China está executando operações secretas que podem minar a ordem global; leia análise


País adquiriu influência econômica e diplomática, possibilitando operações de espionagem que se estendem para muito além da tradicional coleta de informações de inteligência

Por Nigel Inkster*

THE NEW YORK TIMES - Nas três décadas que passei no Serviço Secreto de Inteligência do Reino Unido, a China jamais foi vista como ameaça relevante. Se perdíamos noites de sono, era em razão de desafios mais imediatos, como a expansão soviética e o terrorismo transnacional. A hesitante emersão da China da caótica era de Mao Tsé-tung e seu isolamento internacional após soldados chineses terem esmagado as manifestações pró-democracia da Praça Tiananmen, em 1989, fazia o país parecer insular e remoto.

Hoje, o quadro é diferente. A China adquiriu influência econômica e diplomática, possibilitando operações de espionagem que se estendem para muito além da tradicional coleta de informações de inteligência, crescem em escala e ameaçam suplantar agências de segurança ocidentais.

Chefes de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido — o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor-geral do MI5, Ken McCallum — têm sinalizado crescente preocupação em relação ao tema e concederam uma entrevista coletiva sem precedentes em julho alertando para, como Wray definiu, um esforço “vertiginoso” da China no sentido de roubar tecnologia, levantar informações sigilosas sobre economia e influenciar a política internacional em favor de Pequim. O ritmo se acelerava, afirmaram eles, e o número de investigações conduzidas pelo MI5 sobre atividades suspeitas dos chineses aumentou sete vezes desde 2018.

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O diretor geral do MI5, Ken McCallum (E), e o diretor do FBI, Christopher Wray, se encontram na sede do MI5, em Londres  Foto: Dominic Lipinski/PA via AP - 6/7/2022

A cultura do Partido Comunista Chinês sempre possuiu uma natureza clandestina. Mas à medida que o partido se torna uma força ainda mais dominante na China desde que o presidente Xi Jinping assumiu o poder, uma década atrás, essa característica impregnou instituições estatais. A China pode ser muito bem definida como um Estado-espião. O partido considera a tarefa de adquirir e proteger segredos um empreendimento nacional que envolve todos os chineses, ao ponto de oferecer recompensas a cidadãos que identifiquem possíveis espiões e ensinar até crianças em idade escolar a reconhecer ameaças.

O Ocidente não pode combater fogo com fogo. Mobilizar governos, sociedades, economias e sistemas acadêmicos em torno da competição com algozes estrangeiros da maneira que a China faz trairia valores ocidentais. Mas líderes de democracias precisam internalizar a mudança de maré ocorrida na China e garantir que o envolvimento com Pequim seja ajustado em função de uma percepção pragmática da realidade.

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A última ameaça de espionagem de Estado em magnitude comparável foi empreendida pelos soviéticos. Mas a União Soviética era isolada e empobrecida. A bem-sucedida economia da China, por outro lado, é um motor crucial do crescimento global, o que amplia vastamente o alcance de Pequim.

Quase invisíveis na arena internacional 30 anos atrás, as agências de inteligência chinesas são agora poderosas e bem financiadas. Elas se dedicam a explorar vulnerabilidades das sociedades abertas e a crescente dependência sobre a economia chinesa para coletar vastos volumes de informações de inteligência e dados. Grande parte disso ocorre no ambiente cibernético, como o ataque hacker de 2015 ao Escritório de Gestão de Pessoal dos EUA, durante o qual dados sensíveis de milhões de funcionários do governo federal foram roubados.

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Operadores de inteligência chineses também estão presentes em empreendimentos e meios de comunicação estatais, embaixadas e consulados. O Consulado da China em Houston foi fechado pelo governo de Donald Trump em 2020 depois de servir como polo para coleta de dados confidenciais de alta tecnologia.

Mas as operações de espionagem dos chineses não param aí.

A Lei de Inteligência da China que passou a vigorar em 2017 exige dos cidadãos do país que colaborem com suas agências de espionagem. Mas essa legislação simplesmente formalizou uma situação que já era norma. O maior desafio da China decorre de organizações e atores engajados em atividades que podem não atender aos conceitos normais de espionagem.

