O artífice da atual Constituição chilena, herança da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990), criou um texto muito difícil de mudar e que perpetua seu modelo político e econômico.
Apesar de algumas modificações, o texto tem sido mantido no país, que no próximo domingo, 25, decidirá em um referendo se avança rumo à mudança de sua Carta Magna, impulsionado por intensas manifestações iniciadas há um ano.
Pinochet a redigiu?
Não, foi Jaime Guzmán, prominente advogado constitucionalista e acadêmico, um dos maiores ideólogos da direita chilena, assassinado por um comando de extrema esquerda em 1991. Ele estabeleceu "enclaves autoritários" e um altíssimo "quórum" para poder realizar reformas substanciais.
Sua ideia era que, se os adversários chegassem a governar, ficariam "restritos a seguir uma ação não tão distinta à que a gente desejaria porque a margem de alternativa que o campo impuser de fato a quem joga nele será suficientemente reduzido para tornar extremamente difícil o contrário", disse o próprio Guzmán em 1979.
Quase 40 anos depois, a mudança da Constituição criada sob o governo de Pinochet se tornou o objetivo dos chilenos que apoiam as intensas reivindicações de rua que acontecem desde 18 de outubro de 2019.
No próximo domingo, os chilenos decidirão se "Aprovam" ou "Rejeitam" a mudança e que tipo de órgão deveria redigi-la: uma "Comissão Mista", integrada em partes iguais por membros eleitos e parlamentares em exercício; ou uma "Convenção Constitucional", apenas com membros eleitos.
Por que muitos acham necessário mudar a Constituição?
A Constituição foi aprovada em um contestado plebiscito em 11 de setembro de 1980, realizado durante a ditadura de Pinochet e sem registro eleitoral.
A Carta Magna estabeleceu um sistema eleitoral binominal de deputados e senadores que favoreceu, já na democracia, particularmente aos partidos da direita, que bloquearam a possibilidade de mudanças no Congresso.
Pinochet não abandonou a política até dez anos depois do fim do regime militar. Seguiu sendo comandante-em-chefe do Exército até 1998 e senador até 2001.
"Foi pensada para ter uma democracia moderada e protegida, onde um grupo minoritário conservador pudesse exercer sempre o poder de veto", explicou à Agência France Press Cristina Moyano, especialista em história do Chile e doutora em Filosofia na Universidade de Santiago.
"É uma Constituição que estabelece uma série de entraves para que a vontade popular não possa se tornar realidade", disse, por sua vez, o presidente do opositor Partido Socialista, Álvaro Elizalde.
O que impediu as mudanças?
"As normas de 'quórum' altíssimo que esta Constituição tem impede que se possam realizar mudanças mais profundas", explicou Fuad Chahín, presidente do opositor partido Democrata Cristão.
Para reformar a Carta Magna requerem-se "quóruns" de 2/3 ou 3/5, segundo o caso.
O sistema eleitoral binominal (reformado há apenas cinco anos) e que por um quarto de século permitiu a sobre-representação das forças conservadoras no Congresso, tornou possível alcançar os dois terços necessários para que se introduzam mudanças.
"Sempre ia haver um terço pelo menos assegurado da direita que ia impedir qualquer acordo de reforma constitucional", assinalou Cristina Moyano.
Trinta anos de democracia sem reformas?
Não. Em 2005, após um grande acordo político, o presidente socialista Ricardo Lagos conseguiu fazer mudanças relevantes e acabar com os "enclaves autoritários".
Isto é, a partir dessa reforma, os comandantes-em-chefe das Forças Armadas passaram a estar sob o poder civil, já que antes não podiam ser removidos. Eliminaram-se os senadores designados e vitalícios, o que permitiu que a partir de 2006 o Senado fosse totalmente formado por membros eleitos popularmente.
Em 1989, um ano antes do fim da ditadura, também foram introduzidas mudanças. Entre elas, revogou-se um artigo que declarava "ilícitos" os grupos defendessem "a violência ou uma concepção da sociedade, do Estado ou da ordem jurídica de caráter totalitário ou fundamentada na luta de classes" e que proscrevia partidos como o Comunista.
Uma mudança é necessária?
Segundo especialistas, a Constituição atual é hierárquica e desvincula a cidadania do poder político porque não inclui mecanismos de participação.
Embora não estabeleça especificamente como privadas a saúde, a educação ou o sistema previdenciário, três pilares das reivindicações atuais, impõe, sim, princípios que limitam a ação do Estado e promove a atividade privada nestes setores.
Para Andrés Molina, presidente do partido governista Evópoli, deve-se avançar para uma Constituição "mínima".
"Não pode ser uma lista de supermercado. Deve ser uma carta baseada nas regras que habilitem a política democrática e em direitos e liberdades que permitam desenvolver diversos projetos de vida em igual consideração e respeito, mas deve definir nossas diferenças em temas sociais, morais e econômicos", afirmou à Agência France Press.
Jacqueline Van Rysselberghe, presidente do partido governista União Democrata Independente, o único que promove a opção "Repudio", acredita que "é razoável que se possam introduzir novas modificações, mas isto é muito diferente ao que pretendem aqueles que querem partir de uma folha em branco, do zero, desconhecendo não só a história constitucional do Chile, mas reescrevendo a história do zero", disse. /AFP