Colapso econômico faz surto de cólera voltar ao Líbano após 30 anos


Regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria

Por Renato Vasconcelos

SÃO PAULO ― Era início de outubro quando médicos no norte e no nordeste do Líbano começaram a receber pacientes com sintomas fáceis de se reconhecer, mas que há muito não se via por ali. Demorou pouco até que as autoridades de saúde do país e organismos internacionais que atuam na região concluíssem que estavam diante de um surto de cólera, doença da qual não se tinha registro em território libanês há quase 30 anos, abrindo uma nova crise em um país afetado por uma quase total paralisia política e colapso econômico.

O último caso de cólera no Líbano havia sido registrado em 1993 e ela parecia erradicada. Mas em um espaço de pouco mais de dois meses, entre 6 de outubro (quando o surto foi decretado) e 19 de dezembro, 5.328 casos confirmados ou suspeitos da doença foram notificados em todo o país e 23 pessoas morreram, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde libanês.

Casos confirmados ou suspeitos foram notificados em quase todo o país, mas as regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria. Em certa altura da segunda quinzena de outubro, momento com maior número de casos diários, cerca de 400 pacientes com sintomas de cólera chegavam por dia em hospitais do norte, enquanto moradores de comunidades sem acesso regular a energia e água potável precisavam optar entre beber água contaminada ou morrer de sede.

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“Todo mundo vai pegar cólera”, afirmou Marwa Khaled, de 35 anos, mãe de seis e moradora de Bebnine, no norte do país. Em entrevista à France-Presse no começo de novembro, ela afirmou saber que a água que sua família bebia tinha contaminado um de seus filhos, de 16 anos, mas que não tinha dinheiro para comprar água engarrafada. “As pessoas sabem, mas não têm escolha”, acrescentou.

Campanha de vacinação contra o cólera no norte do Líbano  Foto: WAEL HAMZEH/EFE

Ponta do iceberg

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No mesmo mês em que a cólera se espalhava, o país se entrava em um novo impasse político. Com o fim do mandato do presidente Michel Aoun em outubro, o Parlamento extremamente dividido do país não conseguiu eleger um sucessor até o momento. Após reiteradas votações sem consenso, cada vez mais deputados passaram a votar em branco ou em protesto, indicando votos em personalidades como Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ou Salvador Allende, ex-líder do Chile.

A paralisia política, que muitos atribuem a disputas envolvendo o Hezbollah (considerado em alguns países como patrocinador de grupos terroristas), tem afetado a capacidade do país de conseguir algum desafogo econômico no exterior. Uma prometida reforma com auxílio do Fundo Monetário Internacional está travada, enquanto países do Golfo como a Arábia Saudita, que por anos foi uma das principais parcerias econômicas de Beirute, guarda rancor pelo apoio do Hezbollah aos rebeldes Houthis do Iêmen, que combateram a coalizão saudita que interveio no país.

Todo mundo vai pegar cólera. As pessoas sabem disso, mas não têm escolha

Marwa Khaled, moradora de Bebnine, no Líbano

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A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se instala no intestino do paciente infectado. A forma grave da doença pode causar diarreia, vômito, dor abdominal e cãibras, podendo matar por desidratação. Como o contágio normalmente ocorre pelo contato direto ou indireto ― por água ou alimentos contaminados ― com as fezes do paciente infectado, a doença está diretamente associada à falta de saneamento básico e de água tratada, infraestrutura básica que está comprometida em grande parte do Líbano e sem perspectivas de grandes investimentos.

“O Líbano está sofrendo com uma grande crise política e econômica desde pelo menos 2019 e toda a infraestrutura do país foi pesadamente afetada por ela. A [crise de] cólera não é apenas um problema médico, ela é apenas o componente médico no topo do iceberg”, afirmou Marcelo Fernandez, chefe da missão da Médicos Sem Fronteiras no país.

Campo de refugiados sírios ao norte de Beirute: más condições de higiene facilitam disseminação da doença  Foto: Bilal Hussein /AP
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Ressurgimento da doença

Embora não haja um estudo científico que comprove a relação direta, autoridades admitem que o surto de cólera no Líbano está relacionado ao surto identificado meses antes na Síria. Além dos primeiros casos terem surgido próximo da fronteira, estimativas oficiais apontam que cerca de 1,5 milhão de refugiados da guerra na Síria estão no Líbano em abrigos ou possuem o direito de transitar entre os países.

Apesar do provável vínculo, fontes ouvidas pelo Estadão apontam que a crise de cólera especificamente não elevou a tensão entre cidadãos libaneses e refugiados sírios.

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“Obviamente, no começo da emergência de saúde, algumas pessoas tentaram fazer uma manipulação do surto para uso político, mas as pessoas não são estúpidas. Elas sabem que não têm acesso a água tratada e saneamento básico próprio ― e que sem isso, o problema vai permanecer”, disse Fernandez, após afirmar que apontar para a relação entre os refugiados e a crise de saúde sem evidência científica é uma “saída fácil”.

A cólera não tem relação com a crise de refugiados. A cólera tem a ver com a falta de água tratada e saneamento no país.

Marcelo Fernandez, chefe da delegação da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Preparando médicos e pacientes

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Diante do principal problema, a falta de infraestrutura, que ameaçava um avanço descontrolado da doença pelo país, a capacidade de atender os pacientes infectados se tornou uma preocupação imediata não apenas pelo número de leitos hospitalares disponíveis.

