Caça de Putin aos ‘traidores’ atinge aposentados, blogueiros e pacifistas


Após invasão na Ucrânia, presidente Vladimir Putin e apoiadores começam a perseguir opositores da guerra na Rússia

Por Robyn Dixon e Mary Ilyushina

RIGA, Letônia – Havia uma mensagem a todos os russos nos primeiros casos de caça do presidente russo Vladimir Putin aos chamados por ele de “escória e traidores”. Esta mensagem era que ninguém era pequeno demais para passar despercebido.

As autoridades prenderam um técnico do Ministério do Interior por ter conversado sozinho ao telefone. E também prenderam pessoas segurando cartazes em branco em oposição à guerra; uma mulher que usava chapéu com as cores da Ucrânia, amarelo e azul; e um carpinteiro siberiano em Tomsk, identificado como Stanislav Karmakskih, que segurava um pôster de uma obra de arte de Vasili Vereshchagin, chamada “A Apoteose da Guerra”.

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Uma conhecida blogueira russa de gastronomia, Nika Belotserkovskaia, foi uma das três primeiras pessoas a enfrentarem acusações devido à lei da Rússia contra notícias “falsas” da guerra depois que seu feed no Instagram deixou de exibir trufas e vinho rosé e passou a mostrar imagens de crianças refugiadas ucranianas. Ela se encontra fora da Rússia.

Presidente russo Vladimir Putin durante cerimônia nacionalista realizada no dia 18 de março deste ano em um estádio de futebol lotado. Cerimônia contou com apoiadores de Putin Foto: Ramil Sitikov/via EFE

A velocidade da transformação do país para a “autopurificação” ao estilo soviético tem sido surpreendente. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia no mês passado, a TV estatal fez propaganda por todos os lados culpando “neonazistas” e “nacionalistas” ucranianos. Agora, figuras sombrias a favor de Putin pintam as palavras “traidor da pátria” nas portas dos opositores à guerra e outros ativistas.

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Na sexta-feira, uma pilha de excrementos de animais foi deixada do lado de fora da porta da casa da ativista Daria Kheikinen, em São Petersburgo. No dia anterior, uma cabeça de porco decepada e um adesivo com uma mensagem antissemita foram colocados na porta da casa de Alexei Venediktov, editor-chefe da rádio independente Eco de Moscou, estação agora extinta. A rádio foi obrigada a encerrar suas atividades no início deste mês pela estatal Gazprom, que controlava seu conselho.

Do dia para a noite surgiram sites com nomes encorajando os russos a denunciarem “traidores”, “inimigos”, “covardes” e “fugitivos” que se opõem à guerra.

Uma das três primeiras pessoas acusadas pela severa lei russa de censura durante o período de guerra foi Marina Novikova, aposentada, 63 anos, com 170 seguidores do Telegram. Um dia após a invasão, com o olhar fixo na câmera e uma mecha de cabelo ruivo caída sobre um olho, ela falou, direto da cidade de Seversk, que possui reatores nucleares e restrições de acesso: “Aqueles que querem pensar e podem pensar serão capazes de sair da escuridão”.

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Durante o que ela chamou de sessão de “terapia de choque”, ela falou: “todos [os russos] aprovam a guerra na Ucrânia. Este é o nosso consenso total e silencioso.”

Outros seguiram em direção às fronteiras. Atores, celebridades, empresários, cantores, dançarinos, escritores. Trabalhadores de TI e jornalistas independentes estão entre os que deixaram a Rússia.

A funcionária da televisão estatal Marina Ovsiannikova – a produtora do Channel One que ganhou as manchetes em todo o mundo no dia 14 de março quando exibiu um cartaz contra a guerra durante a transmissão de um telejornal – temia a possível pena de 15 anos de prisão. Mas na sexta-feira, ela foi acusada de um crime de menor gravidade, de desacreditar as forças armadas.

