Mercado de cocaína enfrenta crise histórica na Colômbia e oferece rara oportunidade contra o tráfico


Em algumas regiões do país, agricultores não conseguem vender pasta de coca e estão armazenando produto

Por Luciana Dyniewicz
Atualização:

ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ - Andrés Gómez (nome fictício) tem dois irmãos, de um total de seis, que concluíram a faculdade. “Eles se formaram graças à coca”, diz. Filho de um produtor rural que sempre se opôs ao cultivo da planta e nunca a permitiu em suas terras, Gomez passou a plantá-la assim que a coca chegou a sua cidade*, na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, quase na divisa com a Venezuela.

“As condições de vida aqui eram muito difíceis antes (da chegada da planta) e a coca era muito rentável. Havia compra garantida”, conta Gómez, que, em 2004, cortou toda sua plantação de café para dar espaço à coca e, assim, nos anos seguintes, garantiu o sustento da família – e o estudo de parte dos irmãos.

Passados quase 20 anos, Gómez está fazendo o caminho inverso e usando o espaço em que vinha cultivando coca para plantar café, tomate e feijão, além de manter quatro vacas para a produção de leite. A mudança não é fruto de nenhuma política pública, mas de uma crise no mercado colombiano de coca iniciada há dois anos e que se espalhou de maneira disforme por quase todo o país nos últimos 12 meses.

continua após a publicidade

A crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, apenas os pequenos agricultores, segundo pesquisadores, que ainda tentam entender o que está acontecendo. Há uma preocupação com o risco de esses produtores ficarem mais vulneráveis aos cartéis e também sofrerem de insegurança alimentar. Por outro lado, os pesquisadores apontam que este seria o momento ideal para o governo adotar políticas de substituição de cultivo, o que, dizem, não está ocorrendo na velocidade adequada.

O grama da pasta de cocaína – que chegava a ser vendido por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021 – hoje está em 2.000 pesos (R$ 2,45), de acordo com José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Maconha da Colômbia (um grupo criado para participar das negociações de paz com o governo do país). Ao mesmo tempo, o custo de produção subiu, com o preço do fertilizante tendo mais que dobrado.

continua após a publicidade

O valor de venda da pasta de coca que Orozco cita é o registrado hoje na província de Cauca, no sul do país. Em Santander, no norte, onde fica a região de Catatumbo e onde vive Gómez, nem por 2.000 pesos se consegue comercializar a pasta. “Tenho duas colheitas acumuladas (o equivalente a quatro meses de cultivo), mas não consigo vender”, diz o produtor. Gómez conta que os compradores da pasta não têm ido mais até os agricultores e que, para vender algo, ainda que a preços baixos, é preciso se deslocar à cidade – o que ele considera muito arriscado por causa da vigilância policial.

Produção de coca em Cauca, um dos departamentos mais afetados pela crise  Foto: Jaime Saldarriaga / REUTERS

Segundo pesquisadores, diferentes hipóteses podem explicar a crise. Para Lucas Marín LLanes, da Universidad de los Andes, uma sobreoferta pode ser um dos motivos. “A produção está em níveis recordes, e o mercado é estável”, diz.

continua após a publicidade

No ano passado, a área de produção da planta no país cresceu 13% e chegou a 230 mil hectares – o número mais alto desde 2001, quando o monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) foi iniciado. Também em 2022, a produção de cocaína na Colômbia, o maior produtor da droga no mundo, aumentou, de 1.400 toneladas para 1.738 toneladas.

A pesquisadora Ana María Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, também destaca que a produção de coca foi recorde no ano passado, mas lembra que esse mercado não é regido pela oferta e pela demanda, dado que os cartéis têm poder de fixar os preços. “Os narcotraficantes têm muita cocaína guardada e especulam os preços. Não conseguimos entender bem como isso funciona. Em algumas regiões da Colômbia, o preço da folha é metade que em outras”, diz Rueda. “O que temos claro é que estamos passando por uma mudança na dinâmica do narcotráfico”, acrescenta.

Como o acordo com as Farc mudou o tráfico na Colômbia

continua após a publicidade

Um estudioso do assunto que pediu para não ter o nome revelado por estar realizando pesquisas de campo explica que, antes da crise, os compradores de coca passavam nas zonas rurais para adquirir o produto. Em muitos casos, eles podiam não fazer parte dos cartéis, apenas revendiam a mercadoria, mas obrigatoriamente precisavam de autorização das guerrilhas para atuar no território. A esses grupos armados, pagavam propina. Em regiões como a de Catatumbo, esses revendedores estão agora proibidos de operar. Por quê? Os pesquisadores ainda não sabem explicar.

Uma hipótese é que, após o acordo de paz entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinado em 2016, outros grupos armados cresceram e passaram a disputar o controle de territórios que antes eram dominados pelas Farc. “Hoje temos um país com um cenário parecido ao dos anos 90, em que há vários grupos armados. Não tem mais um ou dois grupos, mas uns dez brigando entre eles. Com a disputa das guerrilhas pelos territórios, os cartéis ficam diante de um cenário de instabilidade”, diz Rueda.

A pesquisadora explica que, antes, as Farc sabiam (e autorizavam) quem plantava a coca, quem a revendia e por quanto. “O produtor tinha muita segurança para plantar. Ele inclusive recebia dinheiro para acabar com uma produção de café, por exemplo, e substituí-la por coca. Hoje, mudou essa intermediação. Ele não sabe mais para quem vai vender.” Segundo ela, há produtores com receio de vender para um “atravessador” e acabar se tornando vítima de outro, além de os pagamentos passarem a ser parcelados – o que não ocorria antes.

continua após a publicidade
Cultivo de coca em Tumaco, sul da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez / REUTERS

Rueda afirma que esse novo panorama pode estar levando os cartéis a comprarem a pasta de coca de outros países, como o Peru e a Bolívia, onde o mercado está mais organizado. Produções em países como Venezuela, Equador e Honduras também têm avançado.