“A primeira preocupação foi com o fato das pessoas, incluindo as autoridades de saúde, não saberem mais lidar com a cólera. Muitas das pessoas que tiveram experiência com essa doença, há 30 anos, deixaram o país. Vinte e cinco por cento dos médicos e enfermeiros deixaram o Líbano nos últimos dois anos. Não se sabia lidar com o problema, não havia protocolos”, relembrou Simone Casabianca-Aeschlimann, chefe da delegação da Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Líbano.

Sem expertise, uma estratégia precisou ser elaborada do zero. Com o auxílio de organizações internacionais, agências da ONU e de organizações da sociedade civil, autoridades de saúde libanesas conseguiram aplicar 600 mil doses de vacina contra a cólera na população ― número particularmente expressivo considerando uma população de cerca de 6,7 milhões de habitantes, mais aproximadamente 1,5 milhão de refugiados sírios, alguns dos quais circulam entre os dois lados da fronteira.

“A comunidade foi muito importante para diminuir a crise. Eles são muito participativos e a taxa de vacinação foi muito alta, muito maior que a da covid, por exemplo”, afirmou Simone, acrescentando ainda que o nível de compromisso das autoridades envolvidas na crise do cólera era “altíssimo”, mesmo com os órgãos funcionando de maneira transitória, até o fim do impasse político.

O trabalho também teve outras frentes, o CICV e a MSF, por exemplo, auxiliaram o trabalho em ao menos dois grandes hospitais no norte do país. A Cruz Vermelha libanesa atuou diretamente em campanhas educativas para prevenir a população do contágio e aumentar a taxa de adesão à vacinação ― que, segundo as autoridades, tem sido maior porcentualmente que a do covid. O CICV também investiu em estações de tratamento de água para garantir que a população, principalmente as comunidades mais vulneráveis, não continuassem expostas a doença.

O trabalho alcançou resultados. O nível de infecções diárias diminuiu vertiginosamente e, segundo os dados oficiais, nenhum caso confirmado ou suspeito foi registrado entre 18 e 19 de dezembro.

A vacinação é a maneira mais eficaz de combater a doença, que pode levar à morte  Foto: WAEL HAMZEH/ EFE

Risco de endemia

Embora a situação pareça controlada, as autoridades temem que os avanços possam fazer com que a população baixe a guarda para a ameaça e os casos voltem a crescer. A aproximação do inverno também é um risco particular, principalmente considerando a falta de infraestrutura e a quantidade de chuvas na estação.

“Estamos entrando no inverno, que tem muita chuva. Com essa chuva, os estabelecimentos de água, tanto limpa quanto suja, vão transbordar, e essa água suja vai se espalhar por todo lado”, disse Simone.

Outro risco é que, com a neve e com o frio nas regiões de montanha, as pessoas mais vulneráveis não tenham condição de alugar um carro ou pegar um táxi para ir até o hospital, por causa da crise econômica, e mais casos graves apareçam”, disse Simone.

Outra preocupação é quanto ao financiamento dos projetos internacionais no país. Segundo a representante da CICV, tanto o aparecimento de crises humanitárias com mais visibilidade que o Líbano, como os casos de Afeganistão, Ucrânia e a região do Tigré, na Etiópia, quanto o entorno político da crise no país afasta doadores, o que pode comprometer o fornecimento de água tratada e a vacinação.

“No Líbano, você dorme com uma situação e acorda com outra. Não quero diminuir a importância da situação com a cólera, mas ela é apenas um elemento a mais, uma variável com a qual temos que lidar”/ Com AFP e AP

SÃO PAULO ― Era início de outubro quando médicos no norte e no nordeste do Líbano começaram a receber pacientes com sintomas fáceis de se reconhecer, mas que há muito não se via por ali. Demorou pouco até que as autoridades de saúde do país e organismos internacionais que atuam na região concluíssem que estavam diante de um surto de cólera, doença da qual não se tinha registro em território libanês há quase 30 anos, abrindo uma nova crise em um país afetado por uma quase total paralisia política e colapso econômico.

O último caso de cólera no Líbano havia sido registrado em 1993 e ela parecia erradicada. Mas em um espaço de pouco mais de dois meses, entre 6 de outubro (quando o surto foi decretado) e 19 de dezembro, 5.328 casos confirmados ou suspeitos da doença foram notificados em todo o país e 23 pessoas morreram, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde libanês.

Casos confirmados ou suspeitos foram notificados em quase todo o país, mas as regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria. Em certa altura da segunda quinzena de outubro, momento com maior número de casos diários, cerca de 400 pacientes com sintomas de cólera chegavam por dia em hospitais do norte, enquanto moradores de comunidades sem acesso regular a energia e água potável precisavam optar entre beber água contaminada ou morrer de sede.

“Todo mundo vai pegar cólera”, afirmou Marwa Khaled, de 35 anos, mãe de seis e moradora de Bebnine, no norte do país. Em entrevista à France-Presse no começo de novembro, ela afirmou saber que a água que sua família bebia tinha contaminado um de seus filhos, de 16 anos, mas que não tinha dinheiro para comprar água engarrafada. “As pessoas sabem, mas não têm escolha”, acrescentou.

Campanha de vacinação contra o cólera no norte do Líbano  Foto: WAEL HAMZEH/EFE

Ponta do iceberg

No mesmo mês em que a cólera se espalhava, o país se entrava em um novo impasse político. Com o fim do mandato do presidente Michel Aoun em outubro, o Parlamento extremamente dividido do país não conseguiu eleger um sucessor até o momento. Após reiteradas votações sem consenso, cada vez mais deputados passaram a votar em branco ou em protesto, indicando votos em personalidades como Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ou Salvador Allende, ex-líder do Chile.

