Como a China se tornou mais rica, digitalizada e silenciosa em apenas cinco anos


Crescimento econômico do país nas últimas décadas promove rápida transformação nas cidades chinesas

Por Cláudia Trevisan

ESPECIAL PARA O ESTADÃO – Instalada na antiga concessão britânica de Xangai, a escultura A Arte dos Sonhos reflete muito da ambição material da China contemporânea. Pintado de amarelo, um gigantesco piloto emerge do solo e coloca sua mão esquerda sobre um Porsche Carrera S, cujo preço é próximo de R$ 1 milhão. Ao fundo, está o skyline de Pudong, o bairro futurista que simboliza a vertiginosa transformação do antigo Império do Meio.

Pouco mais de cinco anos e uma pandemia separam minhas duas últimas viagens à China, a mais recente concluída no dia 15, depois da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país. Em 2017, o PIB per capita dos 210 milhões de brasileiros ainda era maior que o do 1,4 bilhão de chineses. No ano seguinte, a nação mais populosa do mundo ultrapassou o Brasil nesse quesito e hoje tem um PIB per capita 40% superior ao nosso.

A China está mais próspera, mais cara, mais digitalizada, mais chinesa e mais silenciosa. Identificados por placas verdes, ônibus elétricos são onipresentes em Pequim e Xangai e os carros do mesmo tipo, cada vez mais numerosos. Além de não produzirem emissões, eles quase não geram ruídos. A BYD, empresa que negocia a compra da ex-fábrica da Ford na Bahia, é líder de mercado, com uma fatia de 30%. Na sequência aparecem as americanas GM e Tesla, com participações de 8,9% e 8,8%, respectivamente.

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Turistas chinesas passeiam no calçadão do The Bund, em Xangai. Cidade representa transformação tecnológica da China Foto: Felipe Frazão

Veículos elétricos

No ano passado, 1 em cada 4 veículos vendidos na China eram elétricos, o que deu ao país asiático participação de quase 60% no mercado global do setor. O apelo do mercado chinês desafia a escalada das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China. Em 2019, a Tesla inaugurou uma gigafactory em Xangai, que se transformou na maior unidade produtiva da empresa no mundo em 2022, com capacidade instalada de 750 mil unidades por ano – no Brasil, todas as montadoras juntas venderam 1,9 milhão de veículos no mesmo período.

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Os europeus também querem ampliar sua fatia no crescente mercado de mobilidade elétrica na China. No dia 18, a Volkswagen anunciou investimento de € 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) em um centro de pesquisa e desenvolvimento no país asiático voltado a carros elétricos e automação.

A digitalização da economia chinesa ganhou velocidade com a pandemia e hoje é difícil navegar no país fora dos aplicativos instalados em celulares. O uso do dinheiro é cada vez mais raro e pagamentos são feitos pelas grandes plataformas digitais, como Alipay e WeChat. O QRCode faz parte de todas as operações comerciais cotidianas e uma pergunta frequente na hora do pagamento é “você me escaneia ou eu te escaneio?”.

Pegar um táxi na rua se tornou tarefa desafiadora, já que todos usam aplicativos para chamar carros. Para estrangeiros não familiarizados com a língua chinesa isso pode ser uma barreira, já que muitos motoristas ligam para o passageiro com o objetivo de confirmar sua localização.

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Os que não têm conta bancária na China também enfrentam restrições nos meios de pagamento. O WeChat não aceita cartões de outros países. O Alipay, que foi o aplicativo que eu usei, sim. Mas não consegui realizar pagamentos em alguns estabelecimentos menores, por estar usando um cartão de crédito internacional. Nessas situações, o uso do dinheiro é possível, ainda que nem sempre haja troco disponível.

Para os chineses e os estrangeiros que vivem no país, a digitalização tornou a vida cotidiana super conveniente. Tudo pode ser resolvido nos mega aplicativos instalados no celular, do pedido de comida à compra de passagens de trem ou avião, passando pelo pagamento de compras e serviços. Se a bateria acabar, há totens espalhados por Pequim e Xangai com carregadores portáteis, que podem ser retirados com o escaneamento do QRCode da plataforma de pagamento e devolvidos em outros locais, em um modelo de compartilhamento semelhante ao de bicicletas.

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Em meu último dia na China, jantei na casa de uma amiga brasileira que vive em um condomínio de apartamentos mobiliados e com serviços em Pequim. Menos de 20 minutos depois de ela pedir nosso jantar pelo aplicativo, ele foi entregue na porta do apartamento por um robô.

A China também ficou mais cara, principalmente para os brasileiros que experimentaram o processo de desvalorização do real nos últimos anos. Jantares em restaurantes ocidentais que costumavam ser mais baratos do que no Brasil, agora vêm com uma conta bem mais salgada. Muitos serviços também subiram de preço. A manicure com esmalte de gel na rede Lily Nails, uma das mais populares de Pequim, custa hoje o equivalente a quase R$ 200.

Trem rápido

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A exceção são transportes, que continuam relativamente acessíveis, incluindo táxi, metrô, ônibus e trens. Eu paguei cerca de R$ 450 por uma passagem de trem rápido de Pequim para Xangai, que percorre em 4h10 os 1.200 km que separam as duas cidades. Desde 2008, quando a primeira linha do tipo foi inaugurada, a China construiu 42.000 km de trilhos de alta velocidade. No Brasil, não há nenhum metro e a extensão das linhas de trem tradicionais é próxima de 30.000 km. Se forem incluídos os serviços de baixa velocidade, o tamanho da rede ferroviária da China chega a 155.000 km.

A infraestrutura é o setor em que a prosperidade do país asiático se traduz de forma mais concreta. Mas o enriquecimento também fica evidente nas lojas de luxo de shopping centers. No dia em que visitei o SKP, no Central Business District de Pequim, havia fila para entrar na Chanel e na Louis Vuitton.

Imagem mostra estação de trem Hongqiao, em Xangai. Infraestrutura interliga país a um custo barato Foto: Cláudia Trevisan/Estadão
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Com o segundo maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos EUA, a China também é um dos principais destinos globais para as marcas de luxo. A consultoria Bain & Company, que publica relatórios anuais sobre esse segmento, prevê que em 2030 o país asiático assumirá a liderança desse ranking e responderá por 25% a 27% das vendas globais.

Mas isso não significa que os chineses serão tão ricos quanto os americanos. Com 1,4 bilhão de pessoas, a China terá um PIB per capita em 2028 de US$ 19,6 mil, que corresponderá a pouco mais de 20% do PIB per capita dos EUA, projetado em US$ 93,26 mil pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo que o governo de Xi Jinping tenha declarado vitória no combate à pobreza extrema em 2020, a grande maioria do país vive distante da opulência das grifes de luxo. Em Pequim e em Xangai, as bicicletas estão cada vez mais ausentes da paisagem urbana, mas um exército de pequenas motos elétricas cruza as cidades para realizar entregas rápidas.