Outra hipótese que chegou a ser cogitada nos últimos meses (e considerada pelo governo colombiano) seria a possibilidade de, em alguns mercados como o americano e o europeu, os usuários de cocaína estarem a trocando por fentanil, um opioide sintético mais potente que a heroína. Com a queda da demanda, o preço da coca teria caído. Os pesquisadores colombianos, no entanto, rejeitam essa hipótese.

continua após a publicidade

“Ela não tem sentido. A experiência que um consumidor busca com uma droga é muito diferente da outra. O mercado global de cocaína é estável em cerca de 22 milhões de pessoas”, afirma Marín LLanes, da Universidad de los Andes.

Os pesquisadores destacam que a crise tem sido muito distinta em diferentes regiões colombianas. O departamento de Antioquia, que tem Medellín como capital e que é dominado pelo Clã do Golfo, é um dos poucos onde os preços não caíram e o tráfico continua funcionando normalmente.

Em territórios onde a Frente 33 (uma dissidência das Farc) está se consolidando, o comércio da pasta de coca não está tão paralisado como nos dominados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo que está em discussão de paz com o governo colombiano. Nesse caso, a hipótese é que o grupo, apesar de negar envolvimento no tráfico, tenha paralisado as operações durante as negociações.

A situação dos agricultores também é distinta de acordo com o local onde moram. Enquanto em algumas cidades mais afastadas, o comércio de coca está totalmente parado, em outras, como Tibu, em Santander, a cidade com maior área de coca plantada no país, os produtores têm trocado a pasta por alimentos nos mercados.

Gómez, o agricultor de Catatumbo, diz que sua situação financeira está longe da que que tinha no auge da coca. “Com a coca, você vê o dinheiro entrar a cada dois meses. Agora, a gente vai ganhando uns trocados a cada dia e resolvendo os problemas.”

A crise e o PCC

Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, afirma que ainda falta muita pesquisa para entender os detalhes da crise da coca na Colômbia. “Ninguém está investigando em profundidade. O governo não tem ideia do que está acontecendo. Estão apenas sabendo da questão de modo geral.” Ela acrescenta que a Colômbia segue tendo seu papel central no mercado internacional da cocaína, mas que, no país, não há informações de como Brasil, Chile ou Paraguai podem ser afetados por essa reorganização interna do tráfico. “Aparentemente, há uma mudanças nas rotas.”

O brasileiro Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Sciences Po, na França, trabalha com a hipótese de que a crise na Colômbia possa fortalecer grupos criminosos com forte atuação internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque, em um momento em que há entraves na distribuição da droga, um grupo que se destaca por seu trabalho logístico pode substituir intermediários locais.

“Grupos globais com foco na logística estão concentrando o poder. Os atores locais ficam vendidos e se conectam aos internacionais para aumentar a produção. As organizações que conseguem se modernizar montam essa cadeia de distribuição”, diz.

Feltran afirma que, nessa reorganização do tráfico, produtores da folha e da pasta de coca e vendedores da droga final são os elos cada vez mais fracos da cadeia, enquanto os poucos grupos responsáveis pela logística internacional, os fortes. “É como uma ampulheta. Os atores do meio serão extremamente relevantes para as duas pontas, e o poder vai se concentrar aí.”

*O nome da cidade foi omitido por questões de segurança

ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ - Andrés Gómez (nome fictício) tem dois irmãos, de um total de seis, que concluíram a faculdade. “Eles se formaram graças à coca”, diz. Filho de um produtor rural que sempre se opôs ao cultivo da planta e nunca a permitiu em suas terras, Gomez passou a plantá-la assim que a coca chegou a sua cidade*, na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, quase na divisa com a Venezuela.

“As condições de vida aqui eram muito difíceis antes (da chegada da planta) e a coca era muito rentável. Havia compra garantida”, conta Gómez, que, em 2004, cortou toda sua plantação de café para dar espaço à coca e, assim, nos anos seguintes, garantiu o sustento da família – e o estudo de parte dos irmãos.

Passados quase 20 anos, Gómez está fazendo o caminho inverso e usando o espaço em que vinha cultivando coca para plantar café, tomate e feijão, além de manter quatro vacas para a produção de leite. A mudança não é fruto de nenhuma política pública, mas de uma crise no mercado colombiano de coca iniciada há dois anos e que se espalhou de maneira disforme por quase todo o país nos últimos 12 meses.

A crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, apenas os pequenos agricultores, segundo pesquisadores, que ainda tentam entender o que está acontecendo. Há uma preocupação com o risco de esses produtores ficarem mais vulneráveis aos cartéis e também sofrerem de insegurança alimentar. Por outro lado, os pesquisadores apontam que este seria o momento ideal para o governo adotar políticas de substituição de cultivo, o que, dizem, não está ocorrendo na velocidade adequada.

O grama da pasta de cocaína – que chegava a ser vendido por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021 – hoje está em 2.000 pesos (R$ 2,45), de acordo com José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Maconha da Colômbia (um grupo criado para participar das negociações de paz com o governo do país). Ao mesmo tempo, o custo de produção subiu, com o preço do fertilizante tendo mais que dobrado.

