, que criou uma salvaguarda, permitindo que a Irlanda do Norte continuasse no território aduaneiro da UE.
Porém, o tópico voltou a ser um assunto nos últimos meses, já que o Reino Unido propôs rever o protocolo. Bruxelas acusa Londres de ter violado o acordo e a situação já levanta temores de uma guerra comercial entre as partes.
“Eles basicamente empurraram para frente um problema que não sabiam como solucionar”, diz Leonardo Paz. “Eles só assinaram essa ideia de não criação de uma barreira, imaginando que no futuro iriam achar uma solução, mas até agora ninguém achou.”
O economista Morten O. Ravn alerta que nada de positivo sairia de uma quebra do protocolo. “Uma possível consequência é que seriam necessárias barreiras comerciais entre a República da Irlanda e a Irlanda do Norte. Tal resultado seria, por muitas razões, extremamente desafiador. A UE pode, em reação a um movimento unilateral do Reino Unido, também revisitar outras partes do acordo do Brexit, tornando os acordos comerciais do Reino Unido com a UE ainda mais desafiadores.”