Disparidade

Dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China mostram que os 20% mais ricos da população recebem 46% da renda, enquanto os 20% mais pobres ficam com 4,5%. Também há disparidades acentuadas de renda e qualidade da educação entre os moradores das cidades e do campo, onde estão 35% dos habitantes do país.

Outra mudança visível em relação a 2017 é a redução do número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai, em parte como consequência das políticas de combate à covid-19 adotadas no país. Cidade mais cosmopolita da China, Xangai viu um êxodo de quase 70% dos estrangeiros em 2022, estima Henry Oswald, Presidente da BraCham, grupo que reúne empresas brasileiras que atuam no país. A dúvida agora é se essa é uma mudança episódica ou mais estrutural.

Fila para entrar na loja da Chanel localizada em Pequim. Crescimento do PIB modifica hábitos na sociedade chinesa Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Duas décadas

Se o horizonte de tempo de comparação for ampliado até 2004, data da primeira visita de Lula à China, o contraste é ainda maior. Naquele ano, o PIB da China era 3 vezes o PIB brasileiro, enquanto seu PIB per capita representava menos da metade do nosso. Hoje, o PIB chinês é 10 vezes o brasileiro. Em 2004, a China era a sexta maior economia do mundo. Desde então, ultrapassou França, Inglaterra, Alemanha e Japão. As projeções indicam que a segunda maior economia do planeta assumirá o lugar dos EUA em algum momento ao redor de 2030.

O ar que os chineses respiram também está menos poluído. Nos anos 2000, quando o ritmo de crescimento anual superava os dois dígitos, o país estava entre os cinco mais poluídos do mundo. Hoje, a vizinha Índia tem o maior número de cidades com ar contaminado em todo o planeta. Em 2022, apenas 2 municípios da China apareciam na lista dos 50 mais poluídos do mundo elaborada pela empresa suíça IQAir.

Estudo publicado em 2021 na revista Environment Science & Technology mostrou que a concentração média de partículas prejudiciais à saúde no ar atingiu o pico em 2006, quando chegou a 68,0 μg/m3 (microgramas por metro cúbico). Medidas de controle adotadas a partir daquele ano levaram o índice a 62,5 μg/m3 em 2013. Desde então, padrões mais rigorosos de controle de emissões reduziram o indicador para 44,4 μg/m3, em 2017, e 33,1 μg/m3 em 2020. Ainda assim, o patamar é mais de três vezes o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Redução

O carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, continua a responder por 55% da matriz energética chinesa, segundo dados relativos a 2021 compilados pela plataforma Our World in Data. O porcentual era de 70% em 2010 e 61% em 2017. Maior emissor de gases que provocam efeito estufa em termos absolutos (a liderança das emissões per capita é dos EUA), a China se transformou em um dos líderes globais em energias renováveis. A participação de usinas eólicas na matriz passou de 0,5% em 2010 para 4% em 2021, enquanto a de fontes solares foi de 0,01% a 2,0% no mesmo período.

A Agência Internacional de Energia estima que a China instalará quase metade da nova capacidade de geração de renováveis no mundo entre 2022 e 2027, estimada em um total de 2.400 GW. O Brasil todo tem uma capacidade de geração de 190 GW, considerando-se todas as fontes.

A principal novidade da visita do presidente Lula à China foi a divulgação de uma Declaração Conjunta de Combate à Mudança Climática, na qual os dois países se comprometem a combater o desmatamento ilegal e a cooperar em áreas como mobilidade elétrica, finanças verdes, energias renováveis, cidades inteligentes e desenvolvimento de tecnologias verdes. Dos 30 acordos assinados por empresas brasileiras e chinesas no âmbito da visita, quase um terço é relacionado a energias renováveis.

Diante do avanço da China em vários setores que unem tecnologia e sustentabilidade, o desafio do Brasil será transformar as declarações de intenções em negócios e investimentos que ajudem a promover a integração do país a cadeias globais ligadas à descarbonização. /EX-CORRESPONDENTE DO ESTADÃO NA CHINA E DIRETORA EXECUTIVA DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA

ESPECIAL PARA O ESTADÃO – Instalada na antiga concessão britânica de Xangai, a escultura A Arte dos Sonhos reflete muito da ambição material da China contemporânea. Pintado de amarelo, um gigantesco piloto emerge do solo e coloca sua mão esquerda sobre um Porsche Carrera S, cujo preço é próximo de R$ 1 milhão. Ao fundo, está o skyline de Pudong, o bairro futurista que simboliza a vertiginosa transformação do antigo Império do Meio.

Pouco mais de cinco anos e uma pandemia separam minhas duas últimas viagens à China, a mais recente concluída no dia 15, depois da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país. Em 2017, o PIB per capita dos 210 milhões de brasileiros ainda era maior que o do 1,4 bilhão de chineses. No ano seguinte, a nação mais populosa do mundo ultrapassou o Brasil nesse quesito e hoje tem um PIB per capita 40% superior ao nosso.

A China está mais próspera, mais cara, mais digitalizada, mais chinesa e mais silenciosa. Identificados por placas verdes, ônibus elétricos são onipresentes em Pequim e Xangai e os carros do mesmo tipo, cada vez mais numerosos. Além de não produzirem emissões, eles quase não geram ruídos. A BYD, empresa que negocia a compra da ex-fábrica da Ford na Bahia, é líder de mercado, com uma fatia de 30%. Na sequência aparecem as americanas GM e Tesla, com participações de 8,9% e 8,8%, respectivamente.

Turistas chinesas passeiam no calçadão do The Bund, em Xangai. Cidade representa transformação tecnológica da China Foto: Felipe Frazão

Veículos elétricos

No ano passado, 1 em cada 4 veículos vendidos na China eram elétricos, o que deu ao país asiático participação de quase 60% no mercado global do setor. O apelo do mercado chinês desafia a escalada das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China. Em 2019, a Tesla inaugurou uma gigafactory em Xangai, que se transformou na maior unidade produtiva da empresa no mundo em 2022, com capacidade instalada de 750 mil unidades por ano – no Brasil, todas as montadoras juntas venderam 1,9 milhão de veículos no mesmo período.

Os europeus também querem ampliar sua fatia no crescente mercado de mobilidade elétrica na China. No dia 18, a Volkswagen anunciou investimento de € 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) em um centro de pesquisa e desenvolvimento no país asiático voltado a carros elétricos e automação.

A digitalização da economia chinesa ganhou velocidade com a pandemia e hoje é difícil navegar no país fora dos aplicativos instalados em celulares. O uso do dinheiro é cada vez mais raro e pagamentos são feitos pelas grandes plataformas digitais, como Alipay e WeChat. O QRCode faz parte de todas as operações comerciais cotidianas e uma pergunta frequente na hora do pagamento é “você me escaneia ou eu te escaneio?”.

