China constrói imagem de pacificadora na diplomacia para disputar papel de superpotência com os EUA


Mediação no acordo entre Arábia Saudita e Irã habilitou gigante asiático a ser reconhecido como ator de peso no jogo diplomático; superpotências podem cooperar na questão da Ucrânia

Por Luiz Henrique Gomes
Atualização:

A China surpreendeu o mundo em março ao se apresentar como o principal mediador do restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã, rompidas por sete anos. A mediação foi feita sem alarde, mas uma vez que o acordo veio a público, as aspirações chinesas ficaram evidentes e Pequim começou uma incursão menos discreta para ser reconhecida como ator de peso no jogo diplomático, capaz de resolver conflitos, garantir estabilidade e ser alternativa aos Estados Unidos.

Dias depois do acordo, o país decidiu entrar de vez nos holofotes em torno da guerra na Ucrânia. O presidente Xi Jinping havia apresentado um plano de paz no aniversário da invasão russa, em 24 de fevereiro, mas inicialmente o plano foi visto sob o ceticismo do Ocidente, que inclui os EUA e as nações aliadas da Europa. Com o prestígio conquistado com os árabes, no entanto, Pequim se habilitou a ter um papel importante.

No fim de abril, Xi conversou com o presidente ucraniano Volodmir Zelenski e garantiu o envio de representantes a Kiev para tentar iniciar negociações de paz. Cumpriu o prometido. O representante especial da China para a Europa, Li Hui, ex-embaixador em Moscou, desembarcou na capital ucraniana duas semanas depois da ligação e seguiu para Polônia, França, Alemanha e Rússia. O ministro das Relações Exteriores chinês, Qin Gang, também esteve conversando com líderes europeus em maio.

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Imagem mostra Wang Yi, principal diplomata da China, ao lado do representante da Arábia Saudita, Mohammed Al Aiban, e do Irã, Ali Shamkhani, em março. Mediação da China fez países retomarem laços após sete anos Foto: China Daily/via Reuters

As novas incursões representaram uma mudança à política externa tradicional de Pequim, caracterizada no mundo contemporâneo pelo pragmatismo. A China é a principal parceira comercial de 120 nações e ganhou presença cada vez maior na América Latina, Ásia Central e África na última década. Apesar disso, se absteve de interferir em questões políticas nessas regiões. A exceção é o Leste Asiático, onde busca reordenar a ordem de segurança desde que o governo Obama ordenou mais investimento diplomático e econômico no Pacífico em 2011. À época, a decisão foi vista como movimento para combater o crescimento da China.

Para analistas, o novo perfil reflete uma confirmação do status de superpotência que o país conquistou neste período e é resposta aos embates com os Estados Unidos, com quem a relação começou a se deteriorar mais fortemente em 2016, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Sete anos depois, a relação dos dois países atingiu o pior momento nos últimos 40 anos.

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“Acho natural que potências maiores tenham interesses que se espalham pelo mundo inteiro”, afirma Susan Thorton, diplomata americana com 30 anos de experiência na Eurásia e Leste Asiático e atual professora da Universidade de Yale. “No caso da China, é uma manifestação de poder crescente, interesses em expansão, desejo de um ambiente previsivelmente estável e acesso a recursos e que serve para mostrar que são ‘responsáveis’”.

Apesar de ter se tornado a segunda maior economia do mundo em 2010, a China ainda não havia almejado um protagonismo no campo diplomático mundial. Enquanto crescia em um ritmo acima de dois dígitos por ano no início do século, as relações internacionais de Pequim focaram exclusivamente no comércio. “Quando o crescimento diminuiu, esse perfil mudou”, afirmou o diplomata Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim e atual conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

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O antagonismo com os EUA

Com larga experiência na China, onde mora desde 2008, Caramuru observou de perto as mudanças do país na área diplomática. As primeiras aconteceram durante o governo Trump, que impôs restrições comerciais ao país asiático e passou a considerá-lo uma ameaça à segurança nacional. “Com isso, a diplomacia chinesa foi ficando mais ativa em verbalizar ideias”, disse Caramuru.

As relações entre as duas maiores economias mundiais se deterioraram progressivamente a partir daí e se acentuou com a pandemia de covid-19, em 2020. Os EUA adotaram a retórica de “vírus chinês” para tratar o coronavírus, a China acusou os EUA de promover desinformação. A imagem do país asiático piorou em todo o mundo.

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Em resposta às críticas, os diplomatas chineses agiram de maneira enérgica para defender o país, em um estilo diplomático apelidado de ‘diplomacia do lobo guerreiro’. Ao Financial Times, um diplomata alemão chegou a declarar que Pequim estava falando com a Alemanha “em um tom que só usariam para países que consideravam pequenos ou fracos”.

A estratégia foi abandonada após reações negativas, mas sinalizou que Pequim se sentia à altura dos países mais influentes politicamente. Washington, no entanto, já encarava o país como “a maior ameaça para os EUA hoje”, nas palavras do então diretor de Inteligência Nacional (CIA), John Ratcliffe, em dezembro de 2020.

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Segundo analistas, foi neste momento que o governo chinês entendeu que precisava fortalecer alianças e ter boas relações exteriores não apenas econômicas, mas também políticas. “Pequim quer aliviar as pressões da competição com Washington fortalecendo sua posição diplomática”, afirmou a analista Amanda Hsiao, do Crisis Group, organização voltada à resolução e prevenção de conflitos armados internacionais com sede em Washington e Bruxelas.

Com a chegada de Joe Biden à presidência dos EUA em 2021 e a invasão na Ucrânia no ano seguinte, as tensões continuaram crescendo. Biden ampliou a guerra comercial com mais sanções; Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos EUA, irritou Pequim ao visitar Taiwan (ato considerado pelo governo chinês uma violação da política de “Uma Só China”, que reconhece Pequim como único representante da China); e a detecção de um balão chinês sobre os EUA levou Washington acusar Pequim de espionagem.

