Qual Javier Milei vai governar a Argentina? Leia a coluna de Moisés Naim


Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites

Por Moisés Naim

Mais uma vez, a Argentina escolheu viver tempos interessantes. Os argentinos acabam de eleger Javier Milei, uma figura profundamente distante dos políticos convencionais. Milei é muitas coisas: economista libertário ortodoxo, provocador de direita nascido para a televisão e dotado de um ego adequado para esse meio, entusiasta da clonagem de cães e do misticismo esotérico, político com sede de poder que está disposto a construir alianças com pessoas que ele passou anos desprezando publicamente. Não é fácil discernir qual dos dois (ou mais?) Milei acabará governando a Argentina.

Os mercados financeiros celebraram sua vitória, e é fácil perceber o porquê. Depois de um século 21 calamitoso, principalmente nas mãos de um peronismo retrógrado, Javier Milei se candidatou com a promessa de romper radicalmente com o passado. O trágico registro de fracassos econômicos e sociais da Argentina sob o peronismo deixou os eleitores desesperados por um líder que oferecesse a ruptura mais rápida e profunda com o passado. Nessa perspectiva, Javier Milei era imbatível.

Sua campanha foi uma adaptação eficaz: de comentador televisivo estridente a candidato que aniquilaria a corrupção e o populismo. Assim, suas denúncias e propostas provocativas eletrizaram um público cansado da linguagem dos políticos tradicionais. Milei costuma ficar mais confortável defendendo seus planos mais extremos: abandonar o peso argentino e dolarizar a economia! Fechar o Banco Central! Privatizar tudo! Reduzir os gastos públicos quase pela metade! Simplesmente fechar a maioria dos ministérios, ninguém vai ligar!

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Com ou sem óculos, o novo presidente argentino vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pareciam os discursos de um estudante universitário de 19 anos que tinha acabado de ler Ludwig von Mises, o economista libertário. Em qualquer país normal, tais propostas teriam sido rejeitadas de imediato ou consideradas impraticáveis demais para serem levadas a sério. Mas, na Argentina, onde as propostas responsáveis dos adultos na sala pareciam meros ajustes marginais a um sistema podre, a mensagem teve impacto. Milei avançou para o segundo turno... e logo depois mudou.

Dando voz ao político habilidoso que existe dentro dele, Milei moderou o tom, procurou conquistar aliados entre os conservadores mais tradicionais e obteve o apoio crucial de sua oponente de centro-direita, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri. Ele começou a ler discursos preparados, com os óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, em vez de bradar de improviso, como era seu estilo habitual.

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Em Buenos Aires corre a piada de que os óculos do novo presidente têm algum tipo de poder mágico. Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites. Qual dos dois vai governar? Obviamente, esperamos que seja o Milei de óculos, pois a versão sem óculos não tem outro destino senão a escalada do caos.

Com ou sem óculos, o novo presidente vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres: o governo não tem dinheiro para pagar seus credores nacionais ou estrangeiros. A inflação fugiu do controle e a pobreza só aumenta. Milhões de argentinos dependem do governo para comer.

No discurso após o resultado das urnas, Milei reiterou seu compromisso fundamental com a terapia de choque, dizendo que não há espaço para mudanças graduais diante de uma situação tão grave. Sei o que ele quer dizer: em 1989, eu era Ministro do Desenvolvimento da Venezuela e o novo governo herdou uma situação igualmente desastrosa. Os apelos ao gradualismo soavam vazios e oportunistas. Simplesmente não tínhamos dinheiro para adiar reformas drásticas. O mesmo pode ser dito da Argentina de hoje. O Milei de óculos logo vai descobrir o que aprendi: correr para desmantelar as proteções sociais pode deixar a sociedade ainda mais instável. Na Europa após a queda do comunismo, os países que reformaram sua economia gradualmente superaram aqueles que tentaram reformar tudo de uma vez só. A terapia de choque desencadeou problemas que ressoam ainda hoje.

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Pior ainda, Milei terá de conviver com um congresso que ele não controla. Não conseguirá fazer muito sem o apoio dos políticos que passou a vida inteira denunciando. Mas a tentação de tirar os óculos e exibir sua veia radical sempre estará presente. A democracia argentina em breve poderá enfrentar um impasse político no meio do caos econômico, com um presidente que corre o risco de ser seduzido pela má ideia de que é inútil negociar com os adversários.

Muitas vezes vimos essa dinâmica moldar a política de um país. Mais recentemente, no Peru, um presidente antidemocrático e incapaz tentou dissolver o Congresso. Foi derrubado em poucas horas.

