Uma calmaria se instaurou no fim da manhã de sábado. De repente, no volume máximo, ecoou por toda parte o hino da vitória no ritmo do rock ’n’ roll: We will, we will rock you! / We will, we will rock you! O som de um sentimento engasgado, seja nas panelas batendo, nas buzinas ou nos gritos, explodiu de todas as direções em Maplewood, New Jersey. E, com outra canção da banda Queen tocando nos falantes de sua garagem, Zack Kurland ficou na entrada de casa, com os braços erguidos como o boxeador Rocky. We are the champions! / We are the champions!
A mulher dele, Neena Kumar, veio correndo e pulou em seus braços. Tinha acabado de chegar a notícia de que Joe Biden fora declarado vencedor da eleição presidencial de 2020, e agora os dois rodopiavam em uma improvisada dança da vitória. O momento lembrava uma icônica imagem americana: um marinheiro da 2.ª Guerra beijando espontaneamente uma mulher vestida de enfermeira em Times Square quando chega a notícia da vitória na Europa.
Mas nem todos estavam dançando. O triunfo em uma guerra no estrangeiro une um país; o triunfo em uma eleição traz o potencial de dividir o país ainda mais. E, já na manhã de domingo, parte da celebração e do lamento tinha se desfeito, dando lugar a uma questão difícil para as famílias divididas de um país dividido: e agora?
É verdade que mais de 75 milhões de americanos votaram no democrata Biden e em Kamala Harris, a primeira mulher a ser eleita vice-presidente. Um recorde. Também é verdade que mais de 71 milhões de eleitores do Partido Republicano teriam agora de aceitar a ideia de que seu candidato, o presidente Donald Trump, provavelmente receberá o epíteto que mais detesta: perdedor.
Se os eleitores de Trump buzinaram durante todo o sábado, isso ocorreu para pedir licença aos eleitores de Biden que celebravam nas ruas. E a única esperança oferecida por seu líder era uma promessa de questionar nos tribunais aquilo que ele descreveu como eleição fraudulenta, sem apresentar provas.
Ao se recusar (por enquanto) a reconhecer publicamente o resultado da eleição, Trump estava praticamente fazendo um convite à discórdia. E alguns aceitaram esse convite.
Eleitores de Trump se reuniram diante dos governos estaduais de todo o país com cartazes dizendo “Stop the Steal” (Parem a roubalheira). Em Sacramento, Califórnia, vídeos mostraram discussões que levaram à violência física; alguns no meio da confusão vestiam camisas polo pretas e amarelas frequentemente associadas aos Proud Boys, grupo de extrema direita que apoia Trump e tem histórico de violência. Outro vídeo, registrado em Salem, Oregon, mostra um homem vestido como membro dos Proud Boys usando o que parece ser spray de pimenta, seguido de uma multidão que golpeia um veículo com os punhos e um bastão de beisebol.
Esses pequenos momentos mostram o tamanho da fissura coletiva na psique americana, cuja cicatrização Biden buscou começar com seu discurso na noite de sábado. Diante de um palco com bandeiras americanas, ele disse que era chegada a hora de restaurar a alma do país. “É hora de deixar de lado a retórica belicosa”, disse ele. “Baixar a temperatura. Voltar a conviver. Voltar a dar ouvidos uns aos outros.” As palavras dele pareciam dirigidas tanto a cada americano individualmente quanto ao país como um todo, reconhecendo as imensas divisões fomentadas durante os quatro anos transcorridos desde a eleição de Trump.
Amizades se perderam. As relações no ambiente de trabalho esfriaram. As reuniões de família ficaram marcadas pelo medo de que um pedido para passar o sal pudesse desencadear uma discussão política.
Em Louisville, Kentucky, a advogada Dustin Meek disse ter passado muito tempo tentando driblar as divisões políticas entre ela, que se descreve como democrata progressista, e os parentes na cidade de Ashland, onde os eleitores de Trump são maioria. “A noite começa com um pacto decidindo que não falaremos de política”, disse Dustin, de 54 anos. “Mas, inevitavelmente, alguma piada é feita, algum comentário, provocação e, sinceramente, esse tipo de coisa desgastou muito as relações. É difícil.” Dustin manifestou a esperança de que a retórica menos incendiária de um novo presidente possa trazer alguma distensão. E disse que não vai permitir que a política a impeça de participar de reuniões futuras da família. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL* COLUNISTA E ESCRITOR