Enquanto isso, o plano de Pequim para construir uma boa imagem no exterior continuou. “O esforço para se apresentar como um ator construtivo para a paz é parcialmente destinado a refutar as acusações ocidentais de que a China é o oposto - que é agressiva e ameaçadora à ordem existente”, analisou Hsiao.

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O plano de paz para a Ucrânia

Ao apresentar o plano de paz para a Ucrânia, a China tratou diretamente do problema no Leste Europeu pela primeira vez. Com isso, se contrapôs ao Ocidente. “Não foi a China que criou a crise da Ucrânia, a [República Popular da China] não fez parte dela e não forneceu armas a nenhuma das partes do conflito”, declarou o embaixador da China na Rússia, Zhang Hanhui, em fevereiro.

As nações ocidentais viram o plano de paz com ceticismo devido à relação entre Pequim e Moscou, fortalecida nas vésperas da guerra. O documento também foi considerado genérico ao apresentar apenas princípios, divididos em 12 pontos. Pequim, no entanto, disse que esses países não estariam em posição de dar instruções à China sobre o que fazer com a questão. E, com o acordo no Oriente Médio, obteve prestígio para se habilitar como mediador.

  • Posição resumida da China para a solução política da crise na Ucrânia:
  1. Respeito à soberania de todos os países;
  2. Abandono da mentalidade da Guerra Fria;
  3. Cessação das hostilidades;
  4. Retomada das negociações de paz;
  5. Resolução da crise humanitária;
  6. Proteção de civis e prisioneiros de guerra;
  7. Manutenção da segurança de usinas nucleares;
  8. Redução de riscos estratégicos (não utilização de armas nucleares);
  9. Facilitação da exportação de grãos;
  10. Suspensão de sanções unilaterais;
  11. Estabilidade das cadeias industriais e de abastecimento;
  12. Promoção da reconstrução pós-conflito.

A importância do acordo entre Irã e Arábia Saudita para o jogo diplomático está demonstrado por um fato inédito: foi a primeira vez que uma negociação no Oriente Médio não precisou de um país ocidental para ser concluído. “A existência e o fato do acordo ter sido bem sucedido oferece ao mundo o potencial que a China tem como conciliadora de conflitos”, disse Marcos Caramuru.

Água na fervura

Em maio, a poeira com os EUA começou a baixar. Washington reagiu de maneira positiva sobre o acordo no Oriente Médio e externou isso em uma reunião do conselheiro Segurança Nacional, Jake Sullivan, com o principal diplomata chinês, Wang Yi, em Viena. Sullivan teria dito a Wang que os EUA não teriam condições de mediar um acordo semelhante pela falta de relações com o Irã, uma das partes envolvidas.

Para analistas, o encontro significou uma disposição maior de Washington para o envolvimento da China na questão da Ucrânia. “Washington parece mais aberto a um possível papel de apoio chinês”, disse Hsiao.

Imagem de 17 de maio mostra encontro diplomático entre China e Ucrânia, em Kiev. China busca papel de mediação para paz no país Foto: Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/via AP

Os primeiros comentários após as incursões chinesas na Europa, no entanto, são um sinal da resistência que a China pode enfrentar para cooperar na questão da Ucrânia. Segundo uma reportagem do Wall Street Journal, Li Hui, o representante especial da China, entrou num impasse com os líderes europeus ao propor um cessar-fogo imediato na Ucrânia, enquanto os europeus querem a medida somente depois de as tropas da Rússia se retirarem das regiões anexadas durante o conflito. Essa condição seria inegociável para o Ocidente.

Entretanto, a versão do Wall Street Journal foi questionada pelo ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba. Kuleba disse ter entrado em contato com autoridades europeias que se encontram com Li Hui e “nenhum deles” confirmou que o diplomata chinês propôs um cessar-fogo com as tropas russas ocupando áreas da Ucrânia.

Na análise do professor brasileiro de relações internacionais da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Freitas, o papel da China em uma eventual paz na Ucrânia é crucial por duas razões. A primeira é que se trata de um dos poucos países que mantêm boas relações com a Rússia e ao mesmo tempo dialoga com a Ucrânia. A segunda é a capacidade econômica para reconstruir o país invadido. “A China é um país que tem condições de negociar a paz porque tem força sobre ambos países”, declarou Freitas.

O professor acrescenta que Pequim tem consciência da importância do sucesso da diplomacia para se firmar como superpotência mundial, capaz de questionar a ordem vigente. “É um passo muito bem planejado, tanto que demorou um ano para a China falar mais ativamente sobre essa questão.”

O balé diplomático

As movimentações diplomáticas da China em maio e a retomada de diálogos entre funcionários do alto escalão de Pequim e Washington indicaram abertura para a cooperação entre os chineses e o Ocidente. No entanto, interesses contrários em outros temas, como a competição por influência mundial e o entendimento sobre Taiwan, tornam difícil uma reaproximação definitiva, principalmente com Washington. “O que se vê (no futuro) é um balé diplomático entre as duas superpotências”, declarou Marcos Caramuru.

A oscilação da relação teve um novo passo na segunda-feira, 29. O Departamento de Defesa dos EUA disse que a China recusou pedido para uma reunião entre os chefes de defesa, o americano Lloyd Austin e o chinês Li Shangfu, em Singapura. O motivo do cancelamento não está claro, mas analistas atribuem às sanções americanas contra Li Shangfu, aplicadas em 2018 pela compra de aeronaves e equipamentos de combate do principal exportador de armas da Rússia, a Rosoboronexport.

Em comunicado, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que os EUA estavam “bem ciente” das razões. “O lado dos EUA deve (...) corrigir imediatamente suas práticas erradas, mostrar sinceridade e criar atmosfera e as condições necessárias para o diálogo e a comunicação entre os dois militares”, disse Mao Ning, porta-voz do ministério.