Um dos motivos que Javier Milei tem para manter os óculos pode ser evitar esse destino. Outra razão é que ele tem uma oportunidade histórica que, se for bem sucedida, tirará milhões de compatriotas da miséria.

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Boa sorte, Argentina./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELOURENTZOU

Mais uma vez, a Argentina escolheu viver tempos interessantes. Os argentinos acabam de eleger Javier Milei, uma figura profundamente distante dos políticos convencionais. Milei é muitas coisas: economista libertário ortodoxo, provocador de direita nascido para a televisão e dotado de um ego adequado para esse meio, entusiasta da clonagem de cães e do misticismo esotérico, político com sede de poder que está disposto a construir alianças com pessoas que ele passou anos desprezando publicamente. Não é fácil discernir qual dos dois (ou mais?) Milei acabará governando a Argentina.

Os mercados financeiros celebraram sua vitória, e é fácil perceber o porquê. Depois de um século 21 calamitoso, principalmente nas mãos de um peronismo retrógrado, Javier Milei se candidatou com a promessa de romper radicalmente com o passado. O trágico registro de fracassos econômicos e sociais da Argentina sob o peronismo deixou os eleitores desesperados por um líder que oferecesse a ruptura mais rápida e profunda com o passado. Nessa perspectiva, Javier Milei era imbatível.

Sua campanha foi uma adaptação eficaz: de comentador televisivo estridente a candidato que aniquilaria a corrupção e o populismo. Assim, suas denúncias e propostas provocativas eletrizaram um público cansado da linguagem dos políticos tradicionais. Milei costuma ficar mais confortável defendendo seus planos mais extremos: abandonar o peso argentino e dolarizar a economia! Fechar o Banco Central! Privatizar tudo! Reduzir os gastos públicos quase pela metade! Simplesmente fechar a maioria dos ministérios, ninguém vai ligar!

Com ou sem óculos, o novo presidente argentino vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pareciam os discursos de um estudante universitário de 19 anos que tinha acabado de ler Ludwig von Mises, o economista libertário. Em qualquer país normal, tais propostas teriam sido rejeitadas de imediato ou consideradas impraticáveis demais para serem levadas a sério. Mas, na Argentina, onde as propostas responsáveis dos adultos na sala pareciam meros ajustes marginais a um sistema podre, a mensagem teve impacto. Milei avançou para o segundo turno... e logo depois mudou.

Dando voz ao político habilidoso que existe dentro dele, Milei moderou o tom, procurou conquistar aliados entre os conservadores mais tradicionais e obteve o apoio crucial de sua oponente de centro-direita, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri. Ele começou a ler discursos preparados, com os óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, em vez de bradar de improviso, como era seu estilo habitual.

Em Buenos Aires corre a piada de que os óculos do novo presidente têm algum tipo de poder mágico. Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites. Qual dos dois vai governar? Obviamente, esperamos que seja o Milei de óculos, pois a versão sem óculos não tem outro destino senão a escalada do caos.

Com ou sem óculos, o novo presidente vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres: o governo não tem dinheiro para pagar seus credores nacionais ou estrangeiros. A inflação fugiu do controle e a pobreza só aumenta. Milhões de argentinos dependem do governo para comer.

No discurso após o resultado das urnas, Milei reiterou seu compromisso fundamental com a terapia de choque, dizendo que não há espaço para mudanças graduais diante de uma situação tão grave. Sei o que ele quer dizer: em 1989, eu era Ministro do Desenvolvimento da Venezuela e o novo governo herdou uma situação igualmente desastrosa. Os apelos ao gradualismo soavam vazios e oportunistas. Simplesmente não tínhamos dinheiro para adiar reformas drásticas. O mesmo pode ser dito da Argentina de hoje. O Milei de óculos logo vai descobrir o que aprendi: correr para desmantelar as proteções sociais pode deixar a sociedade ainda mais instável. Na Europa após a queda do comunismo, os países que reformaram sua economia gradualmente superaram aqueles que tentaram reformar tudo de uma vez só. A terapia de choque desencadeou problemas que ressoam ainda hoje.

Pior ainda, Milei terá de conviver com um congresso que ele não controla. Não conseguirá fazer muito sem o apoio dos políticos que passou a vida inteira denunciando. Mas a tentação de tirar os óculos e exibir sua veia radical sempre estará presente. A democracia argentina em breve poderá enfrentar um impasse político no meio do caos econômico, com um presidente que corre o risco de ser seduzido pela má ideia de que é inútil negociar com os adversários.