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Cooptação

Grande parte do esforço é organizado pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida, uma organização do partido que busca cooptar chineses da diáspora bem-sucedidos — e cujo escopo foi ampliado sob o governo de Xi. A China também tenta cooptar outros cidadãos no Ocidente. Um caso emblemático, revelado este ano, envolveu um político britânico cujo gabinete recebeu um financiamento substancial de um advogado de etnia chinesa que, em função disso, obteve acesso ao establishment político do Reino Unido.

Uma estratégia chinesa é cultivar pacientemente relações com políticos em nível municipal ou comunitário que demonstrem potencial de ascender a cargos mais importantes. Em outra estratégia, conhecida como captura da elite, personalidades importantes do empresariado ou do governo recebem lucrativas ofertas de trabalho — mamatas, de fato — ou oportunidades de negócios para, em troca, defender políticas alinhadas com interesses chineses.

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Para a China, trata-se de um esforço de sobrevivência. Informações de inteligência sobre tecnologia e negócios têm de ser obtidas para manter a economia chinesa crescendo em ritmo suficiente para evitar instabilidade social. Xi enfatizou a necessidade da adoção de meios “assimétricos” para alcançar o Ocidente tecnologicamente.

A China pode estar à frente na corrida agora, mas existem ferramentas que as agências de inteligência e de segurança do Ocidente podem trazer para o jogo, incluindo treinar seus agentes com os requisitos linguísticos necessários e conhecimento sobre a China e o funcionamento do Partido Comunista Chinês. Mas elas precisam de ajuda.

Monumento no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim Foto: Noel Celis/AFP - 4/9/2022
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Democracias liberais não podem jogar apenas na defensiva; líderes políticos devem determinar investimentos maiores para capacidades ofensivas de coleta de inteligência e programas abrangentes para conscientizar empresas, organizações políticas e outros potenciais alvos a respeito de suas vulnerabilidades. Também são necessários sistemas para avaliar as implicações em segurança nacional do que, de outra forma, pode parecer meramente atividade comercial normal de empresas chinesas — e identificar entidades não chinesas a serviço de Pequim.

Legislação nova e mais eficaz em sintonia com a dinâmica em transformação é vital. O Reino Unido está dando um passo na direção correta, parece pronto para aplicar uma lei de segurança nacional que pretende ampliar a definição de espionagem e adotar medidas para criar, conforme colocou o Ministério do Interior, “um ambiente operativo mais desafiador” para quem atua como agente de interesses estrangeiros. A Austrália aplicou uma legislação similar, em 2018, para coibir influência secreta estrangeira sobre sua política doméstica após emergirem preocupações a respeito da atividade dos chineses.

Neutralizar Pequim constitui um difícil ato de equilíbrio, especialmente em países com grandes populações da diáspora chinesa. Um exemplo característico foi o programa do FBI para prevenir roubo de dados de inteligência econômicos e científicos de universidades americanas, iniciado pelo governo Trump sob a Iniciativa da China. O programa surtiu um efeito aterrador sobre cientistas e engenheiros de etnia chinesa, que se sentiram perseguidos injustamente — e foi cancelado este ano.

Países ocidentais não deveriam ter medo de empreender esforços ousados. Ações como a expulsão em massa do Reino Unido de oficiais de inteligência soviéticos, em 1971, após um pico de atividade de espionagem, raramente afetam, se é que já afetaram, relações maiores. E o impacto da espionagem e da subversão também não deve ser superestimado. A União Soviética não perdeu a Guerra Fria em razão de suas operações de inteligência — que eram bem feitas — mas por causa do fracasso de seus ideais de governo.