O novo embate não significa um retrocesso na possível cooperação da Ucrânia, mas dá mostras de como a competição deve continuar acontecendo. Ora mais próxima, ora mais distante. O que não se sabe é o que pode acontecer se uma das duas superpotências se sobressair em definitivo desta disputa. No momento, nenhuma parece disposta a baixar a guarda nas próprias ambições e parar a dança diplomática.

A China surpreendeu o mundo em março ao se apresentar como o principal mediador do restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã, rompidas por sete anos. A mediação foi feita sem alarde, mas uma vez que o acordo veio a público, as aspirações chinesas ficaram evidentes e Pequim começou uma incursão menos discreta para ser reconhecida como ator de peso no jogo diplomático, capaz de resolver conflitos, garantir estabilidade e ser alternativa aos Estados Unidos.

Dias depois do acordo, o país decidiu entrar de vez nos holofotes em torno da guerra na Ucrânia. O presidente Xi Jinping havia apresentado um plano de paz no aniversário da invasão russa, em 24 de fevereiro, mas inicialmente o plano foi visto sob o ceticismo do Ocidente, que inclui os EUA e as nações aliadas da Europa. Com o prestígio conquistado com os árabes, no entanto, Pequim se habilitou a ter um papel importante.

No fim de abril, Xi conversou com o presidente ucraniano Volodmir Zelenski e garantiu o envio de representantes a Kiev para tentar iniciar negociações de paz. Cumpriu o prometido. O representante especial da China para a Europa, Li Hui, ex-embaixador em Moscou, desembarcou na capital ucraniana duas semanas depois da ligação e seguiu para Polônia, França, Alemanha e Rússia. O ministro das Relações Exteriores chinês, Qin Gang, também esteve conversando com líderes europeus em maio.

Imagem mostra Wang Yi, principal diplomata da China, ao lado do representante da Arábia Saudita, Mohammed Al Aiban, e do Irã, Ali Shamkhani, em março. Mediação da China fez países retomarem laços após sete anos Foto: China Daily/via Reuters

As novas incursões representaram uma mudança à política externa tradicional de Pequim, caracterizada no mundo contemporâneo pelo pragmatismo. A China é a principal parceira comercial de 120 nações e ganhou presença cada vez maior na América Latina, Ásia Central e África na última década. Apesar disso, se absteve de interferir em questões políticas nessas regiões. A exceção é o Leste Asiático, onde busca reordenar a ordem de segurança desde que o governo Obama ordenou mais investimento diplomático e econômico no Pacífico em 2011. À época, a decisão foi vista como movimento para combater o crescimento da China.

Para analistas, o novo perfil reflete uma confirmação do status de superpotência que o país conquistou neste período e é resposta aos embates com os Estados Unidos, com quem a relação começou a se deteriorar mais fortemente em 2016, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Sete anos depois, a relação dos dois países atingiu o pior momento nos últimos 40 anos.

“Acho natural que potências maiores tenham interesses que se espalham pelo mundo inteiro”, afirma Susan Thorton, diplomata americana com 30 anos de experiência na Eurásia e Leste Asiático e atual professora da Universidade de Yale. “No caso da China, é uma manifestação de poder crescente, interesses em expansão, desejo de um ambiente previsivelmente estável e acesso a recursos e que serve para mostrar que são ‘responsáveis’”.

Apesar de ter se tornado a segunda maior economia do mundo em 2010, a China ainda não havia almejado um protagonismo no campo diplomático mundial. Enquanto crescia em um ritmo acima de dois dígitos por ano no início do século, as relações internacionais de Pequim focaram exclusivamente no comércio. “Quando o crescimento diminuiu, esse perfil mudou”, afirmou o diplomata Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim e atual conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

O antagonismo com os EUA

Com larga experiência na China, onde mora desde 2008, Caramuru observou de perto as mudanças do país na área diplomática. As primeiras aconteceram durante o governo Trump, que impôs restrições comerciais ao país asiático e passou a considerá-lo uma ameaça à segurança nacional. “Com isso, a diplomacia chinesa foi ficando mais ativa em verbalizar ideias”, disse Caramuru.

As relações entre as duas maiores economias mundiais se deterioraram progressivamente a partir daí e se acentuou com a pandemia de covid-19, em 2020. Os EUA adotaram a retórica de “vírus chinês” para tratar o coronavírus, a China acusou os EUA de promover desinformação. A imagem do país asiático piorou em todo o mundo.

Em resposta às críticas, os diplomatas chineses agiram de maneira enérgica para defender o país, em um estilo diplomático apelidado de ‘diplomacia do lobo guerreiro’. Ao Financial Times, um diplomata alemão chegou a declarar que Pequim estava falando com a Alemanha “em um tom que só usariam para países que consideravam pequenos ou fracos”.

A estratégia foi abandonada após reações negativas, mas sinalizou que Pequim se sentia à altura dos países mais influentes politicamente. Washington, no entanto, já encarava o país como “a maior ameaça para os EUA hoje”, nas palavras do então diretor de Inteligência Nacional (CIA), John Ratcliffe, em dezembro de 2020.

Segundo analistas, foi neste momento que o governo chinês entendeu que precisava fortalecer alianças e ter boas relações exteriores não apenas econômicas, mas também políticas. “Pequim quer aliviar as pressões da competição com Washington fortalecendo sua posição diplomática”, afirmou a analista Amanda Hsiao, do Crisis Group, organização voltada à resolução e prevenção de conflitos armados internacionais com sede em Washington e Bruxelas.

Com a chegada de Joe Biden à presidência dos EUA em 2021 e a invasão na Ucrânia no ano seguinte, as tensões continuaram crescendo. Biden ampliou a guerra comercial com mais sanções; Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos EUA, irritou Pequim ao visitar Taiwan (ato considerado pelo governo chinês uma violação da política de “Uma Só China”, que reconhece Pequim como único representante da China); e a detecção de um balão chinês sobre os EUA levou Washington acusar Pequim de espionagem.

Enquanto isso, o plano de Pequim para construir uma boa imagem no exterior continuou. “O esforço para se apresentar como um ator construtivo para a paz é parcialmente destinado a refutar as acusações ocidentais de que a China é o oposto - que é agressiva e ameaçadora à ordem existente”, analisou Hsiao.

