Os chilenos rejeitaram neste domingo, 4, em referendo o novo texto constitucional. Com 99,5% dos votos apurados, o “rechaço” à nova Carta tinha 62% dos votos. A aprovação, 38%. Alguns membros do governo reconheceram a derrota. “Como chefe da campanha pela aprovação, reconheço o resultado”, disse o deputado Vlado Mirosevic, coordenador do comitê em favor do novo texto.
A votação deste domingo foi marcada pela tranquilidade e pelo alto comparecimento – mais de 12 milhões de chilenos votaram. Analistas disseram que a volta do voto obrigatório, após dez anos ausente, contribuiu para a presença nas urnas. Apenas no início da noite, após a divulgação do resultado, a polícia teve trabalho para desfazer algumas barricadas no centro de Santiago.
A nova Constituição substituiria a Carta de 1980, imposta na época da ditadura de Augusto Pinochet. Ela era crucial para as reformas propostas pelo presidente, Gabriel Boric, que fez campanha pela aprovação – e perdeu. Ele prometeu promover um um novo e rápido processo constitucional.
“Prometo fazer tudo da minha parte para construir um novo itinerário constituinte”, disse Boric em mensagem à nação após a rápida contagem de votos. “O povo do Chile falou e o fez em voz alta e clara. Chilenos e chilenas exigiram uma nova oportunidade de encontro e devemos atender a esse chamado”, acrescentou.
Com a derrota, o velho marco jurídico da ditadura continua vigente. No entanto, há um consenso entre a maioria dos líderes políticos que o projeto de uma nova Constituição segue vivo. A razão é que o projeto de uma nova Carta foi aprovado em um plebiscito, em outubro de 2020, por quase 80% dos chilenos.
Neste domingo, mesmo antes de saber do resultado, Boric convocou uma reunião no Palácio La Moneda com líderes de todos os partidos para discutir como elaborar uma nova Carta. “Precisamos abrir um diálogo sobre como continuar o processo constituinte”, disse o presidente.
A derrota, no entanto, não seguiu uma linha ideológica. Boa parte dos que rejeitaram a Carta neste domingo são de centro ou centro-esquerda. Entre eles estão os ex-presidentes Ricardo Lagos, um socialista, e Eduardo Frei, um democrata cristão. Ambos rejeitam tanto a Constituição de Pinochet quanto a nova proposta e defendem que o processo constituinte siga após o referendo.
Até o ex-presidente Sebastián Piñera, um conservador que se manteve em silêncio durante a campanha, parece concordar com a continuidade do processo constituinte. “Temos um compromisso com uma nova e boa Constituição. E vamos cumpri-lo”, afirmou o ex-presidente após depositar seu voto – ele não disse como votou.
Entre os líderes políticos que não devem hipotecar apoio a um novo processo está o líder da direita José Antonio Kast, derrotado por Boric na eleição presidencial. “Temos uma nova chance de reconquistar a nossa pátria. Eu li várias vezes o rascunho do texto constitucional e ainda não entendi nada”, disse Kast logo após votar, em Santiago.
Kast se refere não só ao tamanho do texto constitucional – com cerca de 400 artigos –, mas também à linguagem confusa que garante direitos sem detalhes práticos. O documento menciona o termo “gênero” 39 vezes. As decisões judiciais, a polícia e o sistema de saúde teriam de funcionar com uma “perspectiva de gênero”, que não é definida.
‘Jogo da Vergonha’
O local que mais simbolizou o dia do referendo foi a maior zona eleitoral do Chile, o Estádio Nacional, em Santiago, um ícone da ditadura. Mais de 13 mil eleitores votaram no palco da decisão da Copa de 1962, vencida pelo Brasil.
“É um palco de muitas alegrias esportivas e recreativas, pois é usado para shows e espetáculos, mas também é um lugar de profunda dor, tristeza e violência”, afirmou a historiadora Carla Peñaloza.
Pelos porões do estádio passaram 50 mil prisioneiros, entre setembro e novembro de 1973, quando o local foi fechado como centro de detenção.
“O Estádio Nacional parou de receber presos políticos porque era preciso jogar contra a União Soviética pelas eliminatórias da Copa de 1974″, lembra Peñaloza. “Em protesto contra a ditadura, os soviéticos não entraram em campo.”
A partida ficou conhecida como “Jogo da Vergonha” e o Chile se classificou com um gol patético, após uma troca de passes entre os joga dores chilenos sem time adversário.
Na fila para entrar estava Ana Velázquez, que ficou presa por duas semanas no estádio quando tinha 21 anos. “Saí por milagre, graças à Cruz Vermelha”, disse Velázquez. “Temos de jogar no lixo a Constituição de Pinochet, que foi escrita com sangue e fogo. Agradeço aos jovens do Chile, que se uniram na revolta social e iniciaram esse processo.”
A rejeição do texto constitucional deve ter um profundo impacto no governo Boric, que dependia do novo marco legal para adotar as reformas que propôs na campanha. Agora, analistas e líderes políticos divergem sobre os próximos passos.
Há poucas saídas. Com a rejeição, o Chile volta à estaca zero. “Em termos jurídicos, segue vigente a Constituição de 1980. Mas em termos políticos, há um entendimento de que a atual Carta não tem legitimidade”, disse Pamela Figueroa, professora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago.
“Os problemas do Chile a gente resolve de maneira democrática”, disse Boric, às vésperas do referendo. “Teremos de enfrentar uma nova convenção, que vai demorar mais. Mas o povo do Chile já definiu que quer um novo texto escrito de forma democrática, paritária, com mais participação.”/EFE, AFP e AP