O mesmo poderá se provar verdadeiro em relação à China. Formuladores de políticas e serviços de inteligência ocidentais devem inovar e se adaptar. Mas também devem garantir que as estratégias que empregam honrem os ideais de liberdade, abertura e legalidade que representam a maior ameaça para o Estado-partido chinês. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É EX-DIRETOR DE OPERAÇÕES E INTELIGÊNCIA DO SERVIÇO SECRETO DE INTELIGÊNCIA DO REINO UNIDO

THE NEW YORK TIMES - Nas três décadas que passei no Serviço Secreto de Inteligência do Reino Unido, a China jamais foi vista como ameaça relevante. Se perdíamos noites de sono, era em razão de desafios mais imediatos, como a expansão soviética e o terrorismo transnacional. A hesitante emersão da China da caótica era de Mao Tsé-tung e seu isolamento internacional após soldados chineses terem esmagado as manifestações pró-democracia da Praça Tiananmen, em 1989, fazia o país parecer insular e remoto.

Hoje, o quadro é diferente. A China adquiriu influência econômica e diplomática, possibilitando operações de espionagem que se estendem para muito além da tradicional coleta de informações de inteligência, crescem em escala e ameaçam suplantar agências de segurança ocidentais.

Chefes de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido — o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor-geral do MI5, Ken McCallum — têm sinalizado crescente preocupação em relação ao tema e concederam uma entrevista coletiva sem precedentes em julho alertando para, como Wray definiu, um esforço “vertiginoso” da China no sentido de roubar tecnologia, levantar informações sigilosas sobre economia e influenciar a política internacional em favor de Pequim. O ritmo se acelerava, afirmaram eles, e o número de investigações conduzidas pelo MI5 sobre atividades suspeitas dos chineses aumentou sete vezes desde 2018.

O diretor geral do MI5, Ken McCallum (E), e o diretor do FBI, Christopher Wray, se encontram na sede do MI5, em Londres  Foto: Dominic Lipinski/PA via AP - 6/7/2022

A cultura do Partido Comunista Chinês sempre possuiu uma natureza clandestina. Mas à medida que o partido se torna uma força ainda mais dominante na China desde que o presidente Xi Jinping assumiu o poder, uma década atrás, essa característica impregnou instituições estatais. A China pode ser muito bem definida como um Estado-espião. O partido considera a tarefa de adquirir e proteger segredos um empreendimento nacional que envolve todos os chineses, ao ponto de oferecer recompensas a cidadãos que identifiquem possíveis espiões e ensinar até crianças em idade escolar a reconhecer ameaças.

O Ocidente não pode combater fogo com fogo. Mobilizar governos, sociedades, economias e sistemas acadêmicos em torno da competição com algozes estrangeiros da maneira que a China faz trairia valores ocidentais. Mas líderes de democracias precisam internalizar a mudança de maré ocorrida na China e garantir que o envolvimento com Pequim seja ajustado em função de uma percepção pragmática da realidade.

A última ameaça de espionagem de Estado em magnitude comparável foi empreendida pelos soviéticos. Mas a União Soviética era isolada e empobrecida. A bem-sucedida economia da China, por outro lado, é um motor crucial do crescimento global, o que amplia vastamente o alcance de Pequim.

Quase invisíveis na arena internacional 30 anos atrás, as agências de inteligência chinesas são agora poderosas e bem financiadas. Elas se dedicam a explorar vulnerabilidades das sociedades abertas e a crescente dependência sobre a economia chinesa para coletar vastos volumes de informações de inteligência e dados. Grande parte disso ocorre no ambiente cibernético, como o ataque hacker de 2015 ao Escritório de Gestão de Pessoal dos EUA, durante o qual dados sensíveis de milhões de funcionários do governo federal foram roubados.

Operadores de inteligência chineses também estão presentes em empreendimentos e meios de comunicação estatais, embaixadas e consulados. O Consulado da China em Houston foi fechado pelo governo de Donald Trump em 2020 depois de servir como polo para coleta de dados confidenciais de alta tecnologia.

Mas as operações de espionagem dos chineses não param aí.

A Lei de Inteligência da China que passou a vigorar em 2017 exige dos cidadãos do país que colaborem com suas agências de espionagem. Mas essa legislação simplesmente formalizou uma situação que já era norma. O maior desafio da China decorre de organizações e atores engajados em atividades que podem não atender aos conceitos normais de espionagem.