Pegar um táxi na rua se tornou tarefa desafiadora, já que todos usam aplicativos para chamar carros. Para estrangeiros não familiarizados com a língua chinesa isso pode ser uma barreira, já que muitos motoristas ligam para o passageiro com o objetivo de confirmar sua localização.

Os que não têm conta bancária na China também enfrentam restrições nos meios de pagamento. O WeChat não aceita cartões de outros países. O Alipay, que foi o aplicativo que eu usei, sim. Mas não consegui realizar pagamentos em alguns estabelecimentos menores, por estar usando um cartão de crédito internacional. Nessas situações, o uso do dinheiro é possível, ainda que nem sempre haja troco disponível.

Para os chineses e os estrangeiros que vivem no país, a digitalização tornou a vida cotidiana super conveniente. Tudo pode ser resolvido nos mega aplicativos instalados no celular, do pedido de comida à compra de passagens de trem ou avião, passando pelo pagamento de compras e serviços. Se a bateria acabar, há totens espalhados por Pequim e Xangai com carregadores portáteis, que podem ser retirados com o escaneamento do QRCode da plataforma de pagamento e devolvidos em outros locais, em um modelo de compartilhamento semelhante ao de bicicletas.

Em meu último dia na China, jantei na casa de uma amiga brasileira que vive em um condomínio de apartamentos mobiliados e com serviços em Pequim. Menos de 20 minutos depois de ela pedir nosso jantar pelo aplicativo, ele foi entregue na porta do apartamento por um robô.

A China também ficou mais cara, principalmente para os brasileiros que experimentaram o processo de desvalorização do real nos últimos anos. Jantares em restaurantes ocidentais que costumavam ser mais baratos do que no Brasil, agora vêm com uma conta bem mais salgada. Muitos serviços também subiram de preço. A manicure com esmalte de gel na rede Lily Nails, uma das mais populares de Pequim, custa hoje o equivalente a quase R$ 200.

Trem rápido

A exceção são transportes, que continuam relativamente acessíveis, incluindo táxi, metrô, ônibus e trens. Eu paguei cerca de R$ 450 por uma passagem de trem rápido de Pequim para Xangai, que percorre em 4h10 os 1.200 km que separam as duas cidades. Desde 2008, quando a primeira linha do tipo foi inaugurada, a China construiu 42.000 km de trilhos de alta velocidade. No Brasil, não há nenhum metro e a extensão das linhas de trem tradicionais é próxima de 30.000 km. Se forem incluídos os serviços de baixa velocidade, o tamanho da rede ferroviária da China chega a 155.000 km.

A infraestrutura é o setor em que a prosperidade do país asiático se traduz de forma mais concreta. Mas o enriquecimento também fica evidente nas lojas de luxo de shopping centers. No dia em que visitei o SKP, no Central Business District de Pequim, havia fila para entrar na Chanel e na Louis Vuitton.

Imagem mostra estação de trem Hongqiao, em Xangai. Infraestrutura interliga país a um custo barato Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Com o segundo maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos EUA, a China também é um dos principais destinos globais para as marcas de luxo. A consultoria Bain & Company, que publica relatórios anuais sobre esse segmento, prevê que em 2030 o país asiático assumirá a liderança desse ranking e responderá por 25% a 27% das vendas globais.

Mas isso não significa que os chineses serão tão ricos quanto os americanos. Com 1,4 bilhão de pessoas, a China terá um PIB per capita em 2028 de US$ 19,6 mil, que corresponderá a pouco mais de 20% do PIB per capita dos EUA, projetado em US$ 93,26 mil pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo que o governo de Xi Jinping tenha declarado vitória no combate à pobreza extrema em 2020, a grande maioria do país vive distante da opulência das grifes de luxo. Em Pequim e em Xangai, as bicicletas estão cada vez mais ausentes da paisagem urbana, mas um exército de pequenas motos elétricas cruza as cidades para realizar entregas rápidas.

Disparidade

Dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China mostram que os 20% mais ricos da população recebem 46% da renda, enquanto os 20% mais pobres ficam com 4,5%. Também há disparidades acentuadas de renda e qualidade da educação entre os moradores das cidades e do campo, onde estão 35% dos habitantes do país.

Outra mudança visível em relação a 2017 é a redução do número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai, em parte como consequência das políticas de combate à covid-19 adotadas no país. Cidade mais cosmopolita da China, Xangai viu um êxodo de quase 70% dos estrangeiros em 2022, estima Henry Oswald, Presidente da BraCham, grupo que reúne empresas brasileiras que atuam no país. A dúvida agora é se essa é uma mudança episódica ou mais estrutural.

Fila para entrar na loja da Chanel localizada em Pequim. Crescimento do PIB modifica hábitos na sociedade chinesa Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Duas décadas

Se o horizonte de tempo de comparação for ampliado até 2004, data da primeira visita de Lula à China, o contraste é ainda maior. Naquele ano, o PIB da China era 3 vezes o PIB brasileiro, enquanto seu PIB per capita representava menos da metade do nosso. Hoje, o PIB chinês é 10 vezes o brasileiro. Em 2004, a China era a sexta maior economia do mundo. Desde então, ultrapassou França, Inglaterra, Alemanha e Japão. As projeções indicam que a segunda maior economia do planeta assumirá o lugar dos EUA em algum momento ao redor de 2030.

O ar que os chineses respiram também está menos poluído. Nos anos 2000, quando o ritmo de crescimento anual superava os dois dígitos, o país estava entre os cinco mais poluídos do mundo. Hoje, a vizinha Índia tem o maior número de cidades com ar contaminado em todo o planeta. Em 2022, apenas 2 municípios da China apareciam na lista dos 50 mais poluídos do mundo elaborada pela empresa suíça IQAir.

Estudo publicado em 2021 na revista Environment Science & Technology mostrou que a concentração média de partículas prejudiciais à saúde no ar atingiu o pico em 2006, quando chegou a 68,0 μg/m3 (microgramas por metro cúbico). Medidas de controle adotadas a partir daquele ano levaram o índice a 62,5 μg/m3 em 2013. Desde então, padrões mais rigorosos de controle de emissões reduziram o indicador para 44,4 μg/m3, em 2017, e 33,1 μg/m3 em 2020. Ainda assim, o patamar é mais de três vezes o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Redução

O carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, continua a responder por 55% da matriz energética chinesa, segundo dados relativos a 2021 compilados pela plataforma Our World in Data. O porcentual era de 70% em 2010 e 61% em 2017. Maior emissor de gases que provocam efeito estufa em termos absolutos (a liderança das emissões per capita é dos EUA), a China se transformou em um dos líderes globais em energias renováveis. A participação de usinas eólicas na matriz passou de 0,5% em 2010 para 4% em 2021, enquanto a de fontes solares foi de 0,01% a 2,0% no mesmo período.