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Marina Ovsiannikova, editora da emissora estatal Canal 1, protestou contra a invasão russa na Ucrânia durante transmissão de noticiário. Na foto, Marina conversa com a imprensa no dia 15 de março AFP  Foto: AFP

Mais cedo, Kirill Kleimionov, chefe de jornalismo do canal, sugeriu no ar que ela era uma espiã britânica. “Traição é sempre a escolha pessoal de alguém”, disse ele, alegando que Marina não agiu no calor da emoção, mas “em troca de dinheiro”.

No entanto, uma conversa com Marina dá uma impressão diferente. Ela tem muito o que dizer e encadeia os pensamentos com facilidade. Apesar de hesitar em dizer algo que talvez lhe cause mais problemas, acaba falando mesmo assim.

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“A propaganda na Rússia tornou-se perigosa. Nosso país está em uma escuridão total agora. Qualquer um pode ser chamado de traidor da pátria ou ‘quinta-coluna’ por simplesmente participar de uma manifestação”, disse ela em entrevista antes da decisão do tribunal.

Durante anos, ela desviou o olhar enquanto as repressões aumentavam. Como recebia um bom salário do Estado, dizia a si mesma que estava fazendo isso por sua família. “Mas se chega a um ponto onde não há volta, quando as coisas vão além do limite do mal absoluto. E uma pessoa normal não consegue aguentar mais. Você simplesmente não pode continuar [assim].”

Esse ponto chegou quando ela acordou e ouviu que a invasão havia começado. “Fiquei muito chocada. Não conseguia comer ou dormir.” No trabalho, “o clima era muito deprimente e estressante. Via essas notícias de última hora o tempo todo. Percebi que não podia trabalhar mais lá.”

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No fim, ela invadiu o telejornal da TV estatal com seu cartaz antiguerra em um ato de rebeldia. “Eles estão mentindo para vocês”, dizia o cartaz em russo. E em inglês: “No war” (Não à guerra).

“Não me arrependo de nada e não vou desmentir nenhuma das minhas palavras ou atos. Estou feliz que isso tenha repercutido”, disse ela.

Apesar do risco de multas e prisão, outros continuam protestando. Mais de 15 mil pessoas foram presas desde o início da guerra.

Anastasia, que vestia uma jaqueta com as palavras “Não à Guerra”, foi pega pela tropa de choque no início deste mês enquanto caminhava em direção a um pequeno grupo de manifestantes em Moscou. Ela foi presa e multada. “Isso me deixa muito irritada”, disse Anastasia, que pediu para o sobrenome não ser mencionado por questões de segurança. “Além da raiva, sinto uma espécie de desespero, tristeza e pesar, particularmente um pesar por não haver mais nada de bom no futuro.”

Carros com bandeiras imperiais e exibindo a letra “Z”, símbolo de apoio à guerra, apareceram em cidades russas.“É difícil acreditar que essas pessoas são reais e acreditam mesmo que essa operação militar é uma maneira de salvar a Rússia, porque nada disso resultará em algo bom”, disse ela.

Kirill Martinov, editor de política do jornal russo Novaya Gazeta, foi denunciado como traidor e demitido recentemente por duas universidades onde ministrava disciplinas de filosofia. Um pai escutou Martinov dizendo aos alunos que civis estavam sendo mortos na Ucrânia.

O jornalista, que já deixou a Rússia, teme que as perseguições estejam apenas começando, em meio à intensificação das tensões sociais em relação à guerra. “As autoridades russas e as pessoas que apoiam a guerra precisam encontrar alguém para culpar, porque quando a sociedade e a economia estão em ruínas, você precisa encontrar algum inimigo para assumir a responsabilidade”, disse ele.

“Haverá uma espécie de caça aos traidores nos próximos meses e veremos muitas acusações de crime, porque eles precisam de alguma explicação para o que está acontecendo no país e, se a Rússia é tão grande e Putin é uma pessoa tão sábia, por que a vida ali está tão ruim agora?”, acrescentou.