Cooptação

Grande parte do esforço é organizado pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida, uma organização do partido que busca cooptar chineses da diáspora bem-sucedidos — e cujo escopo foi ampliado sob o governo de Xi. A China também tenta cooptar outros cidadãos no Ocidente. Um caso emblemático, revelado este ano, envolveu um político britânico cujo gabinete recebeu um financiamento substancial de um advogado de etnia chinesa que, em função disso, obteve acesso ao establishment político do Reino Unido.

Uma estratégia chinesa é cultivar pacientemente relações com políticos em nível municipal ou comunitário que demonstrem potencial de ascender a cargos mais importantes. Em outra estratégia, conhecida como captura da elite, personalidades importantes do empresariado ou do governo recebem lucrativas ofertas de trabalho — mamatas, de fato — ou oportunidades de negócios para, em troca, defender políticas alinhadas com interesses chineses.

Para a China, trata-se de um esforço de sobrevivência. Informações de inteligência sobre tecnologia e negócios têm de ser obtidas para manter a economia chinesa crescendo em ritmo suficiente para evitar instabilidade social. Xi enfatizou a necessidade da adoção de meios “assimétricos” para alcançar o Ocidente tecnologicamente.

A China pode estar à frente na corrida agora, mas existem ferramentas que as agências de inteligência e de segurança do Ocidente podem trazer para o jogo, incluindo treinar seus agentes com os requisitos linguísticos necessários e conhecimento sobre a China e o funcionamento do Partido Comunista Chinês. Mas elas precisam de ajuda.

Monumento no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim Foto: Noel Celis/AFP - 4/9/2022

Democracias liberais não podem jogar apenas na defensiva; líderes políticos devem determinar investimentos maiores para capacidades ofensivas de coleta de inteligência e programas abrangentes para conscientizar empresas, organizações políticas e outros potenciais alvos a respeito de suas vulnerabilidades. Também são necessários sistemas para avaliar as implicações em segurança nacional do que, de outra forma, pode parecer meramente atividade comercial normal de empresas chinesas — e identificar entidades não chinesas a serviço de Pequim.

Legislação nova e mais eficaz em sintonia com a dinâmica em transformação é vital. O Reino Unido está dando um passo na direção correta, parece pronto para aplicar uma lei de segurança nacional que pretende ampliar a definição de espionagem e adotar medidas para criar, conforme colocou o Ministério do Interior, “um ambiente operativo mais desafiador” para quem atua como agente de interesses estrangeiros. A Austrália aplicou uma legislação similar, em 2018, para coibir influência secreta estrangeira sobre sua política doméstica após emergirem preocupações a respeito da atividade dos chineses.

Neutralizar Pequim constitui um difícil ato de equilíbrio, especialmente em países com grandes populações da diáspora chinesa. Um exemplo característico foi o programa do FBI para prevenir roubo de dados de inteligência econômicos e científicos de universidades americanas, iniciado pelo governo Trump sob a Iniciativa da China. O programa surtiu um efeito aterrador sobre cientistas e engenheiros de etnia chinesa, que se sentiram perseguidos injustamente — e foi cancelado este ano.

Países ocidentais não deveriam ter medo de empreender esforços ousados. Ações como a expulsão em massa do Reino Unido de oficiais de inteligência soviéticos, em 1971, após um pico de atividade de espionagem, raramente afetam, se é que já afetaram, relações maiores. E o impacto da espionagem e da subversão também não deve ser superestimado. A União Soviética não perdeu a Guerra Fria em razão de suas operações de inteligência — que eram bem feitas — mas por causa do fracasso de seus ideais de governo.