A Agência Internacional de Energia estima que a China instalará quase metade da nova capacidade de geração de renováveis no mundo entre 2022 e 2027, estimada em um total de 2.400 GW. O Brasil todo tem uma capacidade de geração de 190 GW, considerando-se todas as fontes.

A principal novidade da visita do presidente Lula à China foi a divulgação de uma Declaração Conjunta de Combate à Mudança Climática, na qual os dois países se comprometem a combater o desmatamento ilegal e a cooperar em áreas como mobilidade elétrica, finanças verdes, energias renováveis, cidades inteligentes e desenvolvimento de tecnologias verdes. Dos 30 acordos assinados por empresas brasileiras e chinesas no âmbito da visita, quase um terço é relacionado a energias renováveis.

Diante do avanço da China em vários setores que unem tecnologia e sustentabilidade, o desafio do Brasil será transformar as declarações de intenções em negócios e investimentos que ajudem a promover a integração do país a cadeias globais ligadas à descarbonização. /EX-CORRESPONDENTE DO ESTADÃO NA CHINA E DIRETORA EXECUTIVA DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA

ESPECIAL PARA O ESTADÃO – Instalada na antiga concessão britânica de Xangai, a escultura A Arte dos Sonhos reflete muito da ambição material da China contemporânea. Pintado de amarelo, um gigantesco piloto emerge do solo e coloca sua mão esquerda sobre um Porsche Carrera S, cujo preço é próximo de R$ 1 milhão. Ao fundo, está o skyline de Pudong, o bairro futurista que simboliza a vertiginosa transformação do antigo Império do Meio.

Pouco mais de cinco anos e uma pandemia separam minhas duas últimas viagens à China, a mais recente concluída no dia 15, depois da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país. Em 2017, o PIB per capita dos 210 milhões de brasileiros ainda era maior que o do 1,4 bilhão de chineses. No ano seguinte, a nação mais populosa do mundo ultrapassou o Brasil nesse quesito e hoje tem um PIB per capita 40% superior ao nosso.

A China está mais próspera, mais cara, mais digitalizada, mais chinesa e mais silenciosa. Identificados por placas verdes, ônibus elétricos são onipresentes em Pequim e Xangai e os carros do mesmo tipo, cada vez mais numerosos. Além de não produzirem emissões, eles quase não geram ruídos. A BYD, empresa que negocia a compra da ex-fábrica da Ford na Bahia, é líder de mercado, com uma fatia de 30%. Na sequência aparecem as americanas GM e Tesla, com participações de 8,9% e 8,8%, respectivamente.

Turistas chinesas passeiam no calçadão do The Bund, em Xangai. Cidade representa transformação tecnológica da China Foto: Felipe Frazão

Veículos elétricos

No ano passado, 1 em cada 4 veículos vendidos na China eram elétricos, o que deu ao país asiático participação de quase 60% no mercado global do setor. O apelo do mercado chinês desafia a escalada das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China. Em 2019, a Tesla inaugurou uma gigafactory em Xangai, que se transformou na maior unidade produtiva da empresa no mundo em 2022, com capacidade instalada de 750 mil unidades por ano – no Brasil, todas as montadoras juntas venderam 1,9 milhão de veículos no mesmo período.

Os europeus também querem ampliar sua fatia no crescente mercado de mobilidade elétrica na China. No dia 18, a Volkswagen anunciou investimento de € 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) em um centro de pesquisa e desenvolvimento no país asiático voltado a carros elétricos e automação.

A digitalização da economia chinesa ganhou velocidade com a pandemia e hoje é difícil navegar no país fora dos aplicativos instalados em celulares. O uso do dinheiro é cada vez mais raro e pagamentos são feitos pelas grandes plataformas digitais, como Alipay e WeChat. O QRCode faz parte de todas as operações comerciais cotidianas e uma pergunta frequente na hora do pagamento é “você me escaneia ou eu te escaneio?”.

Pegar um táxi na rua se tornou tarefa desafiadora, já que todos usam aplicativos para chamar carros. Para estrangeiros não familiarizados com a língua chinesa isso pode ser uma barreira, já que muitos motoristas ligam para o passageiro com o objetivo de confirmar sua localização.

Os que não têm conta bancária na China também enfrentam restrições nos meios de pagamento. O WeChat não aceita cartões de outros países. O Alipay, que foi o aplicativo que eu usei, sim. Mas não consegui realizar pagamentos em alguns estabelecimentos menores, por estar usando um cartão de crédito internacional. Nessas situações, o uso do dinheiro é possível, ainda que nem sempre haja troco disponível.

Para os chineses e os estrangeiros que vivem no país, a digitalização tornou a vida cotidiana super conveniente. Tudo pode ser resolvido nos mega aplicativos instalados no celular, do pedido de comida à compra de passagens de trem ou avião, passando pelo pagamento de compras e serviços. Se a bateria acabar, há totens espalhados por Pequim e Xangai com carregadores portáteis, que podem ser retirados com o escaneamento do QRCode da plataforma de pagamento e devolvidos em outros locais, em um modelo de compartilhamento semelhante ao de bicicletas.

Em meu último dia na China, jantei na casa de uma amiga brasileira que vive em um condomínio de apartamentos mobiliados e com serviços em Pequim. Menos de 20 minutos depois de ela pedir nosso jantar pelo aplicativo, ele foi entregue na porta do apartamento por um robô.

A China também ficou mais cara, principalmente para os brasileiros que experimentaram o processo de desvalorização do real nos últimos anos. Jantares em restaurantes ocidentais que costumavam ser mais baratos do que no Brasil, agora vêm com uma conta bem mais salgada. Muitos serviços também subiram de preço. A manicure com esmalte de gel na rede Lily Nails, uma das mais populares de Pequim, custa hoje o equivalente a quase R$ 200.

Trem rápido

A exceção são transportes, que continuam relativamente acessíveis, incluindo táxi, metrô, ônibus e trens. Eu paguei cerca de R$ 450 por uma passagem de trem rápido de Pequim para Xangai, que percorre em 4h10 os 1.200 km que separam as duas cidades. Desde 2008, quando a primeira linha do tipo foi inaugurada, a China construiu 42.000 km de trilhos de alta velocidade. No Brasil, não há nenhum metro e a extensão das linhas de trem tradicionais é próxima de 30.000 km. Se forem incluídos os serviços de baixa velocidade, o tamanho da rede ferroviária da China chega a 155.000 km.