Mas há uma linha de retórica messiânica de altos funcionários russos, jornalistas pró-Kremlin, figuras religiosas e acadêmicos, planejando a missão de trazer de volta a grandeza russa. Eles insultam o liberalismo ocidental e aplaudem a ortodoxia conservadora e autoritária.

Um artigo que ganhou destaque no site de notícias estatal RIA Novosti, do comentarista conservador Piotr Akopov, trazia a manchete “Rússia do futuro: Avante para a URSS”. No artigo, Akopov escreveu que “o espírito da história russa, o espírito de nossos ancestrais nos dão uma chance não apenas de nos redimir pelo fim da União Soviética. [Mas] a chance de consertar isso por meio da criação, do renascimento da grande Rússia.”

Evocando um novo pensamento russocêntrico, ele argumentou que os intelectuais e oligarcas russos eram escravos mentais do Ocidente, que queriam copiá-lo e modificar a Rússia.

“O que isso significa?”, tuitou o historiador Ian Garner, especialista em propaganda russa. “Em suma: a erradicação de qualquer pessoa acusada de ser ‘não-russa’ no pensamento ou na cultura.”

Olga Irisova, editora-chefe do site de notícias independente Riddle, disse que o apelo de Putin a uma autopurificação da Rússia marcava um divisor de águas ameaçador, tornando perigoso se opor à guerra. Ela está fora da Rússia e o site Riddle continua no ar.

“Até meus conhecidos que ainda estão na Rússia estão com medo de se manifestar agora”, disse Olga. “Eles estão com medo até mesmo de falar com as pessoas a respeito da guerra, pois acreditam que os outros possam denunciá-los às autoridades ou simplesmente chamá-los de traidores.”

Segundo Olga, as sinalizações de “traidores” escritas nas portas dos ativistas reforçavam a mensagem do governo. “Se você não concorda conosco, você é uma minoria”, disse ela. “Você deveria ficar em silêncio. E as pessoas estão com medo.” Milhares emigrariam, mas a maioria não conseguiria sair do país.

“Não vejo nenhum cenário positivo para a Rússia”, afirmou. “Vejo mais repressões.”

No entanto, um manifestante, identificado como Valetin Belaiev, vê um pontinho de esperança em sua casa em Cazã, a pouco mais de 800 quilômetros a leste de Moscou. “Agora a Rússia está em um momento decisivo”, disse ele. “Ou afundaremos no abismo de um pesadelo sem esperança, ou seremos capazes de evitar esse cenário.”

“Estamos em um ponto em que a história pode seguir direções completamente diferentes, e todos nós agora temos uma responsabilidade individual por como será o futuro de nosso país e do mundo”, afirmou. /TRADUÇÃO ROMINA CÁCIA

RIGA, Letônia – Havia uma mensagem a todos os russos nos primeiros casos de caça do presidente russo Vladimir Putin aos chamados por ele de “escória e traidores”. Esta mensagem era que ninguém era pequeno demais para passar despercebido.

As autoridades prenderam um técnico do Ministério do Interior por ter conversado sozinho ao telefone. E também prenderam pessoas segurando cartazes em branco em oposição à guerra; uma mulher que usava chapéu com as cores da Ucrânia, amarelo e azul; e um carpinteiro siberiano em Tomsk, identificado como Stanislav Karmakskih, que segurava um pôster de uma obra de arte de Vasili Vereshchagin, chamada “A Apoteose da Guerra”.

Uma conhecida blogueira russa de gastronomia, Nika Belotserkovskaia, foi uma das três primeiras pessoas a enfrentarem acusações devido à lei da Rússia contra notícias “falsas” da guerra depois que seu feed no Instagram deixou de exibir trufas e vinho rosé e passou a mostrar imagens de crianças refugiadas ucranianas. Ela se encontra fora da Rússia.