O valor de venda da pasta de coca que Orozco cita é o registrado hoje na província de Cauca, no sul do país. Em Santander, no norte, onde fica a região de Catatumbo e onde vive Gómez, nem por 2.000 pesos se consegue comercializar a pasta. “Tenho duas colheitas acumuladas (o equivalente a quatro meses de cultivo), mas não consigo vender”, diz o produtor. Gómez conta que os compradores da pasta não têm ido mais até os agricultores e que, para vender algo, ainda que a preços baixos, é preciso se deslocar à cidade – o que ele considera muito arriscado por causa da vigilância policial.

Produção de coca em Cauca, um dos departamentos mais afetados pela crise  Foto: Jaime Saldarriaga / REUTERS

Segundo pesquisadores, diferentes hipóteses podem explicar a crise. Para Lucas Marín LLanes, da Universidad de los Andes, uma sobreoferta pode ser um dos motivos. “A produção está em níveis recordes, e o mercado é estável”, diz.

No ano passado, a área de produção da planta no país cresceu 13% e chegou a 230 mil hectares – o número mais alto desde 2001, quando o monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) foi iniciado. Também em 2022, a produção de cocaína na Colômbia, o maior produtor da droga no mundo, aumentou, de 1.400 toneladas para 1.738 toneladas.

A pesquisadora Ana María Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, também destaca que a produção de coca foi recorde no ano passado, mas lembra que esse mercado não é regido pela oferta e pela demanda, dado que os cartéis têm poder de fixar os preços. “Os narcotraficantes têm muita cocaína guardada e especulam os preços. Não conseguimos entender bem como isso funciona. Em algumas regiões da Colômbia, o preço da folha é metade que em outras”, diz Rueda. “O que temos claro é que estamos passando por uma mudança na dinâmica do narcotráfico”, acrescenta.

Como o acordo com as Farc mudou o tráfico na Colômbia

Um estudioso do assunto que pediu para não ter o nome revelado por estar realizando pesquisas de campo explica que, antes da crise, os compradores de coca passavam nas zonas rurais para adquirir o produto. Em muitos casos, eles podiam não fazer parte dos cartéis, apenas revendiam a mercadoria, mas obrigatoriamente precisavam de autorização das guerrilhas para atuar no território. A esses grupos armados, pagavam propina. Em regiões como a de Catatumbo, esses revendedores estão agora proibidos de operar. Por quê? Os pesquisadores ainda não sabem explicar.

Uma hipótese é que, após o acordo de paz entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinado em 2016, outros grupos armados cresceram e passaram a disputar o controle de territórios que antes eram dominados pelas Farc. “Hoje temos um país com um cenário parecido ao dos anos 90, em que há vários grupos armados. Não tem mais um ou dois grupos, mas uns dez brigando entre eles. Com a disputa das guerrilhas pelos territórios, os cartéis ficam diante de um cenário de instabilidade”, diz Rueda.

A pesquisadora explica que, antes, as Farc sabiam (e autorizavam) quem plantava a coca, quem a revendia e por quanto. “O produtor tinha muita segurança para plantar. Ele inclusive recebia dinheiro para acabar com uma produção de café, por exemplo, e substituí-la por coca. Hoje, mudou essa intermediação. Ele não sabe mais para quem vai vender.” Segundo ela, há produtores com receio de vender para um “atravessador” e acabar se tornando vítima de outro, além de os pagamentos passarem a ser parcelados – o que não ocorria antes.

Cultivo de coca em Tumaco, sul da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez / REUTERS

Rueda afirma que esse novo panorama pode estar levando os cartéis a comprarem a pasta de coca de outros países, como o Peru e a Bolívia, onde o mercado está mais organizado. Produções em países como Venezuela, Equador e Honduras também têm avançado.

Outra hipótese que chegou a ser cogitada nos últimos meses (e considerada pelo governo colombiano) seria a possibilidade de, em alguns mercados como o americano e o europeu, os usuários de cocaína estarem a trocando por fentanil, um opioide sintético mais potente que a heroína. Com a queda da demanda, o preço da coca teria caído. Os pesquisadores colombianos, no entanto, rejeitam essa hipótese.

“Ela não tem sentido. A experiência que um consumidor busca com uma droga é muito diferente da outra. O mercado global de cocaína é estável em cerca de 22 milhões de pessoas”, afirma Marín LLanes, da Universidad de los Andes.

Os pesquisadores destacam que a crise tem sido muito distinta em diferentes regiões colombianas. O departamento de Antioquia, que tem Medellín como capital e que é dominado pelo Clã do Golfo, é um dos poucos onde os preços não caíram e o tráfico continua funcionando normalmente.

Em territórios onde a Frente 33 (uma dissidência das Farc) está se consolidando, o comércio da pasta de coca não está tão paralisado como nos dominados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo que está em discussão de paz com o governo colombiano. Nesse caso, a hipótese é que o grupo, apesar de negar envolvimento no tráfico, tenha paralisado as operações durante as negociações.

A situação dos agricultores também é distinta de acordo com o local onde moram. Enquanto em algumas cidades mais afastadas, o comércio de coca está totalmente parado, em outras, como Tibu, em Santander, a cidade com maior área de coca plantada no país, os produtores têm trocado a pasta por alimentos nos mercados.

Gómez, o agricultor de Catatumbo, diz que sua situação financeira está longe da que que tinha no auge da coca. “Com a coca, você vê o dinheiro entrar a cada dois meses. Agora, a gente vai ganhando uns trocados a cada dia e resolvendo os problemas.”

A crise e o PCC

Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, afirma que ainda falta muita pesquisa para entender os detalhes da crise da coca na Colômbia. “Ninguém está investigando em profundidade. O governo não tem ideia do que está acontecendo. Estão apenas sabendo da questão de modo geral.” Ela acrescenta que a Colômbia segue tendo seu papel central no mercado internacional da cocaína, mas que, no país, não há informações de como Brasil, Chile ou Paraguai podem ser afetados por essa reorganização interna do tráfico. “Aparentemente, há uma mudanças nas rotas.”