O plano de paz para a Ucrânia

Ao apresentar o plano de paz para a Ucrânia, a China tratou diretamente do problema no Leste Europeu pela primeira vez. Com isso, se contrapôs ao Ocidente. “Não foi a China que criou a crise da Ucrânia, a [República Popular da China] não fez parte dela e não forneceu armas a nenhuma das partes do conflito”, declarou o embaixador da China na Rússia, Zhang Hanhui, em fevereiro.

As nações ocidentais viram o plano de paz com ceticismo devido à relação entre Pequim e Moscou, fortalecida nas vésperas da guerra. O documento também foi considerado genérico ao apresentar apenas princípios, divididos em 12 pontos. Pequim, no entanto, disse que esses países não estariam em posição de dar instruções à China sobre o que fazer com a questão. E, com o acordo no Oriente Médio, obteve prestígio para se habilitar como mediador.

  • Posição resumida da China para a solução política da crise na Ucrânia:
  1. Respeito à soberania de todos os países;
  2. Abandono da mentalidade da Guerra Fria;
  3. Cessação das hostilidades;
  4. Retomada das negociações de paz;
  5. Resolução da crise humanitária;
  6. Proteção de civis e prisioneiros de guerra;
  7. Manutenção da segurança de usinas nucleares;
  8. Redução de riscos estratégicos (não utilização de armas nucleares);
  9. Facilitação da exportação de grãos;
  10. Suspensão de sanções unilaterais;
  11. Estabilidade das cadeias industriais e de abastecimento;
  12. Promoção da reconstrução pós-conflito.

A importância do acordo entre Irã e Arábia Saudita para o jogo diplomático está demonstrado por um fato inédito: foi a primeira vez que uma negociação no Oriente Médio não precisou de um país ocidental para ser concluído. “A existência e o fato do acordo ter sido bem sucedido oferece ao mundo o potencial que a China tem como conciliadora de conflitos”, disse Marcos Caramuru.

Água na fervura

Em maio, a poeira com os EUA começou a baixar. Washington reagiu de maneira positiva sobre o acordo no Oriente Médio e externou isso em uma reunião do conselheiro Segurança Nacional, Jake Sullivan, com o principal diplomata chinês, Wang Yi, em Viena. Sullivan teria dito a Wang que os EUA não teriam condições de mediar um acordo semelhante pela falta de relações com o Irã, uma das partes envolvidas.

Para analistas, o encontro significou uma disposição maior de Washington para o envolvimento da China na questão da Ucrânia. “Washington parece mais aberto a um possível papel de apoio chinês”, disse Hsiao.

Imagem de 17 de maio mostra encontro diplomático entre China e Ucrânia, em Kiev. China busca papel de mediação para paz no país Foto: Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/via AP

Os primeiros comentários após as incursões chinesas na Europa, no entanto, são um sinal da resistência que a China pode enfrentar para cooperar na questão da Ucrânia. Segundo uma reportagem do Wall Street Journal, Li Hui, o representante especial da China, entrou num impasse com os líderes europeus ao propor um cessar-fogo imediato na Ucrânia, enquanto os europeus querem a medida somente depois de as tropas da Rússia se retirarem das regiões anexadas durante o conflito. Essa condição seria inegociável para o Ocidente.

Entretanto, a versão do Wall Street Journal foi questionada pelo ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba. Kuleba disse ter entrado em contato com autoridades europeias que se encontram com Li Hui e “nenhum deles” confirmou que o diplomata chinês propôs um cessar-fogo com as tropas russas ocupando áreas da Ucrânia.

Na análise do professor brasileiro de relações internacionais da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Freitas, o papel da China em uma eventual paz na Ucrânia é crucial por duas razões. A primeira é que se trata de um dos poucos países que mantêm boas relações com a Rússia e ao mesmo tempo dialoga com a Ucrânia. A segunda é a capacidade econômica para reconstruir o país invadido. “A China é um país que tem condições de negociar a paz porque tem força sobre ambos países”, declarou Freitas.

O professor acrescenta que Pequim tem consciência da importância do sucesso da diplomacia para se firmar como superpotência mundial, capaz de questionar a ordem vigente. “É um passo muito bem planejado, tanto que demorou um ano para a China falar mais ativamente sobre essa questão.”

O balé diplomático

As movimentações diplomáticas da China em maio e a retomada de diálogos entre funcionários do alto escalão de Pequim e Washington indicaram abertura para a cooperação entre os chineses e o Ocidente. No entanto, interesses contrários em outros temas, como a competição por influência mundial e o entendimento sobre Taiwan, tornam difícil uma reaproximação definitiva, principalmente com Washington. “O que se vê (no futuro) é um balé diplomático entre as duas superpotências”, declarou Marcos Caramuru.

A oscilação da relação teve um novo passo na segunda-feira, 29. O Departamento de Defesa dos EUA disse que a China recusou pedido para uma reunião entre os chefes de defesa, o americano Lloyd Austin e o chinês Li Shangfu, em Singapura. O motivo do cancelamento não está claro, mas analistas atribuem às sanções americanas contra Li Shangfu, aplicadas em 2018 pela compra de aeronaves e equipamentos de combate do principal exportador de armas da Rússia, a Rosoboronexport.

Em comunicado, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que os EUA estavam “bem ciente” das razões. “O lado dos EUA deve (...) corrigir imediatamente suas práticas erradas, mostrar sinceridade e criar atmosfera e as condições necessárias para o diálogo e a comunicação entre os dois militares”, disse Mao Ning, porta-voz do ministério.

O novo embate não significa um retrocesso na possível cooperação da Ucrânia, mas dá mostras de como a competição deve continuar acontecendo. Ora mais próxima, ora mais distante. O que não se sabe é o que pode acontecer se uma das duas superpotências se sobressair em definitivo desta disputa. No momento, nenhuma parece disposta a baixar a guarda nas próprias ambições e parar a dança diplomática.