A paralisia política, que muitos atribuem a disputas envolvendo o Hezbollah (considerado em alguns países como patrocinador de grupos terroristas), tem afetado a capacidade do país de conseguir algum desafogo econômico no exterior. Uma prometida reforma com auxílio do Fundo Monetário Internacional está travada, enquanto países do Golfo como a Arábia Saudita, que por anos foi uma das principais parcerias econômicas de Beirute, guarda rancor pelo apoio do Hezbollah aos rebeldes Houthis do Iêmen, que combateram a coalizão saudita que interveio no país.

Todo mundo vai pegar cólera. As pessoas sabem disso, mas não têm escolha

Marwa Khaled, moradora de Bebnine, no Líbano

A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se instala no intestino do paciente infectado. A forma grave da doença pode causar diarreia, vômito, dor abdominal e cãibras, podendo matar por desidratação. Como o contágio normalmente ocorre pelo contato direto ou indireto ― por água ou alimentos contaminados ― com as fezes do paciente infectado, a doença está diretamente associada à falta de saneamento básico e de água tratada, infraestrutura básica que está comprometida em grande parte do Líbano e sem perspectivas de grandes investimentos.

“O Líbano está sofrendo com uma grande crise política e econômica desde pelo menos 2019 e toda a infraestrutura do país foi pesadamente afetada por ela. A [crise de] cólera não é apenas um problema médico, ela é apenas o componente médico no topo do iceberg”, afirmou Marcelo Fernandez, chefe da missão da Médicos Sem Fronteiras no país.

Campo de refugiados sírios ao norte de Beirute: más condições de higiene facilitam disseminação da doença  Foto: Bilal Hussein /AP

Ressurgimento da doença

Embora não haja um estudo científico que comprove a relação direta, autoridades admitem que o surto de cólera no Líbano está relacionado ao surto identificado meses antes na Síria. Além dos primeiros casos terem surgido próximo da fronteira, estimativas oficiais apontam que cerca de 1,5 milhão de refugiados da guerra na Síria estão no Líbano em abrigos ou possuem o direito de transitar entre os países.

Apesar do provável vínculo, fontes ouvidas pelo Estadão apontam que a crise de cólera especificamente não elevou a tensão entre cidadãos libaneses e refugiados sírios.

“Obviamente, no começo da emergência de saúde, algumas pessoas tentaram fazer uma manipulação do surto para uso político, mas as pessoas não são estúpidas. Elas sabem que não têm acesso a água tratada e saneamento básico próprio ― e que sem isso, o problema vai permanecer”, disse Fernandez, após afirmar que apontar para a relação entre os refugiados e a crise de saúde sem evidência científica é uma “saída fácil”.

A cólera não tem relação com a crise de refugiados. A cólera tem a ver com a falta de água tratada e saneamento no país.

Marcelo Fernandez, chefe da delegação da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Preparando médicos e pacientes

Diante do principal problema, a falta de infraestrutura, que ameaçava um avanço descontrolado da doença pelo país, a capacidade de atender os pacientes infectados se tornou uma preocupação imediata não apenas pelo número de leitos hospitalares disponíveis.

“A primeira preocupação foi com o fato das pessoas, incluindo as autoridades de saúde, não saberem mais lidar com a cólera. Muitas das pessoas que tiveram experiência com essa doença, há 30 anos, deixaram o país. Vinte e cinco por cento dos médicos e enfermeiros deixaram o Líbano nos últimos dois anos. Não se sabia lidar com o problema, não havia protocolos”, relembrou Simone Casabianca-Aeschlimann, chefe da delegação da Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Líbano.

Sem expertise, uma estratégia precisou ser elaborada do zero. Com o auxílio de organizações internacionais, agências da ONU e de organizações da sociedade civil, autoridades de saúde libanesas conseguiram aplicar 600 mil doses de vacina contra a cólera na população ― número particularmente expressivo considerando uma população de cerca de 6,7 milhões de habitantes, mais aproximadamente 1,5 milhão de refugiados sírios, alguns dos quais circulam entre os dois lados da fronteira.

“A comunidade foi muito importante para diminuir a crise. Eles são muito participativos e a taxa de vacinação foi muito alta, muito maior que a da covid, por exemplo”, afirmou Simone, acrescentando ainda que o nível de compromisso das autoridades envolvidas na crise do cólera era “altíssimo”, mesmo com os órgãos funcionando de maneira transitória, até o fim do impasse político.

O trabalho também teve outras frentes, o CICV e a MSF, por exemplo, auxiliaram o trabalho em ao menos dois grandes hospitais no norte do país. A Cruz Vermelha libanesa atuou diretamente em campanhas educativas para prevenir a população do contágio e aumentar a taxa de adesão à vacinação ― que, segundo as autoridades, tem sido maior porcentualmente que a do covid. O CICV também investiu em estações de tratamento de água para garantir que a população, principalmente as comunidades mais vulneráveis, não continuassem expostas a doença.

O trabalho alcançou resultados. O nível de infecções diárias diminuiu vertiginosamente e, segundo os dados oficiais, nenhum caso confirmado ou suspeito foi registrado entre 18 e 19 de dezembro.

A vacinação é a maneira mais eficaz de combater a doença, que pode levar à morte  Foto: WAEL HAMZEH/ EFE

Risco de endemia

Embora a situação pareça controlada, as autoridades temem que os avanços possam fazer com que a população baixe a guarda para a ameaça e os casos voltem a crescer. A aproximação do inverno também é um risco particular, principalmente considerando a falta de infraestrutura e a quantidade de chuvas na estação.