O brasileiro Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Sciences Po, na França, trabalha com a hipótese de que a crise na Colômbia possa fortalecer grupos criminosos com forte atuação internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque, em um momento em que há entraves na distribuição da droga, um grupo que se destaca por seu trabalho logístico pode substituir intermediários locais.

“Grupos globais com foco na logística estão concentrando o poder. Os atores locais ficam vendidos e se conectam aos internacionais para aumentar a produção. As organizações que conseguem se modernizar montam essa cadeia de distribuição”, diz.

Feltran afirma que, nessa reorganização do tráfico, produtores da folha e da pasta de coca e vendedores da droga final são os elos cada vez mais fracos da cadeia, enquanto os poucos grupos responsáveis pela logística internacional, os fortes. “É como uma ampulheta. Os atores do meio serão extremamente relevantes para as duas pontas, e o poder vai se concentrar aí.”

*O nome da cidade foi omitido por questões de segurança

ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ - Andrés Gómez (nome fictício) tem dois irmãos, de um total de seis, que concluíram a faculdade. “Eles se formaram graças à coca”, diz. Filho de um produtor rural que sempre se opôs ao cultivo da planta e nunca a permitiu em suas terras, Gomez passou a plantá-la assim que a coca chegou a sua cidade*, na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, quase na divisa com a Venezuela.

“As condições de vida aqui eram muito difíceis antes (da chegada da planta) e a coca era muito rentável. Havia compra garantida”, conta Gómez, que, em 2004, cortou toda sua plantação de café para dar espaço à coca e, assim, nos anos seguintes, garantiu o sustento da família – e o estudo de parte dos irmãos.

Passados quase 20 anos, Gómez está fazendo o caminho inverso e usando o espaço em que vinha cultivando coca para plantar café, tomate e feijão, além de manter quatro vacas para a produção de leite. A mudança não é fruto de nenhuma política pública, mas de uma crise no mercado colombiano de coca iniciada há dois anos e que se espalhou de maneira disforme por quase todo o país nos últimos 12 meses.

A crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, apenas os pequenos agricultores, segundo pesquisadores, que ainda tentam entender o que está acontecendo. Há uma preocupação com o risco de esses produtores ficarem mais vulneráveis aos cartéis e também sofrerem de insegurança alimentar. Por outro lado, os pesquisadores apontam que este seria o momento ideal para o governo adotar políticas de substituição de cultivo, o que, dizem, não está ocorrendo na velocidade adequada.

O grama da pasta de cocaína – que chegava a ser vendido por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021 – hoje está em 2.000 pesos (R$ 2,45), de acordo com José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Maconha da Colômbia (um grupo criado para participar das negociações de paz com o governo do país). Ao mesmo tempo, o custo de produção subiu, com o preço do fertilizante tendo mais que dobrado.

O valor de venda da pasta de coca que Orozco cita é o registrado hoje na província de Cauca, no sul do país. Em Santander, no norte, onde fica a região de Catatumbo e onde vive Gómez, nem por 2.000 pesos se consegue comercializar a pasta. “Tenho duas colheitas acumuladas (o equivalente a quatro meses de cultivo), mas não consigo vender”, diz o produtor. Gómez conta que os compradores da pasta não têm ido mais até os agricultores e que, para vender algo, ainda que a preços baixos, é preciso se deslocar à cidade – o que ele considera muito arriscado por causa da vigilância policial.

Produção de coca em Cauca, um dos departamentos mais afetados pela crise  Foto: Jaime Saldarriaga / REUTERS

Segundo pesquisadores, diferentes hipóteses podem explicar a crise. Para Lucas Marín LLanes, da Universidad de los Andes, uma sobreoferta pode ser um dos motivos. “A produção está em níveis recordes, e o mercado é estável”, diz.

No ano passado, a área de produção da planta no país cresceu 13% e chegou a 230 mil hectares – o número mais alto desde 2001, quando o monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) foi iniciado. Também em 2022, a produção de cocaína na Colômbia, o maior produtor da droga no mundo, aumentou, de 1.400 toneladas para 1.738 toneladas.

A pesquisadora Ana María Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, também destaca que a produção de coca foi recorde no ano passado, mas lembra que esse mercado não é regido pela oferta e pela demanda, dado que os cartéis têm poder de fixar os preços. “Os narcotraficantes têm muita cocaína guardada e especulam os preços. Não conseguimos entender bem como isso funciona. Em algumas regiões da Colômbia, o preço da folha é metade que em outras”, diz Rueda. “O que temos claro é que estamos passando por uma mudança na dinâmica do narcotráfico”, acrescenta.

Como o acordo com as Farc mudou o tráfico na Colômbia

Um estudioso do assunto que pediu para não ter o nome revelado por estar realizando pesquisas de campo explica que, antes da crise, os compradores de coca passavam nas zonas rurais para adquirir o produto. Em muitos casos, eles podiam não fazer parte dos cartéis, apenas revendiam a mercadoria, mas obrigatoriamente precisavam de autorização das guerrilhas para atuar no território. A esses grupos armados, pagavam propina. Em regiões como a de Catatumbo, esses revendedores estão agora proibidos de operar. Por quê? Os pesquisadores ainda não sabem explicar.