O mesmo poderá se provar verdadeiro em relação à China. Formuladores de políticas e serviços de inteligência ocidentais devem inovar e se adaptar. Mas também devem garantir que as estratégias que empregam honrem os ideais de liberdade, abertura e legalidade que representam a maior ameaça para o Estado-partido chinês. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É EX-DIRETOR DE OPERAÇÕES E INTELIGÊNCIA DO SERVIÇO SECRETO DE INTELIGÊNCIA DO REINO UNIDO

THE NEW YORK TIMES - Nas três décadas que passei no Serviço Secreto de Inteligência do Reino Unido, a China jamais foi vista como ameaça relevante. Se perdíamos noites de sono, era em razão de desafios mais imediatos, como a expansão soviética e o terrorismo transnacional. A hesitante emersão da China da caótica era de Mao Tsé-tung e seu isolamento internacional após soldados chineses terem esmagado as manifestações pró-democracia da Praça Tiananmen, em 1989, fazia o país parecer insular e remoto.

Hoje, o quadro é diferente. A China adquiriu influência econômica e diplomática, possibilitando operações de espionagem que se estendem para muito além da tradicional coleta de informações de inteligência, crescem em escala e ameaçam suplantar agências de segurança ocidentais.

Chefes de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido — o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor-geral do MI5, Ken McCallum — têm sinalizado crescente preocupação em relação ao tema e concederam uma entrevista coletiva sem precedentes em julho alertando para, como Wray definiu, um esforço “vertiginoso” da China no sentido de roubar tecnologia, levantar informações sigilosas sobre economia e influenciar a política internacional em favor de Pequim. O ritmo se acelerava, afirmaram eles, e o número de investigações conduzidas pelo MI5 sobre atividades suspeitas dos chineses aumentou sete vezes desde 2018.

O diretor geral do MI5, Ken McCallum (E), e o diretor do FBI, Christopher Wray, se encontram na sede do MI5, em Londres  Foto: Dominic Lipinski/PA via AP - 6/7/2022

A cultura do Partido Comunista Chinês sempre possuiu uma natureza clandestina. Mas à medida que o partido se torna uma força ainda mais dominante na China desde que o presidente Xi Jinping assumiu o poder, uma década atrás, essa característica impregnou instituições estatais. A China pode ser muito bem definida como um Estado-espião. O partido considera a tarefa de adquirir e proteger segredos um empreendimento nacional que envolve todos os chineses, ao ponto de oferecer recompensas a cidadãos que identifiquem possíveis espiões e ensinar até crianças em idade escolar a reconhecer ameaças.

O Ocidente não pode combater fogo com fogo. Mobilizar governos, sociedades, economias e sistemas acadêmicos em torno da competição com algozes estrangeiros da maneira que a China faz trairia valores ocidentais. Mas líderes de democracias precisam internalizar a mudança de maré ocorrida na China e garantir que o envolvimento com Pequim seja ajustado em função de uma percepção pragmática da realidade.

A última ameaça de espionagem de Estado em magnitude comparável foi empreendida pelos soviéticos. Mas a União Soviética era isolada e empobrecida. A bem-sucedida economia da China, por outro lado, é um motor crucial do crescimento global, o que amplia vastamente o alcance de Pequim.

Quase invisíveis na arena internacional 30 anos atrás, as agências de inteligência chinesas são agora poderosas e bem financiadas. Elas se dedicam a explorar vulnerabilidades das sociedades abertas e a crescente dependência sobre a economia chinesa para coletar vastos volumes de informações de inteligência e dados. Grande parte disso ocorre no ambiente cibernético, como o ataque hacker de 2015 ao Escritório de Gestão de Pessoal dos EUA, durante o qual dados sensíveis de milhões de funcionários do governo federal foram roubados.

Operadores de inteligência chineses também estão presentes em empreendimentos e meios de comunicação estatais, embaixadas e consulados. O Consulado da China em Houston foi fechado pelo governo de Donald Trump em 2020 depois de servir como polo para coleta de dados confidenciais de alta tecnologia.

Mas as operações de espionagem dos chineses não param aí.

A Lei de Inteligência da China que passou a vigorar em 2017 exige dos cidadãos do país que colaborem com suas agências de espionagem. Mas essa legislação simplesmente formalizou uma situação que já era norma. O maior desafio da China decorre de organizações e atores engajados em atividades que podem não atender aos conceitos normais de espionagem.