A China surpreendeu o mundo em março ao se apresentar como o principal mediador do restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã, rompidas por sete anos. A mediação foi feita sem alarde, mas uma vez que o acordo veio a público, as aspirações chinesas ficaram evidentes e Pequim começou uma incursão menos discreta para ser reconhecida como ator de peso no jogo diplomático, capaz de resolver conflitos, garantir estabilidade e ser alternativa aos Estados Unidos.

Dias depois do acordo, o país decidiu entrar de vez nos holofotes em torno da guerra na Ucrânia. O presidente Xi Jinping havia apresentado um plano de paz no aniversário da invasão russa, em 24 de fevereiro, mas inicialmente o plano foi visto sob o ceticismo do Ocidente, que inclui os EUA e as nações aliadas da Europa. Com o prestígio conquistado com os árabes, no entanto, Pequim se habilitou a ter um papel importante.

No fim de abril, Xi conversou com o presidente ucraniano Volodmir Zelenski e garantiu o envio de representantes a Kiev para tentar iniciar negociações de paz. Cumpriu o prometido. O representante especial da China para a Europa, Li Hui, ex-embaixador em Moscou, desembarcou na capital ucraniana duas semanas depois da ligação e seguiu para Polônia, França, Alemanha e Rússia. O ministro das Relações Exteriores chinês, Qin Gang, também esteve conversando com líderes europeus em maio.

Imagem mostra Wang Yi, principal diplomata da China, ao lado do representante da Arábia Saudita, Mohammed Al Aiban, e do Irã, Ali Shamkhani, em março. Mediação da China fez países retomarem laços após sete anos Foto: China Daily/via Reuters

As novas incursões representaram uma mudança à política externa tradicional de Pequim, caracterizada no mundo contemporâneo pelo pragmatismo. A China é a principal parceira comercial de 120 nações e ganhou presença cada vez maior na América Latina, Ásia Central e África na última década. Apesar disso, se absteve de interferir em questões políticas nessas regiões. A exceção é o Leste Asiático, onde busca reordenar a ordem de segurança desde que o governo Obama ordenou mais investimento diplomático e econômico no Pacífico em 2011. À época, a decisão foi vista como movimento para combater o crescimento da China.

Para analistas, o novo perfil reflete uma confirmação do status de superpotência que o país conquistou neste período e é resposta aos embates com os Estados Unidos, com quem a relação começou a se deteriorar mais fortemente em 2016, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Sete anos depois, a relação dos dois países atingiu o pior momento nos últimos 40 anos.

“Acho natural que potências maiores tenham interesses que se espalham pelo mundo inteiro”, afirma Susan Thorton, diplomata americana com 30 anos de experiência na Eurásia e Leste Asiático e atual professora da Universidade de Yale. “No caso da China, é uma manifestação de poder crescente, interesses em expansão, desejo de um ambiente previsivelmente estável e acesso a recursos e que serve para mostrar que são ‘responsáveis’”.

Apesar de ter se tornado a segunda maior economia do mundo em 2010, a China ainda não havia almejado um protagonismo no campo diplomático mundial. Enquanto crescia em um ritmo acima de dois dígitos por ano no início do século, as relações internacionais de Pequim focaram exclusivamente no comércio. “Quando o crescimento diminuiu, esse perfil mudou”, afirmou o diplomata Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim e atual conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

O antagonismo com os EUA

Com larga experiência na China, onde mora desde 2008, Caramuru observou de perto as mudanças do país na área diplomática. As primeiras aconteceram durante o governo Trump, que impôs restrições comerciais ao país asiático e passou a considerá-lo uma ameaça à segurança nacional. “Com isso, a diplomacia chinesa foi ficando mais ativa em verbalizar ideias”, disse Caramuru.

As relações entre as duas maiores economias mundiais se deterioraram progressivamente a partir daí e se acentuou com a pandemia de covid-19, em 2020. Os EUA adotaram a retórica de “vírus chinês” para tratar o coronavírus, a China acusou os EUA de promover desinformação. A imagem do país asiático piorou em todo o mundo.

Em resposta às críticas, os diplomatas chineses agiram de maneira enérgica para defender o país, em um estilo diplomático apelidado de ‘diplomacia do lobo guerreiro’. Ao Financial Times, um diplomata alemão chegou a declarar que Pequim estava falando com a Alemanha “em um tom que só usariam para países que consideravam pequenos ou fracos”.

A estratégia foi abandonada após reações negativas, mas sinalizou que Pequim se sentia à altura dos países mais influentes politicamente. Washington, no entanto, já encarava o país como “a maior ameaça para os EUA hoje”, nas palavras do então diretor de Inteligência Nacional (CIA), John Ratcliffe, em dezembro de 2020.

Segundo analistas, foi neste momento que o governo chinês entendeu que precisava fortalecer alianças e ter boas relações exteriores não apenas econômicas, mas também políticas. “Pequim quer aliviar as pressões da competição com Washington fortalecendo sua posição diplomática”, afirmou a analista Amanda Hsiao, do Crisis Group, organização voltada à resolução e prevenção de conflitos armados internacionais com sede em Washington e Bruxelas.

Com a chegada de Joe Biden à presidência dos EUA em 2021 e a invasão na Ucrânia no ano seguinte, as tensões continuaram crescendo. Biden ampliou a guerra comercial com mais sanções; Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos EUA, irritou Pequim ao visitar Taiwan (ato considerado pelo governo chinês uma violação da política de “Uma Só China”, que reconhece Pequim como único representante da China); e a detecção de um balão chinês sobre os EUA levou Washington acusar Pequim de espionagem.

Enquanto isso, o plano de Pequim para construir uma boa imagem no exterior continuou. “O esforço para se apresentar como um ator construtivo para a paz é parcialmente destinado a refutar as acusações ocidentais de que a China é o oposto - que é agressiva e ameaçadora à ordem existente”, analisou Hsiao.