Uma hipótese é que, após o acordo de paz entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinado em 2016, outros grupos armados cresceram e passaram a disputar o controle de territórios que antes eram dominados pelas Farc. “Hoje temos um país com um cenário parecido ao dos anos 90, em que há vários grupos armados. Não tem mais um ou dois grupos, mas uns dez brigando entre eles. Com a disputa das guerrilhas pelos territórios, os cartéis ficam diante de um cenário de instabilidade”, diz Rueda.

A pesquisadora explica que, antes, as Farc sabiam (e autorizavam) quem plantava a coca, quem a revendia e por quanto. “O produtor tinha muita segurança para plantar. Ele inclusive recebia dinheiro para acabar com uma produção de café, por exemplo, e substituí-la por coca. Hoje, mudou essa intermediação. Ele não sabe mais para quem vai vender.” Segundo ela, há produtores com receio de vender para um “atravessador” e acabar se tornando vítima de outro, além de os pagamentos passarem a ser parcelados – o que não ocorria antes.

Cultivo de coca em Tumaco, sul da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez / REUTERS

Rueda afirma que esse novo panorama pode estar levando os cartéis a comprarem a pasta de coca de outros países, como o Peru e a Bolívia, onde o mercado está mais organizado. Produções em países como Venezuela, Equador e Honduras também têm avançado.

Outra hipótese que chegou a ser cogitada nos últimos meses (e considerada pelo governo colombiano) seria a possibilidade de, em alguns mercados como o americano e o europeu, os usuários de cocaína estarem a trocando por fentanil, um opioide sintético mais potente que a heroína. Com a queda da demanda, o preço da coca teria caído. Os pesquisadores colombianos, no entanto, rejeitam essa hipótese.

“Ela não tem sentido. A experiência que um consumidor busca com uma droga é muito diferente da outra. O mercado global de cocaína é estável em cerca de 22 milhões de pessoas”, afirma Marín LLanes, da Universidad de los Andes.

Os pesquisadores destacam que a crise tem sido muito distinta em diferentes regiões colombianas. O departamento de Antioquia, que tem Medellín como capital e que é dominado pelo Clã do Golfo, é um dos poucos onde os preços não caíram e o tráfico continua funcionando normalmente.

Em territórios onde a Frente 33 (uma dissidência das Farc) está se consolidando, o comércio da pasta de coca não está tão paralisado como nos dominados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo que está em discussão de paz com o governo colombiano. Nesse caso, a hipótese é que o grupo, apesar de negar envolvimento no tráfico, tenha paralisado as operações durante as negociações.

A situação dos agricultores também é distinta de acordo com o local onde moram. Enquanto em algumas cidades mais afastadas, o comércio de coca está totalmente parado, em outras, como Tibu, em Santander, a cidade com maior área de coca plantada no país, os produtores têm trocado a pasta por alimentos nos mercados.

Gómez, o agricultor de Catatumbo, diz que sua situação financeira está longe da que que tinha no auge da coca. “Com a coca, você vê o dinheiro entrar a cada dois meses. Agora, a gente vai ganhando uns trocados a cada dia e resolvendo os problemas.”

A crise e o PCC

Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, afirma que ainda falta muita pesquisa para entender os detalhes da crise da coca na Colômbia. “Ninguém está investigando em profundidade. O governo não tem ideia do que está acontecendo. Estão apenas sabendo da questão de modo geral.” Ela acrescenta que a Colômbia segue tendo seu papel central no mercado internacional da cocaína, mas que, no país, não há informações de como Brasil, Chile ou Paraguai podem ser afetados por essa reorganização interna do tráfico. “Aparentemente, há uma mudanças nas rotas.”

O brasileiro Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Sciences Po, na França, trabalha com a hipótese de que a crise na Colômbia possa fortalecer grupos criminosos com forte atuação internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque, em um momento em que há entraves na distribuição da droga, um grupo que se destaca por seu trabalho logístico pode substituir intermediários locais.

“Grupos globais com foco na logística estão concentrando o poder. Os atores locais ficam vendidos e se conectam aos internacionais para aumentar a produção. As organizações que conseguem se modernizar montam essa cadeia de distribuição”, diz.

Feltran afirma que, nessa reorganização do tráfico, produtores da folha e da pasta de coca e vendedores da droga final são os elos cada vez mais fracos da cadeia, enquanto os poucos grupos responsáveis pela logística internacional, os fortes. “É como uma ampulheta. Os atores do meio serão extremamente relevantes para as duas pontas, e o poder vai se concentrar aí.”

*O nome da cidade foi omitido por questões de segurança

ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ - Andrés Gómez (nome fictício) tem dois irmãos, de um total de seis, que concluíram a faculdade. “Eles se formaram graças à coca”, diz. Filho de um produtor rural que sempre se opôs ao cultivo da planta e nunca a permitiu em suas terras, Gomez passou a plantá-la assim que a coca chegou a sua cidade*, na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, quase na divisa com a Venezuela.

“As condições de vida aqui eram muito difíceis antes (da chegada da planta) e a coca era muito rentável. Havia compra garantida”, conta Gómez, que, em 2004, cortou toda sua plantação de café para dar espaço à coca e, assim, nos anos seguintes, garantiu o sustento da família – e o estudo de parte dos irmãos.

Passados quase 20 anos, Gómez está fazendo o caminho inverso e usando o espaço em que vinha cultivando coca para plantar café, tomate e feijão, além de manter quatro vacas para a produção de leite. A mudança não é fruto de nenhuma política pública, mas de uma crise no mercado colombiano de coca iniciada há dois anos e que se espalhou de maneira disforme por quase todo o país nos últimos 12 meses.

A crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, apenas os pequenos agricultores, segundo pesquisadores, que ainda tentam entender o que está acontecendo. Há uma preocupação com o risco de esses produtores ficarem mais vulneráveis aos cartéis e também sofrerem de insegurança alimentar. Por outro lado, os pesquisadores apontam que este seria o momento ideal para o governo adotar políticas de substituição de cultivo, o que, dizem, não está ocorrendo na velocidade adequada.