“Estamos entrando no inverno, que tem muita chuva. Com essa chuva, os estabelecimentos de água, tanto limpa quanto suja, vão transbordar, e essa água suja vai se espalhar por todo lado”, disse Simone.

Outro risco é que, com a neve e com o frio nas regiões de montanha, as pessoas mais vulneráveis não tenham condição de alugar um carro ou pegar um táxi para ir até o hospital, por causa da crise econômica, e mais casos graves apareçam”, disse Simone.

Outra preocupação é quanto ao financiamento dos projetos internacionais no país. Segundo a representante da CICV, tanto o aparecimento de crises humanitárias com mais visibilidade que o Líbano, como os casos de Afeganistão, Ucrânia e a região do Tigré, na Etiópia, quanto o entorno político da crise no país afasta doadores, o que pode comprometer o fornecimento de água tratada e a vacinação.

“No Líbano, você dorme com uma situação e acorda com outra. Não quero diminuir a importância da situação com a cólera, mas ela é apenas um elemento a mais, uma variável com a qual temos que lidar”/ Com AFP e AP

SÃO PAULO ― Era início de outubro quando médicos no norte e no nordeste do Líbano começaram a receber pacientes com sintomas fáceis de se reconhecer, mas que há muito não se via por ali. Demorou pouco até que as autoridades de saúde do país e organismos internacionais que atuam na região concluíssem que estavam diante de um surto de cólera, doença da qual não se tinha registro em território libanês há quase 30 anos, abrindo uma nova crise em um país afetado por uma quase total paralisia política e colapso econômico.

O último caso de cólera no Líbano havia sido registrado em 1993 e ela parecia erradicada. Mas em um espaço de pouco mais de dois meses, entre 6 de outubro (quando o surto foi decretado) e 19 de dezembro, 5.328 casos confirmados ou suspeitos da doença foram notificados em todo o país e 23 pessoas morreram, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde libanês.

Casos confirmados ou suspeitos foram notificados em quase todo o país, mas as regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria. Em certa altura da segunda quinzena de outubro, momento com maior número de casos diários, cerca de 400 pacientes com sintomas de cólera chegavam por dia em hospitais do norte, enquanto moradores de comunidades sem acesso regular a energia e água potável precisavam optar entre beber água contaminada ou morrer de sede.

“Todo mundo vai pegar cólera”, afirmou Marwa Khaled, de 35 anos, mãe de seis e moradora de Bebnine, no norte do país. Em entrevista à France-Presse no começo de novembro, ela afirmou saber que a água que sua família bebia tinha contaminado um de seus filhos, de 16 anos, mas que não tinha dinheiro para comprar água engarrafada. “As pessoas sabem, mas não têm escolha”, acrescentou.

Campanha de vacinação contra o cólera no norte do Líbano  Foto: WAEL HAMZEH/EFE

Ponta do iceberg

No mesmo mês em que a cólera se espalhava, o país se entrava em um novo impasse político. Com o fim do mandato do presidente Michel Aoun em outubro, o Parlamento extremamente dividido do país não conseguiu eleger um sucessor até o momento. Após reiteradas votações sem consenso, cada vez mais deputados passaram a votar em branco ou em protesto, indicando votos em personalidades como Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ou Salvador Allende, ex-líder do Chile.

A paralisia política, que muitos atribuem a disputas envolvendo o Hezbollah (considerado em alguns países como patrocinador de grupos terroristas), tem afetado a capacidade do país de conseguir algum desafogo econômico no exterior. Uma prometida reforma com auxílio do Fundo Monetário Internacional está travada, enquanto países do Golfo como a Arábia Saudita, que por anos foi uma das principais parcerias econômicas de Beirute, guarda rancor pelo apoio do Hezbollah aos rebeldes Houthis do Iêmen, que combateram a coalizão saudita que interveio no país.

Todo mundo vai pegar cólera. As pessoas sabem disso, mas não têm escolha

Marwa Khaled, moradora de Bebnine, no Líbano

A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se instala no intestino do paciente infectado. A forma grave da doença pode causar diarreia, vômito, dor abdominal e cãibras, podendo matar por desidratação. Como o contágio normalmente ocorre pelo contato direto ou indireto ― por água ou alimentos contaminados ― com as fezes do paciente infectado, a doença está diretamente associada à falta de saneamento básico e de água tratada, infraestrutura básica que está comprometida em grande parte do Líbano e sem perspectivas de grandes investimentos.

“O Líbano está sofrendo com uma grande crise política e econômica desde pelo menos 2019 e toda a infraestrutura do país foi pesadamente afetada por ela. A [crise de] cólera não é apenas um problema médico, ela é apenas o componente médico no topo do iceberg”, afirmou Marcelo Fernandez, chefe da missão da Médicos Sem Fronteiras no país.

Campo de refugiados sírios ao norte de Beirute: más condições de higiene facilitam disseminação da doença  Foto: Bilal Hussein /AP

Ressurgimento da doença

Embora não haja um estudo científico que comprove a relação direta, autoridades admitem que o surto de cólera no Líbano está relacionado ao surto identificado meses antes na Síria. Além dos primeiros casos terem surgido próximo da fronteira, estimativas oficiais apontam que cerca de 1,5 milhão de refugiados da guerra na Síria estão no Líbano em abrigos ou possuem o direito de transitar entre os países.

Apesar do provável vínculo, fontes ouvidas pelo Estadão apontam que a crise de cólera especificamente não elevou a tensão entre cidadãos libaneses e refugiados sírios.