O plano de paz para a Ucrânia

Ao apresentar o plano de paz para a Ucrânia, a China tratou diretamente do problema no Leste Europeu pela primeira vez. Com isso, se contrapôs ao Ocidente. “Não foi a China que criou a crise da Ucrânia, a [República Popular da China] não fez parte dela e não forneceu armas a nenhuma das partes do conflito”, declarou o embaixador da China na Rússia, Zhang Hanhui, em fevereiro.

As nações ocidentais viram o plano de paz com ceticismo devido à relação entre Pequim e Moscou, fortalecida nas vésperas da guerra. O documento também foi considerado genérico ao apresentar apenas princípios, divididos em 12 pontos. Pequim, no entanto, disse que esses países não estariam em posição de dar instruções à China sobre o que fazer com a questão. E, com o acordo no Oriente Médio, obteve prestígio para se habilitar como mediador.

  • Posição resumida da China para a solução política da crise na Ucrânia:
  1. Respeito à soberania de todos os países;
  2. Abandono da mentalidade da Guerra Fria;
  3. Cessação das hostilidades;
  4. Retomada das negociações de paz;
  5. Resolução da crise humanitária;
  6. Proteção de civis e prisioneiros de guerra;
  7. Manutenção da segurança de usinas nucleares;
  8. Redução de riscos estratégicos (não utilização de armas nucleares);
  9. Facilitação da exportação de grãos;
  10. Suspensão de sanções unilaterais;
  11. Estabilidade das cadeias industriais e de abastecimento;
  12. Promoção da reconstrução pós-conflito.

A importância do acordo entre Irã e Arábia Saudita para o jogo diplomático está demonstrado por um fato inédito: foi a primeira vez que uma negociação no Oriente Médio não precisou de um país ocidental para ser concluído. “A existência e o fato do acordo ter sido bem sucedido oferece ao mundo o potencial que a China tem como conciliadora de conflitos”, disse Marcos Caramuru.

Água na fervura

Em maio, a poeira com os EUA começou a baixar. Washington reagiu de maneira positiva sobre o acordo no Oriente Médio e externou isso em uma reunião do conselheiro Segurança Nacional, Jake Sullivan, com o principal diplomata chinês, Wang Yi, em Viena. Sullivan teria dito a Wang que os EUA não teriam condições de mediar um acordo semelhante pela falta de relações com o Irã, uma das partes envolvidas.

Para analistas, o encontro significou uma disposição maior de Washington para o envolvimento da China na questão da Ucrânia. “Washington parece mais aberto a um possível papel de apoio chinês”, disse Hsiao.

Imagem de 17 de maio mostra encontro diplomático entre China e Ucrânia, em Kiev. China busca papel de mediação para paz no país Foto: Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/via AP

Os primeiros comentários após as incursões chinesas na Europa, no entanto, são um sinal da resistência que a China pode enfrentar para cooperar na questão da Ucrânia. Segundo uma reportagem do Wall Street Journal, Li Hui, o representante especial da China, entrou num impasse com os líderes europeus ao propor um cessar-fogo imediato na Ucrânia, enquanto os europeus querem a medida somente depois de as tropas da Rússia se retirarem das regiões anexadas durante o conflito. Essa condição seria inegociável para o Ocidente.

Entretanto, a versão do Wall Street Journal foi questionada pelo ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba. Kuleba disse ter entrado em contato com autoridades europeias que se encontram com Li Hui e “nenhum deles” confirmou que o diplomata chinês propôs um cessar-fogo com as tropas russas ocupando áreas da Ucrânia.

Na análise do professor brasileiro de relações internacionais da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Freitas, o papel da China em uma eventual paz na Ucrânia é crucial por duas razões. A primeira é que se trata de um dos poucos países que mantêm boas relações com a Rússia e ao mesmo tempo dialoga com a Ucrânia. A segunda é a capacidade econômica para reconstruir o país invadido. “A China é um país que tem condições de negociar a paz porque tem força sobre ambos países”, declarou Freitas.

O professor acrescenta que Pequim tem consciência da importância do sucesso da diplomacia para se firmar como superpotência mundial, capaz de questionar a ordem vigente. “É um passo muito bem planejado, tanto que demorou um ano para a China falar mais ativamente sobre essa questão.”

O balé diplomático

As movimentações diplomáticas da China em maio e a retomada de diálogos entre funcionários do alto escalão de Pequim e Washington indicaram abertura para a cooperação entre os chineses e o Ocidente. No entanto, interesses contrários em outros temas, como a competição por influência mundial e o entendimento sobre Taiwan, tornam difícil uma reaproximação definitiva, principalmente com Washington. “O que se vê (no futuro) é um balé diplomático entre as duas superpotências”, declarou Marcos Caramuru.

A oscilação da relação teve um novo passo na segunda-feira, 29. O Departamento de Defesa dos EUA disse que a China recusou pedido para uma reunião entre os chefes de defesa, o americano Lloyd Austin e o chinês Li Shangfu, em Singapura. O motivo do cancelamento não está claro, mas analistas atribuem às sanções americanas contra Li Shangfu, aplicadas em 2018 pela compra de aeronaves e equipamentos de combate do principal exportador de armas da Rússia, a Rosoboronexport.

Em comunicado, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que os EUA estavam “bem ciente” das razões. “O lado dos EUA deve (...) corrigir imediatamente suas práticas erradas, mostrar sinceridade e criar atmosfera e as condições necessárias para o diálogo e a comunicação entre os dois militares”, disse Mao Ning, porta-voz do ministério.

O novo embate não significa um retrocesso na possível cooperação da Ucrânia, mas dá mostras de como a competição deve continuar acontecendo. Ora mais próxima, ora mais distante. O que não se sabe é o que pode acontecer se uma das duas superpotências se sobressair em definitivo desta disputa. No momento, nenhuma parece disposta a baixar a guarda nas próprias ambições e parar a dança diplomática.