O grama da pasta de cocaína – que chegava a ser vendido por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021 – hoje está em 2.000 pesos (R$ 2,45), de acordo com José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Maconha da Colômbia (um grupo criado para participar das negociações de paz com o governo do país). Ao mesmo tempo, o custo de produção subiu, com o preço do fertilizante tendo mais que dobrado.

O valor de venda da pasta de coca que Orozco cita é o registrado hoje na província de Cauca, no sul do país. Em Santander, no norte, onde fica a região de Catatumbo e onde vive Gómez, nem por 2.000 pesos se consegue comercializar a pasta. “Tenho duas colheitas acumuladas (o equivalente a quatro meses de cultivo), mas não consigo vender”, diz o produtor. Gómez conta que os compradores da pasta não têm ido mais até os agricultores e que, para vender algo, ainda que a preços baixos, é preciso se deslocar à cidade – o que ele considera muito arriscado por causa da vigilância policial.

Produção de coca em Cauca, um dos departamentos mais afetados pela crise  Foto: Jaime Saldarriaga / REUTERS

Segundo pesquisadores, diferentes hipóteses podem explicar a crise. Para Lucas Marín LLanes, da Universidad de los Andes, uma sobreoferta pode ser um dos motivos. “A produção está em níveis recordes, e o mercado é estável”, diz.

No ano passado, a área de produção da planta no país cresceu 13% e chegou a 230 mil hectares – o número mais alto desde 2001, quando o monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) foi iniciado. Também em 2022, a produção de cocaína na Colômbia, o maior produtor da droga no mundo, aumentou, de 1.400 toneladas para 1.738 toneladas.

A pesquisadora Ana María Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, também destaca que a produção de coca foi recorde no ano passado, mas lembra que esse mercado não é regido pela oferta e pela demanda, dado que os cartéis têm poder de fixar os preços. “Os narcotraficantes têm muita cocaína guardada e especulam os preços. Não conseguimos entender bem como isso funciona. Em algumas regiões da Colômbia, o preço da folha é metade que em outras”, diz Rueda. “O que temos claro é que estamos passando por uma mudança na dinâmica do narcotráfico”, acrescenta.

Como o acordo com as Farc mudou o tráfico na Colômbia

Um estudioso do assunto que pediu para não ter o nome revelado por estar realizando pesquisas de campo explica que, antes da crise, os compradores de coca passavam nas zonas rurais para adquirir o produto. Em muitos casos, eles podiam não fazer parte dos cartéis, apenas revendiam a mercadoria, mas obrigatoriamente precisavam de autorização das guerrilhas para atuar no território. A esses grupos armados, pagavam propina. Em regiões como a de Catatumbo, esses revendedores estão agora proibidos de operar. Por quê? Os pesquisadores ainda não sabem explicar.

Uma hipótese é que, após o acordo de paz entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinado em 2016, outros grupos armados cresceram e passaram a disputar o controle de territórios que antes eram dominados pelas Farc. “Hoje temos um país com um cenário parecido ao dos anos 90, em que há vários grupos armados. Não tem mais um ou dois grupos, mas uns dez brigando entre eles. Com a disputa das guerrilhas pelos territórios, os cartéis ficam diante de um cenário de instabilidade”, diz Rueda.

A pesquisadora explica que, antes, as Farc sabiam (e autorizavam) quem plantava a coca, quem a revendia e por quanto. “O produtor tinha muita segurança para plantar. Ele inclusive recebia dinheiro para acabar com uma produção de café, por exemplo, e substituí-la por coca. Hoje, mudou essa intermediação. Ele não sabe mais para quem vai vender.” Segundo ela, há produtores com receio de vender para um “atravessador” e acabar se tornando vítima de outro, além de os pagamentos passarem a ser parcelados – o que não ocorria antes.

Cultivo de coca em Tumaco, sul da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez / REUTERS

Rueda afirma que esse novo panorama pode estar levando os cartéis a comprarem a pasta de coca de outros países, como o Peru e a Bolívia, onde o mercado está mais organizado. Produções em países como Venezuela, Equador e Honduras também têm avançado.

Outra hipótese que chegou a ser cogitada nos últimos meses (e considerada pelo governo colombiano) seria a possibilidade de, em alguns mercados como o americano e o europeu, os usuários de cocaína estarem a trocando por fentanil, um opioide sintético mais potente que a heroína. Com a queda da demanda, o preço da coca teria caído. Os pesquisadores colombianos, no entanto, rejeitam essa hipótese.

“Ela não tem sentido. A experiência que um consumidor busca com uma droga é muito diferente da outra. O mercado global de cocaína é estável em cerca de 22 milhões de pessoas”, afirma Marín LLanes, da Universidad de los Andes.

Os pesquisadores destacam que a crise tem sido muito distinta em diferentes regiões colombianas. O departamento de Antioquia, que tem Medellín como capital e que é dominado pelo Clã do Golfo, é um dos poucos onde os preços não caíram e o tráfico continua funcionando normalmente.

Em territórios onde a Frente 33 (uma dissidência das Farc) está se consolidando, o comércio da pasta de coca não está tão paralisado como nos dominados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo que está em discussão de paz com o governo colombiano. Nesse caso, a hipótese é que o grupo, apesar de negar envolvimento no tráfico, tenha paralisado as operações durante as negociações.