Presidente russo Vladimir Putin durante cerimônia nacionalista realizada no dia 18 de março deste ano em um estádio de futebol lotado. Cerimônia contou com apoiadores de Putin Foto: Ramil Sitikov/via EFE

A velocidade da transformação do país para a “autopurificação” ao estilo soviético tem sido surpreendente. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia no mês passado, a TV estatal fez propaganda por todos os lados culpando “neonazistas” e “nacionalistas” ucranianos. Agora, figuras sombrias a favor de Putin pintam as palavras “traidor da pátria” nas portas dos opositores à guerra e outros ativistas.

Na sexta-feira, uma pilha de excrementos de animais foi deixada do lado de fora da porta da casa da ativista Daria Kheikinen, em São Petersburgo. No dia anterior, uma cabeça de porco decepada e um adesivo com uma mensagem antissemita foram colocados na porta da casa de Alexei Venediktov, editor-chefe da rádio independente Eco de Moscou, estação agora extinta. A rádio foi obrigada a encerrar suas atividades no início deste mês pela estatal Gazprom, que controlava seu conselho.

Do dia para a noite surgiram sites com nomes encorajando os russos a denunciarem “traidores”, “inimigos”, “covardes” e “fugitivos” que se opõem à guerra.

Uma das três primeiras pessoas acusadas pela severa lei russa de censura durante o período de guerra foi Marina Novikova, aposentada, 63 anos, com 170 seguidores do Telegram. Um dia após a invasão, com o olhar fixo na câmera e uma mecha de cabelo ruivo caída sobre um olho, ela falou, direto da cidade de Seversk, que possui reatores nucleares e restrições de acesso: “Aqueles que querem pensar e podem pensar serão capazes de sair da escuridão”.

Durante o que ela chamou de sessão de “terapia de choque”, ela falou: “todos [os russos] aprovam a guerra na Ucrânia. Este é o nosso consenso total e silencioso.”

Outros seguiram em direção às fronteiras. Atores, celebridades, empresários, cantores, dançarinos, escritores. Trabalhadores de TI e jornalistas independentes estão entre os que deixaram a Rússia.

A funcionária da televisão estatal Marina Ovsiannikova – a produtora do Channel One que ganhou as manchetes em todo o mundo no dia 14 de março quando exibiu um cartaz contra a guerra durante a transmissão de um telejornal – temia a possível pena de 15 anos de prisão. Mas na sexta-feira, ela foi acusada de um crime de menor gravidade, de desacreditar as forças armadas.

Marina Ovsiannikova, editora da emissora estatal Canal 1, protestou contra a invasão russa na Ucrânia durante transmissão de noticiário. Na foto, Marina conversa com a imprensa no dia 15 de março AFP  Foto: AFP

Mais cedo, Kirill Kleimionov, chefe de jornalismo do canal, sugeriu no ar que ela era uma espiã britânica. “Traição é sempre a escolha pessoal de alguém”, disse ele, alegando que Marina não agiu no calor da emoção, mas “em troca de dinheiro”.

No entanto, uma conversa com Marina dá uma impressão diferente. Ela tem muito o que dizer e encadeia os pensamentos com facilidade. Apesar de hesitar em dizer algo que talvez lhe cause mais problemas, acaba falando mesmo assim.

“A propaganda na Rússia tornou-se perigosa. Nosso país está em uma escuridão total agora. Qualquer um pode ser chamado de traidor da pátria ou ‘quinta-coluna’ por simplesmente participar de uma manifestação”, disse ela em entrevista antes da decisão do tribunal.

Durante anos, ela desviou o olhar enquanto as repressões aumentavam. Como recebia um bom salário do Estado, dizia a si mesma que estava fazendo isso por sua família. “Mas se chega a um ponto onde não há volta, quando as coisas vão além do limite do mal absoluto. E uma pessoa normal não consegue aguentar mais. Você simplesmente não pode continuar [assim].”