A infraestrutura é o setor em que a prosperidade do país asiático se traduz de forma mais concreta. Mas o enriquecimento também fica evidente nas lojas de luxo de shopping centers. No dia em que visitei o SKP, no Central Business District de Pequim, havia fila para entrar na Chanel e na Louis Vuitton.

Imagem mostra estação de trem Hongqiao, em Xangai. Infraestrutura interliga país a um custo barato Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Com o segundo maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos EUA, a China também é um dos principais destinos globais para as marcas de luxo. A consultoria Bain & Company, que publica relatórios anuais sobre esse segmento, prevê que em 2030 o país asiático assumirá a liderança desse ranking e responderá por 25% a 27% das vendas globais.

Mas isso não significa que os chineses serão tão ricos quanto os americanos. Com 1,4 bilhão de pessoas, a China terá um PIB per capita em 2028 de US$ 19,6 mil, que corresponderá a pouco mais de 20% do PIB per capita dos EUA, projetado em US$ 93,26 mil pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo que o governo de Xi Jinping tenha declarado vitória no combate à pobreza extrema em 2020, a grande maioria do país vive distante da opulência das grifes de luxo. Em Pequim e em Xangai, as bicicletas estão cada vez mais ausentes da paisagem urbana, mas um exército de pequenas motos elétricas cruza as cidades para realizar entregas rápidas.

Disparidade

Dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China mostram que os 20% mais ricos da população recebem 46% da renda, enquanto os 20% mais pobres ficam com 4,5%. Também há disparidades acentuadas de renda e qualidade da educação entre os moradores das cidades e do campo, onde estão 35% dos habitantes do país.

Outra mudança visível em relação a 2017 é a redução do número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai, em parte como consequência das políticas de combate à covid-19 adotadas no país. Cidade mais cosmopolita da China, Xangai viu um êxodo de quase 70% dos estrangeiros em 2022, estima Henry Oswald, Presidente da BraCham, grupo que reúne empresas brasileiras que atuam no país. A dúvida agora é se essa é uma mudança episódica ou mais estrutural.

Fila para entrar na loja da Chanel localizada em Pequim. Crescimento do PIB modifica hábitos na sociedade chinesa Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Duas décadas

Se o horizonte de tempo de comparação for ampliado até 2004, data da primeira visita de Lula à China, o contraste é ainda maior. Naquele ano, o PIB da China era 3 vezes o PIB brasileiro, enquanto seu PIB per capita representava menos da metade do nosso. Hoje, o PIB chinês é 10 vezes o brasileiro. Em 2004, a China era a sexta maior economia do mundo. Desde então, ultrapassou França, Inglaterra, Alemanha e Japão. As projeções indicam que a segunda maior economia do planeta assumirá o lugar dos EUA em algum momento ao redor de 2030.

O ar que os chineses respiram também está menos poluído. Nos anos 2000, quando o ritmo de crescimento anual superava os dois dígitos, o país estava entre os cinco mais poluídos do mundo. Hoje, a vizinha Índia tem o maior número de cidades com ar contaminado em todo o planeta. Em 2022, apenas 2 municípios da China apareciam na lista dos 50 mais poluídos do mundo elaborada pela empresa suíça IQAir.

Estudo publicado em 2021 na revista Environment Science & Technology mostrou que a concentração média de partículas prejudiciais à saúde no ar atingiu o pico em 2006, quando chegou a 68,0 μg/m3 (microgramas por metro cúbico). Medidas de controle adotadas a partir daquele ano levaram o índice a 62,5 μg/m3 em 2013. Desde então, padrões mais rigorosos de controle de emissões reduziram o indicador para 44,4 μg/m3, em 2017, e 33,1 μg/m3 em 2020. Ainda assim, o patamar é mais de três vezes o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Redução

O carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, continua a responder por 55% da matriz energética chinesa, segundo dados relativos a 2021 compilados pela plataforma Our World in Data. O porcentual era de 70% em 2010 e 61% em 2017. Maior emissor de gases que provocam efeito estufa em termos absolutos (a liderança das emissões per capita é dos EUA), a China se transformou em um dos líderes globais em energias renováveis. A participação de usinas eólicas na matriz passou de 0,5% em 2010 para 4% em 2021, enquanto a de fontes solares foi de 0,01% a 2,0% no mesmo período.

A Agência Internacional de Energia estima que a China instalará quase metade da nova capacidade de geração de renováveis no mundo entre 2022 e 2027, estimada em um total de 2.400 GW. O Brasil todo tem uma capacidade de geração de 190 GW, considerando-se todas as fontes.

A principal novidade da visita do presidente Lula à China foi a divulgação de uma Declaração Conjunta de Combate à Mudança Climática, na qual os dois países se comprometem a combater o desmatamento ilegal e a cooperar em áreas como mobilidade elétrica, finanças verdes, energias renováveis, cidades inteligentes e desenvolvimento de tecnologias verdes. Dos 30 acordos assinados por empresas brasileiras e chinesas no âmbito da visita, quase um terço é relacionado a energias renováveis.

Diante do avanço da China em vários setores que unem tecnologia e sustentabilidade, o desafio do Brasil será transformar as declarações de intenções em negócios e investimentos que ajudem a promover a integração do país a cadeias globais ligadas à descarbonização. /EX-CORRESPONDENTE DO ESTADÃO NA CHINA E DIRETORA EXECUTIVA DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA

ESPECIAL PARA O ESTADÃO – Instalada na antiga concessão britânica de Xangai, a escultura A Arte dos Sonhos reflete muito da ambição material da China contemporânea. Pintado de amarelo, um gigantesco piloto emerge do solo e coloca sua mão esquerda sobre um Porsche Carrera S, cujo preço é próximo de R$ 1 milhão. Ao fundo, está o skyline de Pudong, o bairro futurista que simboliza a vertiginosa transformação do antigo Império do Meio.

Pouco mais de cinco anos e uma pandemia separam minhas duas últimas viagens à China, a mais recente concluída no dia 15, depois da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país. Em 2017, o PIB per capita dos 210 milhões de brasileiros ainda era maior que o do 1,4 bilhão de chineses. No ano seguinte, a nação mais populosa do mundo ultrapassou o Brasil nesse quesito e hoje tem um PIB per capita 40% superior ao nosso.

A China está mais próspera, mais cara, mais digitalizada, mais chinesa e mais silenciosa. Identificados por placas verdes, ônibus elétricos são onipresentes em Pequim e Xangai e os carros do mesmo tipo, cada vez mais numerosos. Além de não produzirem emissões, eles quase não geram ruídos. A BYD, empresa que negocia a compra da ex-fábrica da Ford na Bahia, é líder de mercado, com uma fatia de 30%. Na sequência aparecem as americanas GM e Tesla, com participações de 8,9% e 8,8%, respectivamente.