“Obviamente, no começo da emergência de saúde, algumas pessoas tentaram fazer uma manipulação do surto para uso político, mas as pessoas não são estúpidas. Elas sabem que não têm acesso a água tratada e saneamento básico próprio ― e que sem isso, o problema vai permanecer”, disse Fernandez, após afirmar que apontar para a relação entre os refugiados e a crise de saúde sem evidência científica é uma “saída fácil”.

A cólera não tem relação com a crise de refugiados. A cólera tem a ver com a falta de água tratada e saneamento no país.

Marcelo Fernandez, chefe da delegação da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Preparando médicos e pacientes

Diante do principal problema, a falta de infraestrutura, que ameaçava um avanço descontrolado da doença pelo país, a capacidade de atender os pacientes infectados se tornou uma preocupação imediata não apenas pelo número de leitos hospitalares disponíveis.

“A primeira preocupação foi com o fato das pessoas, incluindo as autoridades de saúde, não saberem mais lidar com a cólera. Muitas das pessoas que tiveram experiência com essa doença, há 30 anos, deixaram o país. Vinte e cinco por cento dos médicos e enfermeiros deixaram o Líbano nos últimos dois anos. Não se sabia lidar com o problema, não havia protocolos”, relembrou Simone Casabianca-Aeschlimann, chefe da delegação da Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Líbano.

Sem expertise, uma estratégia precisou ser elaborada do zero. Com o auxílio de organizações internacionais, agências da ONU e de organizações da sociedade civil, autoridades de saúde libanesas conseguiram aplicar 600 mil doses de vacina contra a cólera na população ― número particularmente expressivo considerando uma população de cerca de 6,7 milhões de habitantes, mais aproximadamente 1,5 milhão de refugiados sírios, alguns dos quais circulam entre os dois lados da fronteira.

“A comunidade foi muito importante para diminuir a crise. Eles são muito participativos e a taxa de vacinação foi muito alta, muito maior que a da covid, por exemplo”, afirmou Simone, acrescentando ainda que o nível de compromisso das autoridades envolvidas na crise do cólera era “altíssimo”, mesmo com os órgãos funcionando de maneira transitória, até o fim do impasse político.

O trabalho também teve outras frentes, o CICV e a MSF, por exemplo, auxiliaram o trabalho em ao menos dois grandes hospitais no norte do país. A Cruz Vermelha libanesa atuou diretamente em campanhas educativas para prevenir a população do contágio e aumentar a taxa de adesão à vacinação ― que, segundo as autoridades, tem sido maior porcentualmente que a do covid. O CICV também investiu em estações de tratamento de água para garantir que a população, principalmente as comunidades mais vulneráveis, não continuassem expostas a doença.

O trabalho alcançou resultados. O nível de infecções diárias diminuiu vertiginosamente e, segundo os dados oficiais, nenhum caso confirmado ou suspeito foi registrado entre 18 e 19 de dezembro.

A vacinação é a maneira mais eficaz de combater a doença, que pode levar à morte  Foto: WAEL HAMZEH/ EFE

Risco de endemia

Embora a situação pareça controlada, as autoridades temem que os avanços possam fazer com que a população baixe a guarda para a ameaça e os casos voltem a crescer. A aproximação do inverno também é um risco particular, principalmente considerando a falta de infraestrutura e a quantidade de chuvas na estação.

“Estamos entrando no inverno, que tem muita chuva. Com essa chuva, os estabelecimentos de água, tanto limpa quanto suja, vão transbordar, e essa água suja vai se espalhar por todo lado”, disse Simone.

Outro risco é que, com a neve e com o frio nas regiões de montanha, as pessoas mais vulneráveis não tenham condição de alugar um carro ou pegar um táxi para ir até o hospital, por causa da crise econômica, e mais casos graves apareçam”, disse Simone.

Outra preocupação é quanto ao financiamento dos projetos internacionais no país. Segundo a representante da CICV, tanto o aparecimento de crises humanitárias com mais visibilidade que o Líbano, como os casos de Afeganistão, Ucrânia e a região do Tigré, na Etiópia, quanto o entorno político da crise no país afasta doadores, o que pode comprometer o fornecimento de água tratada e a vacinação.

“No Líbano, você dorme com uma situação e acorda com outra. Não quero diminuir a importância da situação com a cólera, mas ela é apenas um elemento a mais, uma variável com a qual temos que lidar”/ Com AFP e AP

SÃO PAULO ― Era início de outubro quando médicos no norte e no nordeste do Líbano começaram a receber pacientes com sintomas fáceis de se reconhecer, mas que há muito não se via por ali. Demorou pouco até que as autoridades de saúde do país e organismos internacionais que atuam na região concluíssem que estavam diante de um surto de cólera, doença da qual não se tinha registro em território libanês há quase 30 anos, abrindo uma nova crise em um país afetado por uma quase total paralisia política e colapso econômico.

O último caso de cólera no Líbano havia sido registrado em 1993 e ela parecia erradicada. Mas em um espaço de pouco mais de dois meses, entre 6 de outubro (quando o surto foi decretado) e 19 de dezembro, 5.328 casos confirmados ou suspeitos da doença foram notificados em todo o país e 23 pessoas morreram, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde libanês.

Casos confirmados ou suspeitos foram notificados em quase todo o país, mas as regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria. Em certa altura da segunda quinzena de outubro, momento com maior número de casos diários, cerca de 400 pacientes com sintomas de cólera chegavam por dia em hospitais do norte, enquanto moradores de comunidades sem acesso regular a energia e água potável precisavam optar entre beber água contaminada ou morrer de sede.