Esse ponto chegou quando ela acordou e ouviu que a invasão havia começado. “Fiquei muito chocada. Não conseguia comer ou dormir.” No trabalho, “o clima era muito deprimente e estressante. Via essas notícias de última hora o tempo todo. Percebi que não podia trabalhar mais lá.”

No fim, ela invadiu o telejornal da TV estatal com seu cartaz antiguerra em um ato de rebeldia. “Eles estão mentindo para vocês”, dizia o cartaz em russo. E em inglês: “No war” (Não à guerra).

“Não me arrependo de nada e não vou desmentir nenhuma das minhas palavras ou atos. Estou feliz que isso tenha repercutido”, disse ela.

Apesar do risco de multas e prisão, outros continuam protestando. Mais de 15 mil pessoas foram presas desde o início da guerra.

Anastasia, que vestia uma jaqueta com as palavras “Não à Guerra”, foi pega pela tropa de choque no início deste mês enquanto caminhava em direção a um pequeno grupo de manifestantes em Moscou. Ela foi presa e multada. “Isso me deixa muito irritada”, disse Anastasia, que pediu para o sobrenome não ser mencionado por questões de segurança. “Além da raiva, sinto uma espécie de desespero, tristeza e pesar, particularmente um pesar por não haver mais nada de bom no futuro.”

Carros com bandeiras imperiais e exibindo a letra “Z”, símbolo de apoio à guerra, apareceram em cidades russas.“É difícil acreditar que essas pessoas são reais e acreditam mesmo que essa operação militar é uma maneira de salvar a Rússia, porque nada disso resultará em algo bom”, disse ela.

Kirill Martinov, editor de política do jornal russo Novaya Gazeta, foi denunciado como traidor e demitido recentemente por duas universidades onde ministrava disciplinas de filosofia. Um pai escutou Martinov dizendo aos alunos que civis estavam sendo mortos na Ucrânia.

O jornalista, que já deixou a Rússia, teme que as perseguições estejam apenas começando, em meio à intensificação das tensões sociais em relação à guerra. “As autoridades russas e as pessoas que apoiam a guerra precisam encontrar alguém para culpar, porque quando a sociedade e a economia estão em ruínas, você precisa encontrar algum inimigo para assumir a responsabilidade”, disse ele.

“Haverá uma espécie de caça aos traidores nos próximos meses e veremos muitas acusações de crime, porque eles precisam de alguma explicação para o que está acontecendo no país e, se a Rússia é tão grande e Putin é uma pessoa tão sábia, por que a vida ali está tão ruim agora?”, acrescentou.

Mas há uma linha de retórica messiânica de altos funcionários russos, jornalistas pró-Kremlin, figuras religiosas e acadêmicos, planejando a missão de trazer de volta a grandeza russa. Eles insultam o liberalismo ocidental e aplaudem a ortodoxia conservadora e autoritária.

Um artigo que ganhou destaque no site de notícias estatal RIA Novosti, do comentarista conservador Piotr Akopov, trazia a manchete “Rússia do futuro: Avante para a URSS”. No artigo, Akopov escreveu que “o espírito da história russa, o espírito de nossos ancestrais nos dão uma chance não apenas de nos redimir pelo fim da União Soviética. [Mas] a chance de consertar isso por meio da criação, do renascimento da grande Rússia.”

Evocando um novo pensamento russocêntrico, ele argumentou que os intelectuais e oligarcas russos eram escravos mentais do Ocidente, que queriam copiá-lo e modificar a Rússia.

“O que isso significa?”, tuitou o historiador Ian Garner, especialista em propaganda russa. “Em suma: a erradicação de qualquer pessoa acusada de ser ‘não-russa’ no pensamento ou na cultura.”

Olga Irisova, editora-chefe do site de notícias independente Riddle, disse que o apelo de Putin a uma autopurificação da Rússia marcava um divisor de águas ameaçador, tornando perigoso se opor à guerra. Ela está fora da Rússia e o site Riddle continua no ar.