Turistas chinesas passeiam no calçadão do The Bund, em Xangai. Cidade representa transformação tecnológica da China Foto: Felipe Frazão

Veículos elétricos

No ano passado, 1 em cada 4 veículos vendidos na China eram elétricos, o que deu ao país asiático participação de quase 60% no mercado global do setor. O apelo do mercado chinês desafia a escalada das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China. Em 2019, a Tesla inaugurou uma gigafactory em Xangai, que se transformou na maior unidade produtiva da empresa no mundo em 2022, com capacidade instalada de 750 mil unidades por ano – no Brasil, todas as montadoras juntas venderam 1,9 milhão de veículos no mesmo período.

Os europeus também querem ampliar sua fatia no crescente mercado de mobilidade elétrica na China. No dia 18, a Volkswagen anunciou investimento de € 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) em um centro de pesquisa e desenvolvimento no país asiático voltado a carros elétricos e automação.

A digitalização da economia chinesa ganhou velocidade com a pandemia e hoje é difícil navegar no país fora dos aplicativos instalados em celulares. O uso do dinheiro é cada vez mais raro e pagamentos são feitos pelas grandes plataformas digitais, como Alipay e WeChat. O QRCode faz parte de todas as operações comerciais cotidianas e uma pergunta frequente na hora do pagamento é “você me escaneia ou eu te escaneio?”.

Pegar um táxi na rua se tornou tarefa desafiadora, já que todos usam aplicativos para chamar carros. Para estrangeiros não familiarizados com a língua chinesa isso pode ser uma barreira, já que muitos motoristas ligam para o passageiro com o objetivo de confirmar sua localização.

Os que não têm conta bancária na China também enfrentam restrições nos meios de pagamento. O WeChat não aceita cartões de outros países. O Alipay, que foi o aplicativo que eu usei, sim. Mas não consegui realizar pagamentos em alguns estabelecimentos menores, por estar usando um cartão de crédito internacional. Nessas situações, o uso do dinheiro é possível, ainda que nem sempre haja troco disponível.

Para os chineses e os estrangeiros que vivem no país, a digitalização tornou a vida cotidiana super conveniente. Tudo pode ser resolvido nos mega aplicativos instalados no celular, do pedido de comida à compra de passagens de trem ou avião, passando pelo pagamento de compras e serviços. Se a bateria acabar, há totens espalhados por Pequim e Xangai com carregadores portáteis, que podem ser retirados com o escaneamento do QRCode da plataforma de pagamento e devolvidos em outros locais, em um modelo de compartilhamento semelhante ao de bicicletas.

Em meu último dia na China, jantei na casa de uma amiga brasileira que vive em um condomínio de apartamentos mobiliados e com serviços em Pequim. Menos de 20 minutos depois de ela pedir nosso jantar pelo aplicativo, ele foi entregue na porta do apartamento por um robô.

A China também ficou mais cara, principalmente para os brasileiros que experimentaram o processo de desvalorização do real nos últimos anos. Jantares em restaurantes ocidentais que costumavam ser mais baratos do que no Brasil, agora vêm com uma conta bem mais salgada. Muitos serviços também subiram de preço. A manicure com esmalte de gel na rede Lily Nails, uma das mais populares de Pequim, custa hoje o equivalente a quase R$ 200.

Trem rápido

A exceção são transportes, que continuam relativamente acessíveis, incluindo táxi, metrô, ônibus e trens. Eu paguei cerca de R$ 450 por uma passagem de trem rápido de Pequim para Xangai, que percorre em 4h10 os 1.200 km que separam as duas cidades. Desde 2008, quando a primeira linha do tipo foi inaugurada, a China construiu 42.000 km de trilhos de alta velocidade. No Brasil, não há nenhum metro e a extensão das linhas de trem tradicionais é próxima de 30.000 km. Se forem incluídos os serviços de baixa velocidade, o tamanho da rede ferroviária da China chega a 155.000 km.

A infraestrutura é o setor em que a prosperidade do país asiático se traduz de forma mais concreta. Mas o enriquecimento também fica evidente nas lojas de luxo de shopping centers. No dia em que visitei o SKP, no Central Business District de Pequim, havia fila para entrar na Chanel e na Louis Vuitton.

Imagem mostra estação de trem Hongqiao, em Xangai. Infraestrutura interliga país a um custo barato Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Com o segundo maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos EUA, a China também é um dos principais destinos globais para as marcas de luxo. A consultoria Bain & Company, que publica relatórios anuais sobre esse segmento, prevê que em 2030 o país asiático assumirá a liderança desse ranking e responderá por 25% a 27% das vendas globais.

Mas isso não significa que os chineses serão tão ricos quanto os americanos. Com 1,4 bilhão de pessoas, a China terá um PIB per capita em 2028 de US$ 19,6 mil, que corresponderá a pouco mais de 20% do PIB per capita dos EUA, projetado em US$ 93,26 mil pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo que o governo de Xi Jinping tenha declarado vitória no combate à pobreza extrema em 2020, a grande maioria do país vive distante da opulência das grifes de luxo. Em Pequim e em Xangai, as bicicletas estão cada vez mais ausentes da paisagem urbana, mas um exército de pequenas motos elétricas cruza as cidades para realizar entregas rápidas.

Disparidade

Dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China mostram que os 20% mais ricos da população recebem 46% da renda, enquanto os 20% mais pobres ficam com 4,5%. Também há disparidades acentuadas de renda e qualidade da educação entre os moradores das cidades e do campo, onde estão 35% dos habitantes do país.

Outra mudança visível em relação a 2017 é a redução do número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai, em parte como consequência das políticas de combate à covid-19 adotadas no país. Cidade mais cosmopolita da China, Xangai viu um êxodo de quase 70% dos estrangeiros em 2022, estima Henry Oswald, Presidente da BraCham, grupo que reúne empresas brasileiras que atuam no país. A dúvida agora é se essa é uma mudança episódica ou mais estrutural.

Fila para entrar na loja da Chanel localizada em Pequim. Crescimento do PIB modifica hábitos na sociedade chinesa Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Duas décadas

Se o horizonte de tempo de comparação for ampliado até 2004, data da primeira visita de Lula à China, o contraste é ainda maior. Naquele ano, o PIB da China era 3 vezes o PIB brasileiro, enquanto seu PIB per capita representava menos da metade do nosso. Hoje, o PIB chinês é 10 vezes o brasileiro. Em 2004, a China era a sexta maior economia do mundo. Desde então, ultrapassou França, Inglaterra, Alemanha e Japão. As projeções indicam que a segunda maior economia do planeta assumirá o lugar dos EUA em algum momento ao redor de 2030.