A China surpreendeu o mundo em março ao se apresentar como o principal mediador do restabelecimento das relações entre Arábia Saudita e Irã, rompidas por sete anos. A mediação foi feita sem alarde, mas uma vez que o acordo veio a público, as aspirações chinesas ficaram evidentes e Pequim começou uma incursão menos discreta para ser reconhecida como ator de peso no jogo diplomático, capaz de resolver conflitos, garantir estabilidade e ser alternativa aos Estados Unidos.

Dias depois do acordo, o país decidiu entrar de vez nos holofotes em torno da guerra na Ucrânia. O presidente Xi Jinping havia apresentado um plano de paz no aniversário da invasão russa, em 24 de fevereiro, mas inicialmente o plano foi visto sob o ceticismo do Ocidente, que inclui os EUA e as nações aliadas da Europa. Com o prestígio conquistado com os árabes, no entanto, Pequim se habilitou a ter um papel importante.

No fim de abril, Xi conversou com o presidente ucraniano Volodmir Zelenski e garantiu o envio de representantes a Kiev para tentar iniciar negociações de paz. Cumpriu o prometido. O representante especial da China para a Europa, Li Hui, ex-embaixador em Moscou, desembarcou na capital ucraniana duas semanas depois da ligação e seguiu para Polônia, França, Alemanha e Rússia. O ministro das Relações Exteriores chinês, Qin Gang, também esteve conversando com líderes europeus em maio.

Imagem mostra Wang Yi, principal diplomata da China, ao lado do representante da Arábia Saudita, Mohammed Al Aiban, e do Irã, Ali Shamkhani, em março. Mediação da China fez países retomarem laços após sete anos Foto: China Daily/via Reuters

As novas incursões representaram uma mudança à política externa tradicional de Pequim, caracterizada no mundo contemporâneo pelo pragmatismo. A China é a principal parceira comercial de 120 nações e ganhou presença cada vez maior na América Latina, Ásia Central e África na última década. Apesar disso, se absteve de interferir em questões políticas nessas regiões. A exceção é o Leste Asiático, onde busca reordenar a ordem de segurança desde que o governo Obama ordenou mais investimento diplomático e econômico no Pacífico em 2011. À época, a decisão foi vista como movimento para combater o crescimento da China.

Para analistas, o novo perfil reflete uma confirmação do status de superpotência que o país conquistou neste período e é resposta aos embates com os Estados Unidos, com quem a relação começou a se deteriorar mais fortemente em 2016, com a chegada de Donald Trump à Casa Branca. Sete anos depois, a relação dos dois países atingiu o pior momento nos últimos 40 anos.

“Acho natural que potências maiores tenham interesses que se espalham pelo mundo inteiro”, afirma Susan Thorton, diplomata americana com 30 anos de experiência na Eurásia e Leste Asiático e atual professora da Universidade de Yale. “No caso da China, é uma manifestação de poder crescente, interesses em expansão, desejo de um ambiente previsivelmente estável e acesso a recursos e que serve para mostrar que são ‘responsáveis’”.

Apesar de ter se tornado a segunda maior economia do mundo em 2010, a China ainda não havia almejado um protagonismo no campo diplomático mundial. Enquanto crescia em um ritmo acima de dois dígitos por ano no início do século, as relações internacionais de Pequim focaram exclusivamente no comércio. “Quando o crescimento diminuiu, esse perfil mudou”, afirmou o diplomata Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim e atual conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI).

O antagonismo com os EUA

Com larga experiência na China, onde mora desde 2008, Caramuru observou de perto as mudanças do país na área diplomática. As primeiras aconteceram durante o governo Trump, que impôs restrições comerciais ao país asiático e passou a considerá-lo uma ameaça à segurança nacional. “Com isso, a diplomacia chinesa foi ficando mais ativa em verbalizar ideias”, disse Caramuru.

As relações entre as duas maiores economias mundiais se deterioraram progressivamente a partir daí e se acentuou com a pandemia de covid-19, em 2020. Os EUA adotaram a retórica de “vírus chinês” para tratar o coronavírus, a China acusou os EUA de promover desinformação. A imagem do país asiático piorou em todo o mundo.

Em resposta às críticas, os diplomatas chineses agiram de maneira enérgica para defender o país, em um estilo diplomático apelidado de ‘diplomacia do lobo guerreiro’. Ao Financial Times, um diplomata alemão chegou a declarar que Pequim estava falando com a Alemanha “em um tom que só usariam para países que consideravam pequenos ou fracos”.

A estratégia foi abandonada após reações negativas, mas sinalizou que Pequim se sentia à altura dos países mais influentes politicamente. Washington, no entanto, já encarava o país como “a maior ameaça para os EUA hoje”, nas palavras do então diretor de Inteligência Nacional (CIA), John Ratcliffe, em dezembro de 2020.

Segundo analistas, foi neste momento que o governo chinês entendeu que precisava fortalecer alianças e ter boas relações exteriores não apenas econômicas, mas também políticas. “Pequim quer aliviar as pressões da competição com Washington fortalecendo sua posição diplomática”, afirmou a analista Amanda Hsiao, do Crisis Group, organização voltada à resolução e prevenção de conflitos armados internacionais com sede em Washington e Bruxelas.

Com a chegada de Joe Biden à presidência dos EUA em 2021 e a invasão na Ucrânia no ano seguinte, as tensões continuaram crescendo. Biden ampliou a guerra comercial com mais sanções; Nancy Pelosi, então presidente da Câmara dos EUA, irritou Pequim ao visitar Taiwan (ato considerado pelo governo chinês uma violação da política de “Uma Só China”, que reconhece Pequim como único representante da China); e a detecção de um balão chinês sobre os EUA levou Washington acusar Pequim de espionagem.

Enquanto isso, o plano de Pequim para construir uma boa imagem no exterior continuou. “O esforço para se apresentar como um ator construtivo para a paz é parcialmente destinado a refutar as acusações ocidentais de que a China é o oposto - que é agressiva e ameaçadora à ordem existente”, analisou Hsiao.

