Após fazer campanha para acabar com a ajuda militar à Ucrânia, o ex-primeiro-ministro Roberto Fico derrotou seu rival progressista e venceu a eleição, ocorrida neste sábado, 30, na Eslováquia.
Com quase 100% dos distritos eleitorais apurados, o partido Direção Social-Democracia (Smer-SSD), de Fico, lidera com 23,34% dos votos. A liberal Eslováquia Progressista (PS) segue com 16,86% e o partido (Hlas) permanece em terceiro lugar com 15,03%.
Um governo liderado por Fico veria a Eslováquia, membro da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), juntar-se à Hungria no desafio ao consenso da União Europeia sobre o apoio à Ucrânia, tal como o bloco procura manter a unidade na oposição à invasão da Rússia.
Sinalizaria também uma nova mudança na região contra o liberalismo político, que poderá ser reforçada se o partido conservador PiS (Lei e Justiça) vencer as eleições na Polónia no final deste mês.
Caso Fico cumpra as promessas da campanha, isso representará uma mudança radical para a Eslováquia. O país, até agora, era um forte aliado de sua vizinha do leste, a Ucrânia, na guerra contra a Rússia.
Mais da guerra na Ucrânia
O partido de Fico é mais nacionalista e socialmente conservador, criticando o liberalismo social, que diz ser imposto a partir de Bruxelas. Enquanto isso, o PS é liberal em políticas verdes, direitos LGBT, integração europeia mais profunda e direitos humanos.
Fico fez sua campanha contrário ao apoio de Bratislava a Kiev e prometeu interromper a ajuda ao vizinho no esforço contra a invasão russa, a começar pelo envio de novas armas —a Eslováquia repassou cerca de 1,3% de seu Produto Interno Bruto em auxílio militar e econômico à Ucrânia.
A disputa pelo segundo mais votado na eleição revela que Fico possivelmente cumprirá suas promessas com relação a Kiev, se para isso depender apenas da política local.
Se o PS figurava entre o possível vencedor nas pesquisas boca de urna, no cômputo final o partido de ideologia liberal e favorável ao apoio à Ucrânia registrou cerca de 17% e esteve em terceiro lugar até o momento em que cerca de 88% das cédulas tinham sido contadas. Até essa reta final da disputa, ficou na vice-liderança o Hlas, partido dissidente do Smer que terminou em terceiro lugar e pode integrar a coalizão de Fico.
Poderiam eventualmente participar do governo outras legendas nacionalistas, como o Partido Nacional Eslovaco (SNS) e o Republika, ambos de ultradireita, contrários à União Europeia e a Otan e favoráveis a políticas pró-Rússia, mas apenas o SNS chegou até os 99% de apuração dos votos com percentual levemente acima do limite mínimo de 5% para ingressar no parlamento. O líder do SNS, Andrej Danko, afirmou após os resultados que já “se sente parte” da nova coligação.
De todo modo, uma coalizão nacionalista com tintas da ultradireita reforça as promessas de Fico, o que faria de Bratislava a primeira integrante da Otan (a aliança militar ocidental) e da União Europeia a retirar o apoio a Kiev e encerrar o cumprimento de sanções à Rússia impostas por integrantes dos blocos.
Essa possível mudança nos rumos da política externa eslovaca pode se transformar no início de um ponto de inflexão no quintal do presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, cujo apoio é ameaçado também pela Hungria de Viktor Orbán, aliado do russo Vladimir Putin e crítico das sanções a Moscou.
A maior sombra sobre Kiev, contudo, vem de outro vizinho e, até pouco tempo atrás, vocal apoiador do esforço militar ucraniano contra a Rússia. Neste mês, a Polônia voltou atrás em sua decisão de enviar ajuda militar à Ucrânia, com o objetivo de aumentar seu próprio armamento, segundo afirmou o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki. Varsóvia é a sexta maior fornecedora de apoio bélico ao vizinho invadido, segundo o Instituto para Economia Mundial de Kiel (Alemanha).
A decisão reforça a fadiga entre aliados ocidentais em relação ao conflito, mas reflete em larga medida a aproximação das eleições em meados de outubro no país, cujo partido PiS (Lei e Justiça, na sigla polonesa), tem enfrentado pressões ainda mais à direita, inclusive de siglas extremistas, em meio a sentimentos nacionalistas que encontram eco nas críticas à guerra.
Pesa na balança o plano anunciado pelo presidente Andrzej Duda e por Morawiecki de dotar a nação com o Exército terrestre mais poderosos da Europa continental até 2026, além de quase 1 milhão de refugiados ucranianos na Polônia e o embargo do país aos grâos do vizinho, vistos internamente como ameaça aos produtores locais.
Sentimentos pró-russos na Europa Central
Por causa da insatisfação pública generalizada com as disputas internas entre políticos eslovacos pró-ocidentais que chegaram ao poder em 2020 e a grupos de genuíno sentimento pró-russo que remontam ao século 19, a Rússia tem pressionado para ter uma porta aberta na Eslováquia.