O ar que os chineses respiram também está menos poluído. Nos anos 2000, quando o ritmo de crescimento anual superava os dois dígitos, o país estava entre os cinco mais poluídos do mundo. Hoje, a vizinha Índia tem o maior número de cidades com ar contaminado em todo o planeta. Em 2022, apenas 2 municípios da China apareciam na lista dos 50 mais poluídos do mundo elaborada pela empresa suíça IQAir.

Estudo publicado em 2021 na revista Environment Science & Technology mostrou que a concentração média de partículas prejudiciais à saúde no ar atingiu o pico em 2006, quando chegou a 68,0 μg/m3 (microgramas por metro cúbico). Medidas de controle adotadas a partir daquele ano levaram o índice a 62,5 μg/m3 em 2013. Desde então, padrões mais rigorosos de controle de emissões reduziram o indicador para 44,4 μg/m3, em 2017, e 33,1 μg/m3 em 2020. Ainda assim, o patamar é mais de três vezes o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Redução

O carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, continua a responder por 55% da matriz energética chinesa, segundo dados relativos a 2021 compilados pela plataforma Our World in Data. O porcentual era de 70% em 2010 e 61% em 2017. Maior emissor de gases que provocam efeito estufa em termos absolutos (a liderança das emissões per capita é dos EUA), a China se transformou em um dos líderes globais em energias renováveis. A participação de usinas eólicas na matriz passou de 0,5% em 2010 para 4% em 2021, enquanto a de fontes solares foi de 0,01% a 2,0% no mesmo período.

A Agência Internacional de Energia estima que a China instalará quase metade da nova capacidade de geração de renováveis no mundo entre 2022 e 2027, estimada em um total de 2.400 GW. O Brasil todo tem uma capacidade de geração de 190 GW, considerando-se todas as fontes.

A principal novidade da visita do presidente Lula à China foi a divulgação de uma Declaração Conjunta de Combate à Mudança Climática, na qual os dois países se comprometem a combater o desmatamento ilegal e a cooperar em áreas como mobilidade elétrica, finanças verdes, energias renováveis, cidades inteligentes e desenvolvimento de tecnologias verdes. Dos 30 acordos assinados por empresas brasileiras e chinesas no âmbito da visita, quase um terço é relacionado a energias renováveis.

Diante do avanço da China em vários setores que unem tecnologia e sustentabilidade, o desafio do Brasil será transformar as declarações de intenções em negócios e investimentos que ajudem a promover a integração do país a cadeias globais ligadas à descarbonização. /EX-CORRESPONDENTE DO ESTADÃO NA CHINA E DIRETORA EXECUTIVA DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA

ESPECIAL PARA O ESTADÃO – Instalada na antiga concessão britânica de Xangai, a escultura A Arte dos Sonhos reflete muito da ambição material da China contemporânea. Pintado de amarelo, um gigantesco piloto emerge do solo e coloca sua mão esquerda sobre um Porsche Carrera S, cujo preço é próximo de R$ 1 milhão. Ao fundo, está o skyline de Pudong, o bairro futurista que simboliza a vertiginosa transformação do antigo Império do Meio.

Pouco mais de cinco anos e uma pandemia separam minhas duas últimas viagens à China, a mais recente concluída no dia 15, depois da visita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao país. Em 2017, o PIB per capita dos 210 milhões de brasileiros ainda era maior que o do 1,4 bilhão de chineses. No ano seguinte, a nação mais populosa do mundo ultrapassou o Brasil nesse quesito e hoje tem um PIB per capita 40% superior ao nosso.

A China está mais próspera, mais cara, mais digitalizada, mais chinesa e mais silenciosa. Identificados por placas verdes, ônibus elétricos são onipresentes em Pequim e Xangai e os carros do mesmo tipo, cada vez mais numerosos. Além de não produzirem emissões, eles quase não geram ruídos. A BYD, empresa que negocia a compra da ex-fábrica da Ford na Bahia, é líder de mercado, com uma fatia de 30%. Na sequência aparecem as americanas GM e Tesla, com participações de 8,9% e 8,8%, respectivamente.

Turistas chinesas passeiam no calçadão do The Bund, em Xangai. Cidade representa transformação tecnológica da China Foto: Felipe Frazão

Veículos elétricos

No ano passado, 1 em cada 4 veículos vendidos na China eram elétricos, o que deu ao país asiático participação de quase 60% no mercado global do setor. O apelo do mercado chinês desafia a escalada das tensões geopolíticas entre Estados Unidos e China. Em 2019, a Tesla inaugurou uma gigafactory em Xangai, que se transformou na maior unidade produtiva da empresa no mundo em 2022, com capacidade instalada de 750 mil unidades por ano – no Brasil, todas as montadoras juntas venderam 1,9 milhão de veículos no mesmo período.

Os europeus também querem ampliar sua fatia no crescente mercado de mobilidade elétrica na China. No dia 18, a Volkswagen anunciou investimento de € 1 bilhão (R$ 5,5 bilhões) em um centro de pesquisa e desenvolvimento no país asiático voltado a carros elétricos e automação.

A digitalização da economia chinesa ganhou velocidade com a pandemia e hoje é difícil navegar no país fora dos aplicativos instalados em celulares. O uso do dinheiro é cada vez mais raro e pagamentos são feitos pelas grandes plataformas digitais, como Alipay e WeChat. O QRCode faz parte de todas as operações comerciais cotidianas e uma pergunta frequente na hora do pagamento é “você me escaneia ou eu te escaneio?”.

Pegar um táxi na rua se tornou tarefa desafiadora, já que todos usam aplicativos para chamar carros. Para estrangeiros não familiarizados com a língua chinesa isso pode ser uma barreira, já que muitos motoristas ligam para o passageiro com o objetivo de confirmar sua localização.

Os que não têm conta bancária na China também enfrentam restrições nos meios de pagamento. O WeChat não aceita cartões de outros países. O Alipay, que foi o aplicativo que eu usei, sim. Mas não consegui realizar pagamentos em alguns estabelecimentos menores, por estar usando um cartão de crédito internacional. Nessas situações, o uso do dinheiro é possível, ainda que nem sempre haja troco disponível.

Para os chineses e os estrangeiros que vivem no país, a digitalização tornou a vida cotidiana super conveniente. Tudo pode ser resolvido nos mega aplicativos instalados no celular, do pedido de comida à compra de passagens de trem ou avião, passando pelo pagamento de compras e serviços. Se a bateria acabar, há totens espalhados por Pequim e Xangai com carregadores portáteis, que podem ser retirados com o escaneamento do QRCode da plataforma de pagamento e devolvidos em outros locais, em um modelo de compartilhamento semelhante ao de bicicletas.

Em meu último dia na China, jantei na casa de uma amiga brasileira que vive em um condomínio de apartamentos mobiliados e com serviços em Pequim. Menos de 20 minutos depois de ela pedir nosso jantar pelo aplicativo, ele foi entregue na porta do apartamento por um robô.