Muitas vezes vimos essa dinâmica moldar a política de um país. Mais recentemente, no Peru, um presidente antidemocrático e incapaz tentou dissolver o Congresso. Foi derrubado em poucas horas.

Um dos motivos que Javier Milei tem para manter os óculos pode ser evitar esse destino. Outra razão é que ele tem uma oportunidade histórica que, se for bem sucedida, tirará milhões de compatriotas da miséria.

Boa sorte, Argentina./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELOURENTZOU

Mais uma vez, a Argentina escolheu viver tempos interessantes. Os argentinos acabam de eleger Javier Milei, uma figura profundamente distante dos políticos convencionais. Milei é muitas coisas: economista libertário ortodoxo, provocador de direita nascido para a televisão e dotado de um ego adequado para esse meio, entusiasta da clonagem de cães e do misticismo esotérico, político com sede de poder que está disposto a construir alianças com pessoas que ele passou anos desprezando publicamente. Não é fácil discernir qual dos dois (ou mais?) Milei acabará governando a Argentina.

Os mercados financeiros celebraram sua vitória, e é fácil perceber o porquê. Depois de um século 21 calamitoso, principalmente nas mãos de um peronismo retrógrado, Javier Milei se candidatou com a promessa de romper radicalmente com o passado. O trágico registro de fracassos econômicos e sociais da Argentina sob o peronismo deixou os eleitores desesperados por um líder que oferecesse a ruptura mais rápida e profunda com o passado. Nessa perspectiva, Javier Milei era imbatível.

Sua campanha foi uma adaptação eficaz: de comentador televisivo estridente a candidato que aniquilaria a corrupção e o populismo. Assim, suas denúncias e propostas provocativas eletrizaram um público cansado da linguagem dos políticos tradicionais. Milei costuma ficar mais confortável defendendo seus planos mais extremos: abandonar o peso argentino e dolarizar a economia! Fechar o Banco Central! Privatizar tudo! Reduzir os gastos públicos quase pela metade! Simplesmente fechar a maioria dos ministérios, ninguém vai ligar!

Com ou sem óculos, o novo presidente argentino vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pareciam os discursos de um estudante universitário de 19 anos que tinha acabado de ler Ludwig von Mises, o economista libertário. Em qualquer país normal, tais propostas teriam sido rejeitadas de imediato ou consideradas impraticáveis demais para serem levadas a sério. Mas, na Argentina, onde as propostas responsáveis dos adultos na sala pareciam meros ajustes marginais a um sistema podre, a mensagem teve impacto. Milei avançou para o segundo turno... e logo depois mudou.

Dando voz ao político habilidoso que existe dentro dele, Milei moderou o tom, procurou conquistar aliados entre os conservadores mais tradicionais e obteve o apoio crucial de sua oponente de centro-direita, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri. Ele começou a ler discursos preparados, com os óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, em vez de bradar de improviso, como era seu estilo habitual.

Em Buenos Aires corre a piada de que os óculos do novo presidente têm algum tipo de poder mágico. Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites. Qual dos dois vai governar? Obviamente, esperamos que seja o Milei de óculos, pois a versão sem óculos não tem outro destino senão a escalada do caos.

Com ou sem óculos, o novo presidente vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres: o governo não tem dinheiro para pagar seus credores nacionais ou estrangeiros. A inflação fugiu do controle e a pobreza só aumenta. Milhões de argentinos dependem do governo para comer.

No discurso após o resultado das urnas, Milei reiterou seu compromisso fundamental com a terapia de choque, dizendo que não há espaço para mudanças graduais diante de uma situação tão grave. Sei o que ele quer dizer: em 1989, eu era Ministro do Desenvolvimento da Venezuela e o novo governo herdou uma situação igualmente desastrosa. Os apelos ao gradualismo soavam vazios e oportunistas. Simplesmente não tínhamos dinheiro para adiar reformas drásticas. O mesmo pode ser dito da Argentina de hoje. O Milei de óculos logo vai descobrir o que aprendi: correr para desmantelar as proteções sociais pode deixar a sociedade ainda mais instável. Na Europa após a queda do comunismo, os países que reformaram sua economia gradualmente superaram aqueles que tentaram reformar tudo de uma vez só. A terapia de choque desencadeou problemas que ressoam ainda hoje.