“Todo mundo vai pegar cólera”, afirmou Marwa Khaled, de 35 anos, mãe de seis e moradora de Bebnine, no norte do país. Em entrevista à France-Presse no começo de novembro, ela afirmou saber que a água que sua família bebia tinha contaminado um de seus filhos, de 16 anos, mas que não tinha dinheiro para comprar água engarrafada. “As pessoas sabem, mas não têm escolha”, acrescentou.

Campanha de vacinação contra o cólera no norte do Líbano  Foto: WAEL HAMZEH/EFE

Ponta do iceberg

No mesmo mês em que a cólera se espalhava, o país se entrava em um novo impasse político. Com o fim do mandato do presidente Michel Aoun em outubro, o Parlamento extremamente dividido do país não conseguiu eleger um sucessor até o momento. Após reiteradas votações sem consenso, cada vez mais deputados passaram a votar em branco ou em protesto, indicando votos em personalidades como Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ou Salvador Allende, ex-líder do Chile.

A paralisia política, que muitos atribuem a disputas envolvendo o Hezbollah (considerado em alguns países como patrocinador de grupos terroristas), tem afetado a capacidade do país de conseguir algum desafogo econômico no exterior. Uma prometida reforma com auxílio do Fundo Monetário Internacional está travada, enquanto países do Golfo como a Arábia Saudita, que por anos foi uma das principais parcerias econômicas de Beirute, guarda rancor pelo apoio do Hezbollah aos rebeldes Houthis do Iêmen, que combateram a coalizão saudita que interveio no país.

Todo mundo vai pegar cólera. As pessoas sabem disso, mas não têm escolha

Marwa Khaled, moradora de Bebnine, no Líbano

A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se instala no intestino do paciente infectado. A forma grave da doença pode causar diarreia, vômito, dor abdominal e cãibras, podendo matar por desidratação. Como o contágio normalmente ocorre pelo contato direto ou indireto ― por água ou alimentos contaminados ― com as fezes do paciente infectado, a doença está diretamente associada à falta de saneamento básico e de água tratada, infraestrutura básica que está comprometida em grande parte do Líbano e sem perspectivas de grandes investimentos.

“O Líbano está sofrendo com uma grande crise política e econômica desde pelo menos 2019 e toda a infraestrutura do país foi pesadamente afetada por ela. A [crise de] cólera não é apenas um problema médico, ela é apenas o componente médico no topo do iceberg”, afirmou Marcelo Fernandez, chefe da missão da Médicos Sem Fronteiras no país.

Campo de refugiados sírios ao norte de Beirute: más condições de higiene facilitam disseminação da doença  Foto: Bilal Hussein /AP

Ressurgimento da doença

Embora não haja um estudo científico que comprove a relação direta, autoridades admitem que o surto de cólera no Líbano está relacionado ao surto identificado meses antes na Síria. Além dos primeiros casos terem surgido próximo da fronteira, estimativas oficiais apontam que cerca de 1,5 milhão de refugiados da guerra na Síria estão no Líbano em abrigos ou possuem o direito de transitar entre os países.

Apesar do provável vínculo, fontes ouvidas pelo Estadão apontam que a crise de cólera especificamente não elevou a tensão entre cidadãos libaneses e refugiados sírios.

“Obviamente, no começo da emergência de saúde, algumas pessoas tentaram fazer uma manipulação do surto para uso político, mas as pessoas não são estúpidas. Elas sabem que não têm acesso a água tratada e saneamento básico próprio ― e que sem isso, o problema vai permanecer”, disse Fernandez, após afirmar que apontar para a relação entre os refugiados e a crise de saúde sem evidência científica é uma “saída fácil”.

A cólera não tem relação com a crise de refugiados. A cólera tem a ver com a falta de água tratada e saneamento no país.

Marcelo Fernandez, chefe da delegação da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Preparando médicos e pacientes

Diante do principal problema, a falta de infraestrutura, que ameaçava um avanço descontrolado da doença pelo país, a capacidade de atender os pacientes infectados se tornou uma preocupação imediata não apenas pelo número de leitos hospitalares disponíveis.

“A primeira preocupação foi com o fato das pessoas, incluindo as autoridades de saúde, não saberem mais lidar com a cólera. Muitas das pessoas que tiveram experiência com essa doença, há 30 anos, deixaram o país. Vinte e cinco por cento dos médicos e enfermeiros deixaram o Líbano nos últimos dois anos. Não se sabia lidar com o problema, não havia protocolos”, relembrou Simone Casabianca-Aeschlimann, chefe da delegação da Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Líbano.

Sem expertise, uma estratégia precisou ser elaborada do zero. Com o auxílio de organizações internacionais, agências da ONU e de organizações da sociedade civil, autoridades de saúde libanesas conseguiram aplicar 600 mil doses de vacina contra a cólera na população ― número particularmente expressivo considerando uma população de cerca de 6,7 milhões de habitantes, mais aproximadamente 1,5 milhão de refugiados sírios, alguns dos quais circulam entre os dois lados da fronteira.

“A comunidade foi muito importante para diminuir a crise. Eles são muito participativos e a taxa de vacinação foi muito alta, muito maior que a da covid, por exemplo”, afirmou Simone, acrescentando ainda que o nível de compromisso das autoridades envolvidas na crise do cólera era “altíssimo”, mesmo com os órgãos funcionando de maneira transitória, até o fim do impasse político.