A China também ficou mais cara, principalmente para os brasileiros que experimentaram o processo de desvalorização do real nos últimos anos. Jantares em restaurantes ocidentais que costumavam ser mais baratos do que no Brasil, agora vêm com uma conta bem mais salgada. Muitos serviços também subiram de preço. A manicure com esmalte de gel na rede Lily Nails, uma das mais populares de Pequim, custa hoje o equivalente a quase R$ 200.

Trem rápido

A exceção são transportes, que continuam relativamente acessíveis, incluindo táxi, metrô, ônibus e trens. Eu paguei cerca de R$ 450 por uma passagem de trem rápido de Pequim para Xangai, que percorre em 4h10 os 1.200 km que separam as duas cidades. Desde 2008, quando a primeira linha do tipo foi inaugurada, a China construiu 42.000 km de trilhos de alta velocidade. No Brasil, não há nenhum metro e a extensão das linhas de trem tradicionais é próxima de 30.000 km. Se forem incluídos os serviços de baixa velocidade, o tamanho da rede ferroviária da China chega a 155.000 km.

A infraestrutura é o setor em que a prosperidade do país asiático se traduz de forma mais concreta. Mas o enriquecimento também fica evidente nas lojas de luxo de shopping centers. No dia em que visitei o SKP, no Central Business District de Pequim, havia fila para entrar na Chanel e na Louis Vuitton.

Imagem mostra estação de trem Hongqiao, em Xangai. Infraestrutura interliga país a um custo barato Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Com o segundo maior número de bilionários do mundo, atrás apenas dos EUA, a China também é um dos principais destinos globais para as marcas de luxo. A consultoria Bain & Company, que publica relatórios anuais sobre esse segmento, prevê que em 2030 o país asiático assumirá a liderança desse ranking e responderá por 25% a 27% das vendas globais.

Mas isso não significa que os chineses serão tão ricos quanto os americanos. Com 1,4 bilhão de pessoas, a China terá um PIB per capita em 2028 de US$ 19,6 mil, que corresponderá a pouco mais de 20% do PIB per capita dos EUA, projetado em US$ 93,26 mil pelo Fundo Monetário Internacional.

Mesmo que o governo de Xi Jinping tenha declarado vitória no combate à pobreza extrema em 2020, a grande maioria do país vive distante da opulência das grifes de luxo. Em Pequim e em Xangai, as bicicletas estão cada vez mais ausentes da paisagem urbana, mas um exército de pequenas motos elétricas cruza as cidades para realizar entregas rápidas.

Disparidade

Dados do Escritório Nacional de Estatísticas da China mostram que os 20% mais ricos da população recebem 46% da renda, enquanto os 20% mais pobres ficam com 4,5%. Também há disparidades acentuadas de renda e qualidade da educação entre os moradores das cidades e do campo, onde estão 35% dos habitantes do país.

Outra mudança visível em relação a 2017 é a redução do número de estrangeiros vivendo em Pequim e Xangai, em parte como consequência das políticas de combate à covid-19 adotadas no país. Cidade mais cosmopolita da China, Xangai viu um êxodo de quase 70% dos estrangeiros em 2022, estima Henry Oswald, Presidente da BraCham, grupo que reúne empresas brasileiras que atuam no país. A dúvida agora é se essa é uma mudança episódica ou mais estrutural.

Fila para entrar na loja da Chanel localizada em Pequim. Crescimento do PIB modifica hábitos na sociedade chinesa Foto: Cláudia Trevisan/Estadão

Duas décadas

Se o horizonte de tempo de comparação for ampliado até 2004, data da primeira visita de Lula à China, o contraste é ainda maior. Naquele ano, o PIB da China era 3 vezes o PIB brasileiro, enquanto seu PIB per capita representava menos da metade do nosso. Hoje, o PIB chinês é 10 vezes o brasileiro. Em 2004, a China era a sexta maior economia do mundo. Desde então, ultrapassou França, Inglaterra, Alemanha e Japão. As projeções indicam que a segunda maior economia do planeta assumirá o lugar dos EUA em algum momento ao redor de 2030.

O ar que os chineses respiram também está menos poluído. Nos anos 2000, quando o ritmo de crescimento anual superava os dois dígitos, o país estava entre os cinco mais poluídos do mundo. Hoje, a vizinha Índia tem o maior número de cidades com ar contaminado em todo o planeta. Em 2022, apenas 2 municípios da China apareciam na lista dos 50 mais poluídos do mundo elaborada pela empresa suíça IQAir.

Estudo publicado em 2021 na revista Environment Science & Technology mostrou que a concentração média de partículas prejudiciais à saúde no ar atingiu o pico em 2006, quando chegou a 68,0 μg/m3 (microgramas por metro cúbico). Medidas de controle adotadas a partir daquele ano levaram o índice a 62,5 μg/m3 em 2013. Desde então, padrões mais rigorosos de controle de emissões reduziram o indicador para 44,4 μg/m3, em 2017, e 33,1 μg/m3 em 2020. Ainda assim, o patamar é mais de três vezes o máximo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Redução

O carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis, continua a responder por 55% da matriz energética chinesa, segundo dados relativos a 2021 compilados pela plataforma Our World in Data. O porcentual era de 70% em 2010 e 61% em 2017. Maior emissor de gases que provocam efeito estufa em termos absolutos (a liderança das emissões per capita é dos EUA), a China se transformou em um dos líderes globais em energias renováveis. A participação de usinas eólicas na matriz passou de 0,5% em 2010 para 4% em 2021, enquanto a de fontes solares foi de 0,01% a 2,0% no mesmo período.

A Agência Internacional de Energia estima que a China instalará quase metade da nova capacidade de geração de renováveis no mundo entre 2022 e 2027, estimada em um total de 2.400 GW. O Brasil todo tem uma capacidade de geração de 190 GW, considerando-se todas as fontes.

A principal novidade da visita do presidente Lula à China foi a divulgação de uma Declaração Conjunta de Combate à Mudança Climática, na qual os dois países se comprometem a combater o desmatamento ilegal e a cooperar em áreas como mobilidade elétrica, finanças verdes, energias renováveis, cidades inteligentes e desenvolvimento de tecnologias verdes. Dos 30 acordos assinados por empresas brasileiras e chinesas no âmbito da visita, quase um terço é relacionado a energias renováveis.

Diante do avanço da China em vários setores que unem tecnologia e sustentabilidade, o desafio do Brasil será transformar as declarações de intenções em negócios e investimentos que ajudem a promover a integração do país a cadeias globais ligadas à descarbonização. /EX-CORRESPONDENTE DO ESTADÃO NA CHINA E DIRETORA EXECUTIVA DO CONSELHO EMPRESARIAL BRASIL-CHINA

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