“Até meus conhecidos que ainda estão na Rússia estão com medo de se manifestar agora”, disse Olga. “Eles estão com medo até mesmo de falar com as pessoas a respeito da guerra, pois acreditam que os outros possam denunciá-los às autoridades ou simplesmente chamá-los de traidores.”

Segundo Olga, as sinalizações de “traidores” escritas nas portas dos ativistas reforçavam a mensagem do governo. “Se você não concorda conosco, você é uma minoria”, disse ela. “Você deveria ficar em silêncio. E as pessoas estão com medo.” Milhares emigrariam, mas a maioria não conseguiria sair do país.

“Não vejo nenhum cenário positivo para a Rússia”, afirmou. “Vejo mais repressões.”

No entanto, um manifestante, identificado como Valetin Belaiev, vê um pontinho de esperança em sua casa em Cazã, a pouco mais de 800 quilômetros a leste de Moscou. “Agora a Rússia está em um momento decisivo”, disse ele. “Ou afundaremos no abismo de um pesadelo sem esperança, ou seremos capazes de evitar esse cenário.”

“Estamos em um ponto em que a história pode seguir direções completamente diferentes, e todos nós agora temos uma responsabilidade individual por como será o futuro de nosso país e do mundo”, afirmou. /TRADUÇÃO ROMINA CÁCIA

RIGA, Letônia – Havia uma mensagem a todos os russos nos primeiros casos de caça do presidente russo Vladimir Putin aos chamados por ele de “escória e traidores”. Esta mensagem era que ninguém era pequeno demais para passar despercebido.

As autoridades prenderam um técnico do Ministério do Interior por ter conversado sozinho ao telefone. E também prenderam pessoas segurando cartazes em branco em oposição à guerra; uma mulher que usava chapéu com as cores da Ucrânia, amarelo e azul; e um carpinteiro siberiano em Tomsk, identificado como Stanislav Karmakskih, que segurava um pôster de uma obra de arte de Vasili Vereshchagin, chamada “A Apoteose da Guerra”.

Uma conhecida blogueira russa de gastronomia, Nika Belotserkovskaia, foi uma das três primeiras pessoas a enfrentarem acusações devido à lei da Rússia contra notícias “falsas” da guerra depois que seu feed no Instagram deixou de exibir trufas e vinho rosé e passou a mostrar imagens de crianças refugiadas ucranianas. Ela se encontra fora da Rússia.

Presidente russo Vladimir Putin durante cerimônia nacionalista realizada no dia 18 de março deste ano em um estádio de futebol lotado. Cerimônia contou com apoiadores de Putin Foto: Ramil Sitikov/via EFE

A velocidade da transformação do país para a “autopurificação” ao estilo soviético tem sido surpreendente. Quando a Rússia invadiu a Ucrânia no mês passado, a TV estatal fez propaganda por todos os lados culpando “neonazistas” e “nacionalistas” ucranianos. Agora, figuras sombrias a favor de Putin pintam as palavras “traidor da pátria” nas portas dos opositores à guerra e outros ativistas.

Na sexta-feira, uma pilha de excrementos de animais foi deixada do lado de fora da porta da casa da ativista Daria Kheikinen, em São Petersburgo. No dia anterior, uma cabeça de porco decepada e um adesivo com uma mensagem antissemita foram colocados na porta da casa de Alexei Venediktov, editor-chefe da rádio independente Eco de Moscou, estação agora extinta. A rádio foi obrigada a encerrar suas atividades no início deste mês pela estatal Gazprom, que controlava seu conselho.

Do dia para a noite surgiram sites com nomes encorajando os russos a denunciarem “traidores”, “inimigos”, “covardes” e “fugitivos” que se opõem à guerra.