A situação dos agricultores também é distinta de acordo com o local onde moram. Enquanto em algumas cidades mais afastadas, o comércio de coca está totalmente parado, em outras, como Tibu, em Santander, a cidade com maior área de coca plantada no país, os produtores têm trocado a pasta por alimentos nos mercados.

Gómez, o agricultor de Catatumbo, diz que sua situação financeira está longe da que que tinha no auge da coca. “Com a coca, você vê o dinheiro entrar a cada dois meses. Agora, a gente vai ganhando uns trocados a cada dia e resolvendo os problemas.”

A crise e o PCC

Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, afirma que ainda falta muita pesquisa para entender os detalhes da crise da coca na Colômbia. “Ninguém está investigando em profundidade. O governo não tem ideia do que está acontecendo. Estão apenas sabendo da questão de modo geral.” Ela acrescenta que a Colômbia segue tendo seu papel central no mercado internacional da cocaína, mas que, no país, não há informações de como Brasil, Chile ou Paraguai podem ser afetados por essa reorganização interna do tráfico. “Aparentemente, há uma mudanças nas rotas.”

O brasileiro Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Sciences Po, na França, trabalha com a hipótese de que a crise na Colômbia possa fortalecer grupos criminosos com forte atuação internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque, em um momento em que há entraves na distribuição da droga, um grupo que se destaca por seu trabalho logístico pode substituir intermediários locais.

“Grupos globais com foco na logística estão concentrando o poder. Os atores locais ficam vendidos e se conectam aos internacionais para aumentar a produção. As organizações que conseguem se modernizar montam essa cadeia de distribuição”, diz.

Feltran afirma que, nessa reorganização do tráfico, produtores da folha e da pasta de coca e vendedores da droga final são os elos cada vez mais fracos da cadeia, enquanto os poucos grupos responsáveis pela logística internacional, os fortes. “É como uma ampulheta. Os atores do meio serão extremamente relevantes para as duas pontas, e o poder vai se concentrar aí.”

*O nome da cidade foi omitido por questões de segurança

ENVIADA ESPECIAL A BOGOTÁ - Andrés Gómez (nome fictício) tem dois irmãos, de um total de seis, que concluíram a faculdade. “Eles se formaram graças à coca”, diz. Filho de um produtor rural que sempre se opôs ao cultivo da planta e nunca a permitiu em suas terras, Gomez passou a plantá-la assim que a coca chegou a sua cidade*, na região de Catatumbo, no norte da Colômbia, quase na divisa com a Venezuela.

“As condições de vida aqui eram muito difíceis antes (da chegada da planta) e a coca era muito rentável. Havia compra garantida”, conta Gómez, que, em 2004, cortou toda sua plantação de café para dar espaço à coca e, assim, nos anos seguintes, garantiu o sustento da família – e o estudo de parte dos irmãos.

Passados quase 20 anos, Gómez está fazendo o caminho inverso e usando o espaço em que vinha cultivando coca para plantar café, tomate e feijão, além de manter quatro vacas para a produção de leite. A mudança não é fruto de nenhuma política pública, mas de uma crise no mercado colombiano de coca iniciada há dois anos e que se espalhou de maneira disforme por quase todo o país nos últimos 12 meses.

A crise parece não afetar cartéis nem grupos armados, apenas os pequenos agricultores, segundo pesquisadores, que ainda tentam entender o que está acontecendo. Há uma preocupação com o risco de esses produtores ficarem mais vulneráveis aos cartéis e também sofrerem de insegurança alimentar. Por outro lado, os pesquisadores apontam que este seria o momento ideal para o governo adotar políticas de substituição de cultivo, o que, dizem, não está ocorrendo na velocidade adequada.

O grama da pasta de cocaína – que chegava a ser vendido por 3.600 pesos (R$ 4,45), em média, em 2021 – hoje está em 2.000 pesos (R$ 2,45), de acordo com José William Orozco, porta-voz da Coordenação Nacional de Produtores de Coca, Papoula e Maconha da Colômbia (um grupo criado para participar das negociações de paz com o governo do país). Ao mesmo tempo, o custo de produção subiu, com o preço do fertilizante tendo mais que dobrado.

O valor de venda da pasta de coca que Orozco cita é o registrado hoje na província de Cauca, no sul do país. Em Santander, no norte, onde fica a região de Catatumbo e onde vive Gómez, nem por 2.000 pesos se consegue comercializar a pasta. “Tenho duas colheitas acumuladas (o equivalente a quatro meses de cultivo), mas não consigo vender”, diz o produtor. Gómez conta que os compradores da pasta não têm ido mais até os agricultores e que, para vender algo, ainda que a preços baixos, é preciso se deslocar à cidade – o que ele considera muito arriscado por causa da vigilância policial.

Produção de coca em Cauca, um dos departamentos mais afetados pela crise  Foto: Jaime Saldarriaga / REUTERS

Segundo pesquisadores, diferentes hipóteses podem explicar a crise. Para Lucas Marín LLanes, da Universidad de los Andes, uma sobreoferta pode ser um dos motivos. “A produção está em níveis recordes, e o mercado é estável”, diz.

No ano passado, a área de produção da planta no país cresceu 13% e chegou a 230 mil hectares – o número mais alto desde 2001, quando o monitoramento feito pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) foi iniciado. Também em 2022, a produção de cocaína na Colômbia, o maior produtor da droga no mundo, aumentou, de 1.400 toneladas para 1.738 toneladas.

A pesquisadora Ana María Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, também destaca que a produção de coca foi recorde no ano passado, mas lembra que esse mercado não é regido pela oferta e pela demanda, dado que os cartéis têm poder de fixar os preços. “Os narcotraficantes têm muita cocaína guardada e especulam os preços. Não conseguimos entender bem como isso funciona. Em algumas regiões da Colômbia, o preço da folha é metade que em outras”, diz Rueda. “O que temos claro é que estamos passando por uma mudança na dinâmica do narcotráfico”, acrescenta.