O trabalho também teve outras frentes, o CICV e a MSF, por exemplo, auxiliaram o trabalho em ao menos dois grandes hospitais no norte do país. A Cruz Vermelha libanesa atuou diretamente em campanhas educativas para prevenir a população do contágio e aumentar a taxa de adesão à vacinação ― que, segundo as autoridades, tem sido maior porcentualmente que a do covid. O CICV também investiu em estações de tratamento de água para garantir que a população, principalmente as comunidades mais vulneráveis, não continuassem expostas a doença.

O trabalho alcançou resultados. O nível de infecções diárias diminuiu vertiginosamente e, segundo os dados oficiais, nenhum caso confirmado ou suspeito foi registrado entre 18 e 19 de dezembro.

A vacinação é a maneira mais eficaz de combater a doença, que pode levar à morte  Foto: WAEL HAMZEH/ EFE

Risco de endemia

Embora a situação pareça controlada, as autoridades temem que os avanços possam fazer com que a população baixe a guarda para a ameaça e os casos voltem a crescer. A aproximação do inverno também é um risco particular, principalmente considerando a falta de infraestrutura e a quantidade de chuvas na estação.

“Estamos entrando no inverno, que tem muita chuva. Com essa chuva, os estabelecimentos de água, tanto limpa quanto suja, vão transbordar, e essa água suja vai se espalhar por todo lado”, disse Simone.

Outro risco é que, com a neve e com o frio nas regiões de montanha, as pessoas mais vulneráveis não tenham condição de alugar um carro ou pegar um táxi para ir até o hospital, por causa da crise econômica, e mais casos graves apareçam”, disse Simone.

Outra preocupação é quanto ao financiamento dos projetos internacionais no país. Segundo a representante da CICV, tanto o aparecimento de crises humanitárias com mais visibilidade que o Líbano, como os casos de Afeganistão, Ucrânia e a região do Tigré, na Etiópia, quanto o entorno político da crise no país afasta doadores, o que pode comprometer o fornecimento de água tratada e a vacinação.

“No Líbano, você dorme com uma situação e acorda com outra. Não quero diminuir a importância da situação com a cólera, mas ela é apenas um elemento a mais, uma variável com a qual temos que lidar”/ Com AFP e AP

SÃO PAULO ― Era início de outubro quando médicos no norte e no nordeste do Líbano começaram a receber pacientes com sintomas fáceis de se reconhecer, mas que há muito não se via por ali. Demorou pouco até que as autoridades de saúde do país e organismos internacionais que atuam na região concluíssem que estavam diante de um surto de cólera, doença da qual não se tinha registro em território libanês há quase 30 anos, abrindo uma nova crise em um país afetado por uma quase total paralisia política e colapso econômico.

O último caso de cólera no Líbano havia sido registrado em 1993 e ela parecia erradicada. Mas em um espaço de pouco mais de dois meses, entre 6 de outubro (quando o surto foi decretado) e 19 de dezembro, 5.328 casos confirmados ou suspeitos da doença foram notificados em todo o país e 23 pessoas morreram, segundo dados oficiais do Ministério da Saúde libanês.

Casos confirmados ou suspeitos foram notificados em quase todo o país, mas as regiões mais afetadas ainda estão no norte e a nordeste, áreas empobrecidas próximas a fronteira com a Síria. Em certa altura da segunda quinzena de outubro, momento com maior número de casos diários, cerca de 400 pacientes com sintomas de cólera chegavam por dia em hospitais do norte, enquanto moradores de comunidades sem acesso regular a energia e água potável precisavam optar entre beber água contaminada ou morrer de sede.

“Todo mundo vai pegar cólera”, afirmou Marwa Khaled, de 35 anos, mãe de seis e moradora de Bebnine, no norte do país. Em entrevista à France-Presse no começo de novembro, ela afirmou saber que a água que sua família bebia tinha contaminado um de seus filhos, de 16 anos, mas que não tinha dinheiro para comprar água engarrafada. “As pessoas sabem, mas não têm escolha”, acrescentou.

Campanha de vacinação contra o cólera no norte do Líbano  Foto: WAEL HAMZEH/EFE

Ponta do iceberg

No mesmo mês em que a cólera se espalhava, o país se entrava em um novo impasse político. Com o fim do mandato do presidente Michel Aoun em outubro, o Parlamento extremamente dividido do país não conseguiu eleger um sucessor até o momento. Após reiteradas votações sem consenso, cada vez mais deputados passaram a votar em branco ou em protesto, indicando votos em personalidades como Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul, ou Salvador Allende, ex-líder do Chile.

A paralisia política, que muitos atribuem a disputas envolvendo o Hezbollah (considerado em alguns países como patrocinador de grupos terroristas), tem afetado a capacidade do país de conseguir algum desafogo econômico no exterior. Uma prometida reforma com auxílio do Fundo Monetário Internacional está travada, enquanto países do Golfo como a Arábia Saudita, que por anos foi uma das principais parcerias econômicas de Beirute, guarda rancor pelo apoio do Hezbollah aos rebeldes Houthis do Iêmen, que combateram a coalizão saudita que interveio no país.

Todo mundo vai pegar cólera. As pessoas sabem disso, mas não têm escolha

Marwa Khaled, moradora de Bebnine, no Líbano

A cólera é causada pela bactéria Vibrio cholerae, que se instala no intestino do paciente infectado. A forma grave da doença pode causar diarreia, vômito, dor abdominal e cãibras, podendo matar por desidratação. Como o contágio normalmente ocorre pelo contato direto ou indireto ― por água ou alimentos contaminados ― com as fezes do paciente infectado, a doença está diretamente associada à falta de saneamento básico e de água tratada, infraestrutura básica que está comprometida em grande parte do Líbano e sem perspectivas de grandes investimentos.

