LONDRES - Nas profundezas dos arquivos da Biblioteca Nacional francesa, jazia intocada havia mais de 400 anos uma coleção de cartas escritas em código listada como textos italianos. Mas, quando três decifradores – um pianista alemão, um cientista da computação israelense e um físico japonês – se depararam com os escritos, descobriram algo extraordinário.
As cartas não eram textos italianos. Em vez disso, eram parte de uma correspondência secreta da prisão de Mary Stuart, a rainha da Escócia, cuja vida trágica e o papel emaranhado na letal política dinástica e religiosa do século 16 há muito fascina escritores e historiadores. Um dos principais biógrafos de Mary descreveu a descoberta como a mais significativa no estudo de sua vida em mais de um século.
“Encontramos um tesouro que estava à vista de todos”, afirmou George Lasry, o cientista da computação israelense que liderou o projeto de um ano – revelado ao público na quarta-feira, no 436.º aniversário da morte de Mary.
Ela se tornou rainha da Escócia com apenas 6 dias de vida, em 1542, mas acabou aprisionada e forçada a desistir do trono em 1567. Ela escapou para a Inglaterra, mas acabou presa novamente por sua prima, a rainha Elizabeth I, enquanto ameaça à sua autoridade. Após 19 anos presa, Maria foi executada em 1587, aos 44 anos, acusada de envolvimento em uma conspiração católica para assassinar a protestante Elizabeth.
Anteriormente tidas como perdidas, as 57 cartas, escritas entre 1578 e 1584, incluem impressões de Maria a respeito de sua saúde debilitada, suas condições de prisioneira em uma série de castelos ingleses e suas tentativas fracassadas de se libertar.
Maria também expressou uma angústia profunda por se separar de seu filho, James, que foi coroado rei da Escócia com 1 ano em razão da abdicação forçada da mãe, assim como sua desconfiança em relação ao chefe de espionagem de Elizabeth, sir Francis Walsingham.
A maior parte das cartas cifradas foi destinada ao embaixador francês na Inglaterra, Michel de Castelnau, que apoiava a reivindicação de Maria ao trono. Como descendente do rei Henrique VII, ela era considerada por muitos católicos não apenas uma possível defensora de sua fé, mas também rainha legítima da Inglaterra.
Legitimidade
Elizabeth era filha da segunda mulher do rei Henrique VIII, Ana Bolena, cujo casamento a Igreja não reconhecia. Em vez disso, Elizabeth acabou sucedida por James, que foi criado como protestante por nobres escoceses.
A existência de uma linha de comunicação confidencial entre Maria e o embaixador já era bastante conhecida por historiadores, mas as descobertas indicaram que a correspondência ocorria muito antes do que se acreditava.
“Agradeço-lhe imensamente o cuidado, a vigilância e a afeição inteiramente gentil com a qual eu percebo que o senhor acolhe todo o que me concerne e eu lhe imploro que continue a fazê-lo com mais força que nunca, especialmente para a minha referida libertação”, escreveu Maria, em 16 de abril de 1583.
Os decifradores de códigos refletiram sobre o ano em que entraram nas madrugadas decifrando as cerca de 50 mil palavras – inicialmente sem saber que eram da famosa autora. “Demandou muito tempo e esforço. Todos temos empregos. Fizemos isso de noite e nos fins de semana”, disse George Lasry, o israelense.
Depois de decifrar que a autora das mensagens tinha um filho, a equipe constatou várias menções a “ma liberté” e ao nome “Walsingham”. Foi somente nesse momento que os pesquisadores entenderam a importância dos documentos.
A codificação de Maria era complexa. “A cifra tem 200 símbolos diferentes, e todos podem representar letras, números e nomes”, afirmou Lasry. “Foi como descascar uma cebola. Tivemos que trabalhar em uma camada por vez.”
John Guy, historiador da Universidade de Cambridge cuja biografia de Mary, publicada em 2004, serviu como base para um filme de 2018 estrelando Saoirse Ronan e Margot Robbie, afirmou em um comunicado que as descobertas são uma “sensação literária e histórica”.
“Elas ocuparão historiadores do Reino Unido e da Europa, estudantes de língua francesa e técnicas de cifragem do início da modernidade ainda por muito anos”, afirmou ele.
Por agora, com uma segunda fase do projeto já em andamento, não há férias no horizonte dos decifradores de códigos. “Nós não descansaremos”, afirmou Lasry. “Nós nunca paramos, sempre procuramos novas cifras.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL