No escuro, com a silhueta iluminada apenas pela lua, uma menina chama pela mãe. Na semana anterior, as duas haviam deixado sua casa na Venezuela rumo aos Estados Unidos. Para chegar lá, teriam de atravessar a selva do Estreito de Darién, no Panamá. Durante o caos da trilha, a criança se perdeu. Para conter o medo, Sarah Cuauro, de apenas 6 anos, começou a cantar.
Quase três anos depois de uma pandemia fatal afetar o mundo, uma combinação devastadora de pós-pandemia, mudanças climáticas, crescentes conflitos e aumento da inflação exacerbado pela guerra na Ucrânia está criando uma mudança sísmica na migração global, forçando milhões a sair de suas casas. A ONU afirma que hoje existem ao menos 103 milhões obrigados a se deslocar ao redor do mundo.
Em poucos lugares essa mudança é mais evidente que no Estreito de Darién, uma ponte terrestre hostil, pouco povoada e sem estradas conectando a América do Sul à América Central que precisa ser atravessada a pé para chegar aos EUA. Por décadas, a região era considerada tão perigosa que apenas alguns milhares se atreviam a atravessá-la por ano. Hoje, é um trânsito engarrafado.
Desde janeiro, ao menos 215 mil pessoas cruzaram o Estreito de Darién, quase o dobro do ano passado e cerca de 20 vezes a quantidade registrada entre 2010 e 2020. O enorme fluxo está alimentando um problema político em ascensão nos EUA, onde mais de 2,3 milhões foram detidos na fronteira ao sul do país este ano, um volume sem precedentes que tem aumentado a pressão sobre o presidente americano, Joe Biden.
Os que cruzaram o Estreito de Darién este ano são majoritariamente venezuelanos, muitas desgastados pelos anos de calamidade econômica sob um governo autoritário. Entre eles, ao menos 33 mil eram crianças.
Alguns migrantes vêm de famílias pobres. Mas muitos, como Sarah e sua mãe, Dayry Alexandra Cuauro, de 36 anos, que era advogada na Venezuela, já pertenceram à classe média e agora, diante do desespero causado pela ruína financeira da sua terra natal, decidiram arriscar suas vidas na selva. Dayry deixou a Venezuela com Sarah em um ônibus com apenas os passaportes, US$ 820 (R$ 4.409) e a bênção da sua mãe.
A rota começa em uma praia colombiana, passa por uma série de fazendas e comunidades indígenas, atravessa uma montanha chamada de Colina da Morte e depois segue por diversos rios antes de chegar a um acampamento do governo no Panamá.
Crise migratória nas Américas
Início da travessia
A selva de Darién no passado já foi uma das florestas mais intocadas do mundo. Algumas partes eram tão inacessíveis que os engenheiros que construíram a Rodovia Panamericana nos anos 1930, que liga o Estado americano do Alasca à Argentina, deixaram apenas um trecho importante inacabado: um pedaço sem estrada de 106 km chamado Estreito de Darién.
Hoje, o trajeto mais comum começa na praia colombiana de Capurganá, onde Sarah e sua mãe tomaram barcos que anunciavam o serviço de “turismo responsável” em direção a uma doca lotada de outros migrantes. Homens de uma recém-formada cooperativa chamada Asotracap conduziram o grupo para um complexo murado onde explicaram que os migrantes seriam designados para guias que os levariam nos primeiros dias dentro da selva por uma taxa de US$ 50 a US$ 150 (entre R$ 268 a R$ 806) por pessoa. Sarah e sua mãe se juntaram a um grupo com outras nove pessoas. Juntos, eles pagaram mais de US$ 1.200 (R$ 6.453).
No primeiro dia, o grupo subiu meia dúzia de morros em uma parte da floresta habitada apenas por pequenas comunidades. No segundo dia, Sarah e sua mãe passaram por um corpo em decomposição escondido no meio de algumas árvores, morto por causas desconhecidas. No terceiro dia, elas chegaram a um rio, onde os moradores cobravam US$ 10 (R$ 53) para uma travessia de 90 segundos de barco.
No quarto dia, elas acamparam em uma cidade onde os habitantes locais cercaram o acampamento e cobraram US$ 20 (R$ 107) por pessoa para irem embora. Na quarta manhã, logo antes de chegarem na montanha lamacenta conhecida como Colina da Morte, Sarah se perdeu de sua mãe.