“O Líbano está sofrendo com uma grande crise política e econômica desde pelo menos 2019 e toda a infraestrutura do país foi pesadamente afetada por ela. A [crise de] cólera não é apenas um problema médico, ela é apenas o componente médico no topo do iceberg”, afirmou Marcelo Fernandez, chefe da missão da Médicos Sem Fronteiras no país.

Campo de refugiados sírios ao norte de Beirute: más condições de higiene facilitam disseminação da doença  Foto: Bilal Hussein /AP

Ressurgimento da doença

Embora não haja um estudo científico que comprove a relação direta, autoridades admitem que o surto de cólera no Líbano está relacionado ao surto identificado meses antes na Síria. Além dos primeiros casos terem surgido próximo da fronteira, estimativas oficiais apontam que cerca de 1,5 milhão de refugiados da guerra na Síria estão no Líbano em abrigos ou possuem o direito de transitar entre os países.

Apesar do provável vínculo, fontes ouvidas pelo Estadão apontam que a crise de cólera especificamente não elevou a tensão entre cidadãos libaneses e refugiados sírios.

“Obviamente, no começo da emergência de saúde, algumas pessoas tentaram fazer uma manipulação do surto para uso político, mas as pessoas não são estúpidas. Elas sabem que não têm acesso a água tratada e saneamento básico próprio ― e que sem isso, o problema vai permanecer”, disse Fernandez, após afirmar que apontar para a relação entre os refugiados e a crise de saúde sem evidência científica é uma “saída fácil”.

A cólera não tem relação com a crise de refugiados. A cólera tem a ver com a falta de água tratada e saneamento no país.

Marcelo Fernandez, chefe da delegação da Médicos Sem Fronteiras no Líbano

Preparando médicos e pacientes

Diante do principal problema, a falta de infraestrutura, que ameaçava um avanço descontrolado da doença pelo país, a capacidade de atender os pacientes infectados se tornou uma preocupação imediata não apenas pelo número de leitos hospitalares disponíveis.

“A primeira preocupação foi com o fato das pessoas, incluindo as autoridades de saúde, não saberem mais lidar com a cólera. Muitas das pessoas que tiveram experiência com essa doença, há 30 anos, deixaram o país. Vinte e cinco por cento dos médicos e enfermeiros deixaram o Líbano nos últimos dois anos. Não se sabia lidar com o problema, não havia protocolos”, relembrou Simone Casabianca-Aeschlimann, chefe da delegação da Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) no Líbano.

Sem expertise, uma estratégia precisou ser elaborada do zero. Com o auxílio de organizações internacionais, agências da ONU e de organizações da sociedade civil, autoridades de saúde libanesas conseguiram aplicar 600 mil doses de vacina contra a cólera na população ― número particularmente expressivo considerando uma população de cerca de 6,7 milhões de habitantes, mais aproximadamente 1,5 milhão de refugiados sírios, alguns dos quais circulam entre os dois lados da fronteira.

“A comunidade foi muito importante para diminuir a crise. Eles são muito participativos e a taxa de vacinação foi muito alta, muito maior que a da covid, por exemplo”, afirmou Simone, acrescentando ainda que o nível de compromisso das autoridades envolvidas na crise do cólera era “altíssimo”, mesmo com os órgãos funcionando de maneira transitória, até o fim do impasse político.

O trabalho também teve outras frentes, o CICV e a MSF, por exemplo, auxiliaram o trabalho em ao menos dois grandes hospitais no norte do país. A Cruz Vermelha libanesa atuou diretamente em campanhas educativas para prevenir a população do contágio e aumentar a taxa de adesão à vacinação ― que, segundo as autoridades, tem sido maior porcentualmente que a do covid. O CICV também investiu em estações de tratamento de água para garantir que a população, principalmente as comunidades mais vulneráveis, não continuassem expostas a doença.

O trabalho alcançou resultados. O nível de infecções diárias diminuiu vertiginosamente e, segundo os dados oficiais, nenhum caso confirmado ou suspeito foi registrado entre 18 e 19 de dezembro.

A vacinação é a maneira mais eficaz de combater a doença, que pode levar à morte  Foto: WAEL HAMZEH/ EFE

Risco de endemia

Embora a situação pareça controlada, as autoridades temem que os avanços possam fazer com que a população baixe a guarda para a ameaça e os casos voltem a crescer. A aproximação do inverno também é um risco particular, principalmente considerando a falta de infraestrutura e a quantidade de chuvas na estação.

“Estamos entrando no inverno, que tem muita chuva. Com essa chuva, os estabelecimentos de água, tanto limpa quanto suja, vão transbordar, e essa água suja vai se espalhar por todo lado”, disse Simone.

Outro risco é que, com a neve e com o frio nas regiões de montanha, as pessoas mais vulneráveis não tenham condição de alugar um carro ou pegar um táxi para ir até o hospital, por causa da crise econômica, e mais casos graves apareçam”, disse Simone.

Outra preocupação é quanto ao financiamento dos projetos internacionais no país. Segundo a representante da CICV, tanto o aparecimento de crises humanitárias com mais visibilidade que o Líbano, como os casos de Afeganistão, Ucrânia e a região do Tigré, na Etiópia, quanto o entorno político da crise no país afasta doadores, o que pode comprometer o fornecimento de água tratada e a vacinação.

“No Líbano, você dorme com uma situação e acorda com outra. Não quero diminuir a importância da situação com a cólera, mas ela é apenas um elemento a mais, uma variável com a qual temos que lidar”/ Com AFP e AP

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