Como o acordo com as Farc mudou o tráfico na Colômbia

Um estudioso do assunto que pediu para não ter o nome revelado por estar realizando pesquisas de campo explica que, antes da crise, os compradores de coca passavam nas zonas rurais para adquirir o produto. Em muitos casos, eles podiam não fazer parte dos cartéis, apenas revendiam a mercadoria, mas obrigatoriamente precisavam de autorização das guerrilhas para atuar no território. A esses grupos armados, pagavam propina. Em regiões como a de Catatumbo, esses revendedores estão agora proibidos de operar. Por quê? Os pesquisadores ainda não sabem explicar.

Uma hipótese é que, após o acordo de paz entre o governo e as Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), assinado em 2016, outros grupos armados cresceram e passaram a disputar o controle de territórios que antes eram dominados pelas Farc. “Hoje temos um país com um cenário parecido ao dos anos 90, em que há vários grupos armados. Não tem mais um ou dois grupos, mas uns dez brigando entre eles. Com a disputa das guerrilhas pelos territórios, os cartéis ficam diante de um cenário de instabilidade”, diz Rueda.

A pesquisadora explica que, antes, as Farc sabiam (e autorizavam) quem plantava a coca, quem a revendia e por quanto. “O produtor tinha muita segurança para plantar. Ele inclusive recebia dinheiro para acabar com uma produção de café, por exemplo, e substituí-la por coca. Hoje, mudou essa intermediação. Ele não sabe mais para quem vai vender.” Segundo ela, há produtores com receio de vender para um “atravessador” e acabar se tornando vítima de outro, além de os pagamentos passarem a ser parcelados – o que não ocorria antes.

Cultivo de coca em Tumaco, sul da Colômbia Foto: Luisa Gonzalez / REUTERS

Rueda afirma que esse novo panorama pode estar levando os cartéis a comprarem a pasta de coca de outros países, como o Peru e a Bolívia, onde o mercado está mais organizado. Produções em países como Venezuela, Equador e Honduras também têm avançado.

Outra hipótese que chegou a ser cogitada nos últimos meses (e considerada pelo governo colombiano) seria a possibilidade de, em alguns mercados como o americano e o europeu, os usuários de cocaína estarem a trocando por fentanil, um opioide sintético mais potente que a heroína. Com a queda da demanda, o preço da coca teria caído. Os pesquisadores colombianos, no entanto, rejeitam essa hipótese.

“Ela não tem sentido. A experiência que um consumidor busca com uma droga é muito diferente da outra. O mercado global de cocaína é estável em cerca de 22 milhões de pessoas”, afirma Marín LLanes, da Universidad de los Andes.

Os pesquisadores destacam que a crise tem sido muito distinta em diferentes regiões colombianas. O departamento de Antioquia, que tem Medellín como capital e que é dominado pelo Clã do Golfo, é um dos poucos onde os preços não caíram e o tráfico continua funcionando normalmente.

Em territórios onde a Frente 33 (uma dissidência das Farc) está se consolidando, o comércio da pasta de coca não está tão paralisado como nos dominados pelo Exército de Libertação Nacional (ELN), grupo que está em discussão de paz com o governo colombiano. Nesse caso, a hipótese é que o grupo, apesar de negar envolvimento no tráfico, tenha paralisado as operações durante as negociações.

A situação dos agricultores também é distinta de acordo com o local onde moram. Enquanto em algumas cidades mais afastadas, o comércio de coca está totalmente parado, em outras, como Tibu, em Santander, a cidade com maior área de coca plantada no país, os produtores têm trocado a pasta por alimentos nos mercados.

Gómez, o agricultor de Catatumbo, diz que sua situação financeira está longe da que que tinha no auge da coca. “Com a coca, você vê o dinheiro entrar a cada dois meses. Agora, a gente vai ganhando uns trocados a cada dia e resolvendo os problemas.”

A crise e o PCC

Rueda, da Fundación Ideas para la Paz, afirma que ainda falta muita pesquisa para entender os detalhes da crise da coca na Colômbia. “Ninguém está investigando em profundidade. O governo não tem ideia do que está acontecendo. Estão apenas sabendo da questão de modo geral.” Ela acrescenta que a Colômbia segue tendo seu papel central no mercado internacional da cocaína, mas que, no país, não há informações de como Brasil, Chile ou Paraguai podem ser afetados por essa reorganização interna do tráfico. “Aparentemente, há uma mudanças nas rotas.”

O brasileiro Gabriel Feltran, diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS) e professor da Sciences Po, na França, trabalha com a hipótese de que a crise na Colômbia possa fortalecer grupos criminosos com forte atuação internacional, como o Primeiro Comando da Capital (PCC). Isso porque, em um momento em que há entraves na distribuição da droga, um grupo que se destaca por seu trabalho logístico pode substituir intermediários locais.

“Grupos globais com foco na logística estão concentrando o poder. Os atores locais ficam vendidos e se conectam aos internacionais para aumentar a produção. As organizações que conseguem se modernizar montam essa cadeia de distribuição”, diz.

Feltran afirma que, nessa reorganização do tráfico, produtores da folha e da pasta de coca e vendedores da droga final são os elos cada vez mais fracos da cadeia, enquanto os poucos grupos responsáveis pela logística internacional, os fortes. “É como uma ampulheta. Os atores do meio serão extremamente relevantes para as duas pontas, e o poder vai se concentrar aí.”

*O nome da cidade foi omitido por questões de segurança

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.