Na manhã em que Sarah e sua mãe escalariam a Colina da Morte, Dayry pediu a Ángel Garcia, de 42 anos, que se tornou seu amigo durante a viagem, para que a ajudasse a carregar sua filha. Logo que deixaram Capurganá, as botas dela começaram a machucar sua pele. Seus pés estavam agora cheios de pus e ela mal conseguia andar.
García, que deixou seu filho de 6 anos na Colômbia, colocou Sarah nos ombros, olhando constantemente para sua mãe, que seguia atrás. Em certo momento, quando ele se virou, ela tinha sumido.
Naquela noite, Sarah dormiu em uma tenda com García e seus dois amigos. Os homens cuidaram dela, mas, ao mesmo tempo, pareciam apavorados com a nova responsabilidade. Eles não faziam a menor ideia de onde estava a mãe de Sarah ou se estava ferida – ou algo pior. A comida que sobrou era pouca e ainda havia vários dias de trilha pela frente.
Eles precisavam levar Sarah o mais rapidamente possível para o final da rota, onde acreditavam que as autoridades poderiam ajudá-la. Quando guardaram a barraca, Sarah perguntou a García: “E minha mãe?”. Ele respondeu: “Nós vamos encontrá-la no caminho.”
Reencontro de Dayry e Sarah
No oitavo dia de trilha na selva, Sarah e García chegaram a um acampamento em uma cidade que marcava a última parada no Estreito de Darién. Agentes do Panamá estavam em um posto de controle migratório responsável por contar o número de pessoas que atravessam a floresta. Eles separaram Sarah de García, colocando-a em uma sala com outras crianças que se perderam dos pais. Até aquele momento, Sarah havia se separado da mãe por três dias. E as horas passavam.
Então, de repente, Dayry apareceu, correndo pela sala. Por todo tempo, ela estava apenas algumas horas atrasada, tentando desesperadamente acompanhar o ritmo. Mas a alegria durou pouco.
Como muitos venezuelanos, Dayry fez o trajeto do Estreito de Darién acreditando que, se conseguisse atravessar a selva e chegar à América Central e depois ao México, os EUA a deixariam entrar. Como Washington não tem relações com Caracas, não há como deportar venezuelanos para casa. Nos últimos meses, os EUA tiveram de autorizar milhares de venezuelanos a entrar no país e pedir asilo.
A notícia se espalhou rapidamente, o que impulsionou uma enorme onda migratória até a fronteira. Agora, o governo Biden enfrenta uma crise política e humana cada vez maior.
Sarah e sua mãe deixaram o Estreito de Darién no dia 10 de outubro. Dois dias depois, o Departamento de Segurança Nacional americano anunciou que venezuelanos que chegassem aos EUA pela fronteira do Sul não teriam mais autorização para entrar no país.
Necessidade de ‘padrinho’
Em vez disso, em referência a uma política trumpista adotada na pandemia, os agentes disseram que eles seriam enviados de volta para o México. Ao mesmo tempo, um número pequeno de venezuelanos, cerca de 24 mil pessoas, teriam a oportunidade de entrar legalmente se candidatando a partir do exterior e contando com um padrinho americano. Padrinhos precisam ser cidadãos americanos ou atender a outros requisitos de residência e comprovar capacidade financeira para apoiar o imigrante por dois anos.
Dayry estava devastada. Ela não tinha um padrinho. Elas precisaram usar todo o dinheiro que tinham. As duas acabaram em um abrigo em Honduras com dezenas de outros imigrantes venezuelanos. Lá, ela esperou que a família enviasse dinheiro suficiente para que comprassem passagens de avião de volta para casa.
Sua irmã havia chegado até a Flórida alguns meses antes, após conseguir alcançar a fronteira, e disse para Dayry que procurava alguém que as apadrinhasse segundo as regras do novo programa de entrada no país, antes que todas as vagas fossem preenchidas.
Sarah, lutando contra um resfriado, vagava apática pelo abrigo. Da jornada que havia terminado ali – a lama, os rios, as noites sem a mãe –, disse ela, lembrava-se de “tudo”.