Uma das três primeiras pessoas acusadas pela severa lei russa de censura durante o período de guerra foi Marina Novikova, aposentada, 63 anos, com 170 seguidores do Telegram. Um dia após a invasão, com o olhar fixo na câmera e uma mecha de cabelo ruivo caída sobre um olho, ela falou, direto da cidade de Seversk, que possui reatores nucleares e restrições de acesso: “Aqueles que querem pensar e podem pensar serão capazes de sair da escuridão”.

Durante o que ela chamou de sessão de “terapia de choque”, ela falou: “todos [os russos] aprovam a guerra na Ucrânia. Este é o nosso consenso total e silencioso.”

Outros seguiram em direção às fronteiras. Atores, celebridades, empresários, cantores, dançarinos, escritores. Trabalhadores de TI e jornalistas independentes estão entre os que deixaram a Rússia.

A funcionária da televisão estatal Marina Ovsiannikova – a produtora do Channel One que ganhou as manchetes em todo o mundo no dia 14 de março quando exibiu um cartaz contra a guerra durante a transmissão de um telejornal – temia a possível pena de 15 anos de prisão. Mas na sexta-feira, ela foi acusada de um crime de menor gravidade, de desacreditar as forças armadas.

Marina Ovsiannikova, editora da emissora estatal Canal 1, protestou contra a invasão russa na Ucrânia durante transmissão de noticiário. Na foto, Marina conversa com a imprensa no dia 15 de março AFP  Foto: AFP

Mais cedo, Kirill Kleimionov, chefe de jornalismo do canal, sugeriu no ar que ela era uma espiã britânica. “Traição é sempre a escolha pessoal de alguém”, disse ele, alegando que Marina não agiu no calor da emoção, mas “em troca de dinheiro”.

No entanto, uma conversa com Marina dá uma impressão diferente. Ela tem muito o que dizer e encadeia os pensamentos com facilidade. Apesar de hesitar em dizer algo que talvez lhe cause mais problemas, acaba falando mesmo assim.

“A propaganda na Rússia tornou-se perigosa. Nosso país está em uma escuridão total agora. Qualquer um pode ser chamado de traidor da pátria ou ‘quinta-coluna’ por simplesmente participar de uma manifestação”, disse ela em entrevista antes da decisão do tribunal.

Durante anos, ela desviou o olhar enquanto as repressões aumentavam. Como recebia um bom salário do Estado, dizia a si mesma que estava fazendo isso por sua família. “Mas se chega a um ponto onde não há volta, quando as coisas vão além do limite do mal absoluto. E uma pessoa normal não consegue aguentar mais. Você simplesmente não pode continuar [assim].”

Esse ponto chegou quando ela acordou e ouviu que a invasão havia começado. “Fiquei muito chocada. Não conseguia comer ou dormir.” No trabalho, “o clima era muito deprimente e estressante. Via essas notícias de última hora o tempo todo. Percebi que não podia trabalhar mais lá.”

No fim, ela invadiu o telejornal da TV estatal com seu cartaz antiguerra em um ato de rebeldia. “Eles estão mentindo para vocês”, dizia o cartaz em russo. E em inglês: “No war” (Não à guerra).

“Não me arrependo de nada e não vou desmentir nenhuma das minhas palavras ou atos. Estou feliz que isso tenha repercutido”, disse ela.

Apesar do risco de multas e prisão, outros continuam protestando. Mais de 15 mil pessoas foram presas desde o início da guerra.

Anastasia, que vestia uma jaqueta com as palavras “Não à Guerra”, foi pega pela tropa de choque no início deste mês enquanto caminhava em direção a um pequeno grupo de manifestantes em Moscou. Ela foi presa e multada. “Isso me deixa muito irritada”, disse Anastasia, que pediu para o sobrenome não ser mencionado por questões de segurança. “Além da raiva, sinto uma espécie de desespero, tristeza e pesar, particularmente um pesar por não haver mais nada de bom no futuro.”

