OTTAWA – Pouco depois de a Rússia invadir a Ucrânia, em fevereiro de 2022, pessoas começaram a fazer perguntas inusitadas sobre o museu de Christine McGuire. “Queriam saber se ele ainda funcionava como abrigo nuclear”, conta a diretora-executiva do Diefenbunker, o museu canadense da Guerra Fria. “Esse medo ainda é muito real. Parece ter reaparecido na psique pública.”
O lugar ainda guarda quase todas as características e a forma do abrigo que foi no passado, destinado ao uso de autoridades e das Forças Armadas do Canadá. O complexo foi desativado em 1994 e, de patrimônio militar funcional, converteu-se em símbolo do retorno a uma era em que a destruição do mundo novamente parece uma possibilidade real — com a Rússia, dotada de armas nucleares, aventando a possibilidade de fazer uso delas.
A história do Diefenbunker não é só das tensões globais, mas também da abordagem parcimoniosa de Ottawa em relação à defesa, seu pensamento otimista em relação ao apocalipse e a antipatia dos canadenses a qualquer coisa que vejam como tratamento diferenciado a seus líderes. Hoje o museu, particular, é um dos poucos lugares onde as pessoas podem conhecer um antigo bunker da Guerra Fria construído para abrigar um governo na eventualidade de um ataque nuclear.
Tudo isso converteu o lugar —um labirinto subterrâneo de quatro pisos e 350 cômodos, em 9.300 metros quadrados— em atração turística de popularidade inesperada, não obstante sua localização um pouco fora de mão, no vilarejo de Carp, dentro dos limites de Ottawa, capital do Canadá.
O professor de história Robert Bothwell, da Universidade de Toronto, integrava o conselho de uma organização cultural de Ontario na década de 1990 quando um grupo de voluntários propôs que o bunker fosse convertido em museu. Na época, várias outras instituições dirigidas por voluntários não conseguiam atrair visitantes, mesmo recebendo recursos amplos. “Por isso pensei: ‘o Diefenbunker? Me poupe’. Mas eu estava enganado.”
Desde que começou a ser construído, em 1959, o bunker já teve diversos nomes oficiais: Estabelecimento de Sinais de Emergência do Exército, Sede Emergencial do Governo Central e Estação das Forças Canadenses. Mas ficou conhecido por Diefenbunker em função de John Diefenbaker, primeiro-ministro que encomendou sua construção —mais como zombaria que como homenagem.
Por quase dois anos de obras, esse e dez outros bunkers menores pelo país foram disfarçados como centros de comunicações militares, algo que de fato fazia parte de sua função. Mas em 1961 o jornal The Toronto Telegraph expôs sua natureza real, publicando uma foto aérea detalhada da construção.
A imagem mostrou que dezenas de banheiros seriam instalados —sinal de que o complexo se destinava a ser mais do que uma pequena base de rádio. A manchete acima da foto dizia, em maiúsculas: “78 BANHEIROS. E ainda assim o Exército não quer admitir que ESTE É O DIEFENBUNKER”.
Depois da publicação, Diefenbaker admitiu a finalidade do bunker. Prometeu que ele próprio não o visitaria e que, se chegassem bombas e mísseis, ficaria em casa com a esposa. Mas a indignação persistia em relação ao local exclusivo e reservado para 565 pessoas, incluindo o premiê e 12 ministros. Para agravar a rejeição popular, o governo se negou a divulgar o custo da obra, estimada em 22 milhões de dólares canadenses em dinheiro de 1958 —hoje, cerca de 220 milhões de dólares canadenses (R$ 833 milhões).
Visto de fora, ele parece uma encosta gramada, com canos para a saída de gases se projetando no solo, além de algumas antenas. A entrada foi construída nos anos 1980: passa-se por uma construção metálica com porta de enrolar, como de garagem, que aberta dá para um túnel reforçado, construído para absorver energia de uma bomba nuclear jogada sobre o centro de Ottawa. Com 118 metros, o túnel conduz a portas que pesam 1 e 4 toneladas. Em seguida vêm uma área de descontaminação e o restante do bunker.
Boa parte do interior bem iluminado é uma restauração. Quando o lugar foi desativado, tudo o que ele continha foi removido — e substituído depois por artigos semelhantes ou idênticos de bunkers e bases militares menores. O escritório e a suíte do premiê são espartanos, com o único toque luxuoso sendo a pia azul-turquesa do banheiro.
O centro de comando tem um retroprojetor e quatro TVs. Uma sala de reuniões militares ao lado possui um projetor que rastreava aviões. O bunker é cercado por espessas camadas de cascalho, para ajudar a mitigar o choque de quaisquer explosões nucleares. Seu sistema de encanamento é montado sobre camadas de borracha, mesmo material das tubulações.
A área mais segura e bem protegida era uma espécie de caixa-forte, atrás de uma porta tão imensa que uma segunda porta, menor, precisa ser aberta antes, para igualar a pressão do ar. Foi designada para ser um lugar para o Bank of Canada guardar ouro no caso de um ataque nuclear iminente. Não há registro de que o Banco Central jamais tenha guardado o metal ali, segundo um porta-voz, e na década de 1970 a sala passou a ser usada como academia.
Um pequeno depósito de armas foi assaltado em 1984 por um cabo lotado no bunker. Depois de roubar inclusive duas submetralhadoras e 400 cartuchos de munição, ele foi para Québec, onde matou 3 pessoas a tiros e feriu 13 na Assembleia Legislativa.
O complexo foi projetado para conter alimentos e combustível de gerador suficientes para permitir que os ocupantes passassem ali 30 dias após um ataque nuclear. A ideia era que depois desse tempo os níveis de radiação acima do solo já estariam suficientemente baixos para as pessoas emergirem em segurança.
Mas o bunker nunca chegou a ser necessário e acabou sendo desprezado. O único premiê a ir conhecê-lo foi Pierre Elliott Trudeau, pai do primeiro-ministro atual, Justin Trudeau. Depois da visita de Pierre pai, em 1976 num helicóptero militar, o governo cortou o orçamento do bunker.
Hoje o Diefenbunker recebe visitantes que querem conhecer essa janela para o passado da Guerra Fria — e, possivelmente, o senso de segurança que muitos almejam hoje. Gilles Courtemanche é guia voluntário no local. Em 1964, quando tinha 20 anos, era soldado e trabalhou ali por dois anos como sinaleiro. Ele foi uma das 540 pessoas, entre civis e militares, que operavam o bunker em três turnos de trabalho até ele ser desativado.
Para ele e para o Canadá, o círculo agora se completou. A Guerra Fria de sua juventude passou por mutações e converteu-se em novos tipos de ameaças —com o museu lembrando os visitantes dos perigos passados e presentes. “Hoje a China começa a mostrar os músculos. Os russos? Não entendo o que estão fazendo. Para mim, é pura insanidade.”