Cooptação

Grande parte do esforço é organizado pelo Departamento de Trabalho da Frente Unida, uma organização do partido que busca cooptar chineses da diáspora bem-sucedidos — e cujo escopo foi ampliado sob o governo de Xi. A China também tenta cooptar outros cidadãos no Ocidente. Um caso emblemático, revelado este ano, envolveu um político britânico cujo gabinete recebeu um financiamento substancial de um advogado de etnia chinesa que, em função disso, obteve acesso ao establishment político do Reino Unido.

Uma estratégia chinesa é cultivar pacientemente relações com políticos em nível municipal ou comunitário que demonstrem potencial de ascender a cargos mais importantes. Em outra estratégia, conhecida como captura da elite, personalidades importantes do empresariado ou do governo recebem lucrativas ofertas de trabalho — mamatas, de fato — ou oportunidades de negócios para, em troca, defender políticas alinhadas com interesses chineses.

Para a China, trata-se de um esforço de sobrevivência. Informações de inteligência sobre tecnologia e negócios têm de ser obtidas para manter a economia chinesa crescendo em ritmo suficiente para evitar instabilidade social. Xi enfatizou a necessidade da adoção de meios “assimétricos” para alcançar o Ocidente tecnologicamente.

A China pode estar à frente na corrida agora, mas existem ferramentas que as agências de inteligência e de segurança do Ocidente podem trazer para o jogo, incluindo treinar seus agentes com os requisitos linguísticos necessários e conhecimento sobre a China e o funcionamento do Partido Comunista Chinês. Mas elas precisam de ajuda.

Monumento no Museu do Partido Comunista da China, em Pequim Foto: Noel Celis/AFP - 4/9/2022

Democracias liberais não podem jogar apenas na defensiva; líderes políticos devem determinar investimentos maiores para capacidades ofensivas de coleta de inteligência e programas abrangentes para conscientizar empresas, organizações políticas e outros potenciais alvos a respeito de suas vulnerabilidades. Também são necessários sistemas para avaliar as implicações em segurança nacional do que, de outra forma, pode parecer meramente atividade comercial normal de empresas chinesas — e identificar entidades não chinesas a serviço de Pequim.

Legislação nova e mais eficaz em sintonia com a dinâmica em transformação é vital. O Reino Unido está dando um passo na direção correta, parece pronto para aplicar uma lei de segurança nacional que pretende ampliar a definição de espionagem e adotar medidas para criar, conforme colocou o Ministério do Interior, “um ambiente operativo mais desafiador” para quem atua como agente de interesses estrangeiros. A Austrália aplicou uma legislação similar, em 2018, para coibir influência secreta estrangeira sobre sua política doméstica após emergirem preocupações a respeito da atividade dos chineses.

Neutralizar Pequim constitui um difícil ato de equilíbrio, especialmente em países com grandes populações da diáspora chinesa. Um exemplo característico foi o programa do FBI para prevenir roubo de dados de inteligência econômicos e científicos de universidades americanas, iniciado pelo governo Trump sob a Iniciativa da China. O programa surtiu um efeito aterrador sobre cientistas e engenheiros de etnia chinesa, que se sentiram perseguidos injustamente — e foi cancelado este ano.

Países ocidentais não deveriam ter medo de empreender esforços ousados. Ações como a expulsão em massa do Reino Unido de oficiais de inteligência soviéticos, em 1971, após um pico de atividade de espionagem, raramente afetam, se é que já afetaram, relações maiores. E o impacto da espionagem e da subversão também não deve ser superestimado. A União Soviética não perdeu a Guerra Fria em razão de suas operações de inteligência — que eram bem feitas — mas por causa do fracasso de seus ideais de governo.

O mesmo poderá se provar verdadeiro em relação à China. Formuladores de políticas e serviços de inteligência ocidentais devem inovar e se adaptar. Mas também devem garantir que as estratégias que empregam honrem os ideais de liberdade, abertura e legalidade que representam a maior ameaça para o Estado-partido chinês. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*É EX-DIRETOR DE OPERAÇÕES E INTELIGÊNCIA DO SERVIÇO SECRETO DE INTELIGÊNCIA DO REINO UNIDO

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