Uma pesquisa de opinião pública em toda a Europa Central e Oriental feita em março pela Globsec, um grupo de pesquisa com sede em Bratislava, descobriu que apenas 40% dos eslovacos culpam a Rússia pela guerra na Ucrânia, enquanto 51% acreditam que a Ucrânia ou o Ocidente são “os principais responsáveis”. Na Polônia, 85% culpam a Rússia. Na República Tcheca, 71% acham que a Rússia é responsável.
Daniel Milo, diretor de um departamento do Ministério do Interior destinado a combater a desinformação e outras ameaças não militares, reconheceu que “há um terreno fértil aqui para o sentimento pró-russo” na região. Segundo ele, essa simpatia genuína enraizada na história foi explorada pela Rússia e apoiadores locais para semear divisão e piorar a opinião pública sobre a Ucrânia.
Entre os apoiadores está Hlavne Spravy, um site de notícias anti-americano popular na Eslováquia, e um grupo de motoqueiros chamado Brat za Brata (Irmão para Irmão, em português), afiliado à gangue de motoqueiros Night Wolves (Lobos Noturnos), patrocinada pelo Kremlin, na Rússia.
Um escritor freelancer de Hlavne Spravy, Bohus Garbar, foi condenado por espionagem este ano depois de ser flagrado em câmeras recebendo dinheiro de um oficial militar da Rússia, que já foi expulso.
O Brat za Brata, por sua vez, tem um grande número de seguidores nas redes sociais, laços estreitos com a embaixada russa e tem trabalhado para intimidar os críticos russos.
Peter Kalmus, um artista eslovaco de 70 anos, disse que foi espancado por membros do grupo no mês passado depois de desfigurar um memorial de guerra soviético na cidade de Kosice, leste do país, para protestar contra as atrocidades russas na Ucrânia. Em março, os motoqueiros transformaram em pandemônio um debate público patrocinado pelo governo em uma cidade perto da fronteira ucraniana com a presença de Kacer, na época ainda ministro. Manifestantes pró-Rússia ferozes, lembrou Kacer, “pularam no palco gritando e cuspindo em nós”.
Para Grigorij Meseznikov, presidente do Instituto de Assuntos Públicos, um grupo de pesquisa de Bratislava, muitos eslovacos “têm uma visão romântica inventada da Rússia em suas cabeças que realmente não existe” e são facilmente influenciados por “mentiras e propaganda” sobre o Ocidente.
Isso, acrescentou Meseznikov, tornou o país vulnerável aos esforços de Moscou para reunir o sentimento pró-Rússia na esperança de minar a unidade europeia sobre a Ucrânia. “Se você tirar até mesmo um pequeno tijolo de uma parede, ela pode desmoronar”, disse o pesquisador, referindo-se ao tamanho pequeno da Eslováquia em relação a toda Europa.
Lubos Blaha, vice-líder do partido SMER
Essa é sem dúvidas a esperança de Lubos Blaha, ex-membro de uma banda de heavy metal, autor de livros sobre Lenin e Che Guevara e agora vice-líder do partido político de Fico, o SMER. Ele é uma das vozes mais barulhentas e influentes da Eslováquia nas redes sociais e chama regularmente a presidente liberal do país, Zuzana Caputova, de “fascista” e os ministros pró-ucranianos de “marionetes americanas”.
“O clima na Europa está mudando”, disse Blaha em uma entrevista, descrevendo o conflito na Ucrânia como “uma guerra do império americano contra o império russo” que não pode ser vencida porque a Rússia é uma potência nuclear.
Blaha afirma que “não é pró-Rússia, apenas pró-interesses nacionais do meu país” e previu que os países hostis ao armamento da Ucrânia em breve serão maioria, enquanto os apoiadores da Ucrânia, minoria. Isso especialmente no cenário de vitória de Donald Trump nas próximas eleições dos Estados Unidos.
Acusações mútuas de interferência estrangeira
A plácida Eslováquia foi inundada por acusações acaloradas de todos os lados neste período que antecede as eleições. Os pró-russos, como Robert Fico, acusam a Otan de interferir na campanha, enquanto os opositores apontam o mesmo dedo para a Rússia. As acusações de interferência estrangeira são mútuas.
O ex-ministro da Defesa da Eslováquia, Jaroslav Nad, que liderou o esforço para enviar armas para a Ucrânia, descreveu o partido SMER como um “cavalo de Tróia” da Rússia. Recentemente, ele afirmou que relatórios de inteligência indicam que um cidadão eslovaco, não-identificado por ele, visitou a Rússia para receber dinheiro para beneficiar o SMER. No entanto, alegou sigilo e não apresentou provas, e a alegação foi amplamente descartada como uma difamação pré-eleitoral.
Ainda assim, a história das sepulturas de guerra destruídas espalhada pelo embaixador russo chamou a atenção para a habilidade da Rússia em tirar proveito da turbulência da Eslováquia. Também forneceu o que Daniel Milo, que trabalha no Ministério do Interior, chamou de “arma letal muito rara” que implica diretamente Moscou na produção de farsas. “Eles costumam agir de forma mais inteligente e tentam não ser pegos em flagrante”, declarou.