O plano de paz para a Ucrânia

Ao apresentar o plano de paz para a Ucrânia, a China tratou diretamente do problema no Leste Europeu pela primeira vez. Com isso, se contrapôs ao Ocidente. “Não foi a China que criou a crise da Ucrânia, a [República Popular da China] não fez parte dela e não forneceu armas a nenhuma das partes do conflito”, declarou o embaixador da China na Rússia, Zhang Hanhui, em fevereiro.

As nações ocidentais viram o plano de paz com ceticismo devido à relação entre Pequim e Moscou, fortalecida nas vésperas da guerra. O documento também foi considerado genérico ao apresentar apenas princípios, divididos em 12 pontos. Pequim, no entanto, disse que esses países não estariam em posição de dar instruções à China sobre o que fazer com a questão. E, com o acordo no Oriente Médio, obteve prestígio para se habilitar como mediador.

  • Posição resumida da China para a solução política da crise na Ucrânia:
  1. Respeito à soberania de todos os países;
  2. Abandono da mentalidade da Guerra Fria;
  3. Cessação das hostilidades;
  4. Retomada das negociações de paz;
  5. Resolução da crise humanitária;
  6. Proteção de civis e prisioneiros de guerra;
  7. Manutenção da segurança de usinas nucleares;
  8. Redução de riscos estratégicos (não utilização de armas nucleares);
  9. Facilitação da exportação de grãos;
  10. Suspensão de sanções unilaterais;
  11. Estabilidade das cadeias industriais e de abastecimento;
  12. Promoção da reconstrução pós-conflito.

A importância do acordo entre Irã e Arábia Saudita para o jogo diplomático está demonstrado por um fato inédito: foi a primeira vez que uma negociação no Oriente Médio não precisou de um país ocidental para ser concluído. “A existência e o fato do acordo ter sido bem sucedido oferece ao mundo o potencial que a China tem como conciliadora de conflitos”, disse Marcos Caramuru.

Água na fervura

Em maio, a poeira com os EUA começou a baixar. Washington reagiu de maneira positiva sobre o acordo no Oriente Médio e externou isso em uma reunião do conselheiro Segurança Nacional, Jake Sullivan, com o principal diplomata chinês, Wang Yi, em Viena. Sullivan teria dito a Wang que os EUA não teriam condições de mediar um acordo semelhante pela falta de relações com o Irã, uma das partes envolvidas.

Para analistas, o encontro significou uma disposição maior de Washington para o envolvimento da China na questão da Ucrânia. “Washington parece mais aberto a um possível papel de apoio chinês”, disse Hsiao.

Imagem de 17 de maio mostra encontro diplomático entre China e Ucrânia, em Kiev. China busca papel de mediação para paz no país Foto: Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia/via AP

Os primeiros comentários após as incursões chinesas na Europa, no entanto, são um sinal da resistência que a China pode enfrentar para cooperar na questão da Ucrânia. Segundo uma reportagem do Wall Street Journal, Li Hui, o representante especial da China, entrou num impasse com os líderes europeus ao propor um cessar-fogo imediato na Ucrânia, enquanto os europeus querem a medida somente depois de as tropas da Rússia se retirarem das regiões anexadas durante o conflito. Essa condição seria inegociável para o Ocidente.

Entretanto, a versão do Wall Street Journal foi questionada pelo ministro das Relações Exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba. Kuleba disse ter entrado em contato com autoridades europeias que se encontram com Li Hui e “nenhum deles” confirmou que o diplomata chinês propôs um cessar-fogo com as tropas russas ocupando áreas da Ucrânia.

Na análise do professor brasileiro de relações internacionais da Universidade de Relações Exteriores da China, Marcus Freitas, o papel da China em uma eventual paz na Ucrânia é crucial por duas razões. A primeira é que se trata de um dos poucos países que mantêm boas relações com a Rússia e ao mesmo tempo dialoga com a Ucrânia. A segunda é a capacidade econômica para reconstruir o país invadido. “A China é um país que tem condições de negociar a paz porque tem força sobre ambos países”, declarou Freitas.

O professor acrescenta que Pequim tem consciência da importância do sucesso da diplomacia para se firmar como superpotência mundial, capaz de questionar a ordem vigente. “É um passo muito bem planejado, tanto que demorou um ano para a China falar mais ativamente sobre essa questão.”

O balé diplomático

As movimentações diplomáticas da China em maio e a retomada de diálogos entre funcionários do alto escalão de Pequim e Washington indicaram abertura para a cooperação entre os chineses e o Ocidente. No entanto, interesses contrários em outros temas, como a competição por influência mundial e o entendimento sobre Taiwan, tornam difícil uma reaproximação definitiva, principalmente com Washington. “O que se vê (no futuro) é um balé diplomático entre as duas superpotências”, declarou Marcos Caramuru.

A oscilação da relação teve um novo passo na segunda-feira, 29. O Departamento de Defesa dos EUA disse que a China recusou pedido para uma reunião entre os chefes de defesa, o americano Lloyd Austin e o chinês Li Shangfu, em Singapura. O motivo do cancelamento não está claro, mas analistas atribuem às sanções americanas contra Li Shangfu, aplicadas em 2018 pela compra de aeronaves e equipamentos de combate do principal exportador de armas da Rússia, a Rosoboronexport.

Em comunicado, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que os EUA estavam “bem ciente” das razões. “O lado dos EUA deve (...) corrigir imediatamente suas práticas erradas, mostrar sinceridade e criar atmosfera e as condições necessárias para o diálogo e a comunicação entre os dois militares”, disse Mao Ning, porta-voz do ministério.

O novo embate não significa um retrocesso na possível cooperação da Ucrânia, mas dá mostras de como a competição deve continuar acontecendo. Ora mais próxima, ora mais distante. O que não se sabe é o que pode acontecer se uma das duas superpotências se sobressair em definitivo desta disputa. No momento, nenhuma parece disposta a baixar a guarda nas próprias ambições e parar a dança diplomática.

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