Carros com bandeiras imperiais e exibindo a letra “Z”, símbolo de apoio à guerra, apareceram em cidades russas.“É difícil acreditar que essas pessoas são reais e acreditam mesmo que essa operação militar é uma maneira de salvar a Rússia, porque nada disso resultará em algo bom”, disse ela.

Kirill Martinov, editor de política do jornal russo Novaya Gazeta, foi denunciado como traidor e demitido recentemente por duas universidades onde ministrava disciplinas de filosofia. Um pai escutou Martinov dizendo aos alunos que civis estavam sendo mortos na Ucrânia.

O jornalista, que já deixou a Rússia, teme que as perseguições estejam apenas começando, em meio à intensificação das tensões sociais em relação à guerra. “As autoridades russas e as pessoas que apoiam a guerra precisam encontrar alguém para culpar, porque quando a sociedade e a economia estão em ruínas, você precisa encontrar algum inimigo para assumir a responsabilidade”, disse ele.

“Haverá uma espécie de caça aos traidores nos próximos meses e veremos muitas acusações de crime, porque eles precisam de alguma explicação para o que está acontecendo no país e, se a Rússia é tão grande e Putin é uma pessoa tão sábia, por que a vida ali está tão ruim agora?”, acrescentou.

Mas há uma linha de retórica messiânica de altos funcionários russos, jornalistas pró-Kremlin, figuras religiosas e acadêmicos, planejando a missão de trazer de volta a grandeza russa. Eles insultam o liberalismo ocidental e aplaudem a ortodoxia conservadora e autoritária.

Um artigo que ganhou destaque no site de notícias estatal RIA Novosti, do comentarista conservador Piotr Akopov, trazia a manchete “Rússia do futuro: Avante para a URSS”. No artigo, Akopov escreveu que “o espírito da história russa, o espírito de nossos ancestrais nos dão uma chance não apenas de nos redimir pelo fim da União Soviética. [Mas] a chance de consertar isso por meio da criação, do renascimento da grande Rússia.”

Evocando um novo pensamento russocêntrico, ele argumentou que os intelectuais e oligarcas russos eram escravos mentais do Ocidente, que queriam copiá-lo e modificar a Rússia.

“O que isso significa?”, tuitou o historiador Ian Garner, especialista em propaganda russa. “Em suma: a erradicação de qualquer pessoa acusada de ser ‘não-russa’ no pensamento ou na cultura.”

Olga Irisova, editora-chefe do site de notícias independente Riddle, disse que o apelo de Putin a uma autopurificação da Rússia marcava um divisor de águas ameaçador, tornando perigoso se opor à guerra. Ela está fora da Rússia e o site Riddle continua no ar.

“Até meus conhecidos que ainda estão na Rússia estão com medo de se manifestar agora”, disse Olga. “Eles estão com medo até mesmo de falar com as pessoas a respeito da guerra, pois acreditam que os outros possam denunciá-los às autoridades ou simplesmente chamá-los de traidores.”

Segundo Olga, as sinalizações de “traidores” escritas nas portas dos ativistas reforçavam a mensagem do governo. “Se você não concorda conosco, você é uma minoria”, disse ela. “Você deveria ficar em silêncio. E as pessoas estão com medo.” Milhares emigrariam, mas a maioria não conseguiria sair do país.

“Não vejo nenhum cenário positivo para a Rússia”, afirmou. “Vejo mais repressões.”

No entanto, um manifestante, identificado como Valetin Belaiev, vê um pontinho de esperança em sua casa em Cazã, a pouco mais de 800 quilômetros a leste de Moscou. “Agora a Rússia está em um momento decisivo”, disse ele. “Ou afundaremos no abismo de um pesadelo sem esperança, ou seremos capazes de evitar esse cenário.”

“Estamos em um ponto em que a história pode seguir direções completamente diferentes, e todos nós agora temos uma responsabilidade individual por como será o futuro de nosso país e do mundo”, afirmou. /TRADUÇÃO ROMINA CÁCIA

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