Pior ainda, Milei terá de conviver com um congresso que ele não controla. Não conseguirá fazer muito sem o apoio dos políticos que passou a vida inteira denunciando. Mas a tentação de tirar os óculos e exibir sua veia radical sempre estará presente. A democracia argentina em breve poderá enfrentar um impasse político no meio do caos econômico, com um presidente que corre o risco de ser seduzido pela má ideia de que é inútil negociar com os adversários.

Muitas vezes vimos essa dinâmica moldar a política de um país. Mais recentemente, no Peru, um presidente antidemocrático e incapaz tentou dissolver o Congresso. Foi derrubado em poucas horas.

Um dos motivos que Javier Milei tem para manter os óculos pode ser evitar esse destino. Outra razão é que ele tem uma oportunidade histórica que, se for bem sucedida, tirará milhões de compatriotas da miséria.

Boa sorte, Argentina./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELOURENTZOU

Mais uma vez, a Argentina escolheu viver tempos interessantes. Os argentinos acabam de eleger Javier Milei, uma figura profundamente distante dos políticos convencionais. Milei é muitas coisas: economista libertário ortodoxo, provocador de direita nascido para a televisão e dotado de um ego adequado para esse meio, entusiasta da clonagem de cães e do misticismo esotérico, político com sede de poder que está disposto a construir alianças com pessoas que ele passou anos desprezando publicamente. Não é fácil discernir qual dos dois (ou mais?) Milei acabará governando a Argentina.

Os mercados financeiros celebraram sua vitória, e é fácil perceber o porquê. Depois de um século 21 calamitoso, principalmente nas mãos de um peronismo retrógrado, Javier Milei se candidatou com a promessa de romper radicalmente com o passado. O trágico registro de fracassos econômicos e sociais da Argentina sob o peronismo deixou os eleitores desesperados por um líder que oferecesse a ruptura mais rápida e profunda com o passado. Nessa perspectiva, Javier Milei era imbatível.

Sua campanha foi uma adaptação eficaz: de comentador televisivo estridente a candidato que aniquilaria a corrupção e o populismo. Assim, suas denúncias e propostas provocativas eletrizaram um público cansado da linguagem dos políticos tradicionais. Milei costuma ficar mais confortável defendendo seus planos mais extremos: abandonar o peso argentino e dolarizar a economia! Fechar o Banco Central! Privatizar tudo! Reduzir os gastos públicos quase pela metade! Simplesmente fechar a maioria dos ministérios, ninguém vai ligar!

Com ou sem óculos, o novo presidente argentino vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pareciam os discursos de um estudante universitário de 19 anos que tinha acabado de ler Ludwig von Mises, o economista libertário. Em qualquer país normal, tais propostas teriam sido rejeitadas de imediato ou consideradas impraticáveis demais para serem levadas a sério. Mas, na Argentina, onde as propostas responsáveis dos adultos na sala pareciam meros ajustes marginais a um sistema podre, a mensagem teve impacto. Milei avançou para o segundo turno... e logo depois mudou.

Dando voz ao político habilidoso que existe dentro dele, Milei moderou o tom, procurou conquistar aliados entre os conservadores mais tradicionais e obteve o apoio crucial de sua oponente de centro-direita, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri. Ele começou a ler discursos preparados, com os óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, em vez de bradar de improviso, como era seu estilo habitual.

Em Buenos Aires corre a piada de que os óculos do novo presidente têm algum tipo de poder mágico. Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites. Qual dos dois vai governar? Obviamente, esperamos que seja o Milei de óculos, pois a versão sem óculos não tem outro destino senão a escalada do caos.

Com ou sem óculos, o novo presidente vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres: o governo não tem dinheiro para pagar seus credores nacionais ou estrangeiros. A inflação fugiu do controle e a pobreza só aumenta. Milhões de argentinos dependem do governo para comer.

No discurso após o resultado das urnas, Milei reiterou seu compromisso fundamental com a terapia de choque, dizendo que não há espaço para mudanças graduais diante de uma situação tão grave. Sei o que ele quer dizer: em 1989, eu era Ministro do Desenvolvimento da Venezuela e o novo governo herdou uma situação igualmente desastrosa. Os apelos ao gradualismo soavam vazios e oportunistas. Simplesmente não tínhamos dinheiro para adiar reformas drásticas. O mesmo pode ser dito da Argentina de hoje. O Milei de óculos logo vai descobrir o que aprendi: correr para desmantelar as proteções sociais pode deixar a sociedade ainda mais instável. Na Europa após a queda do comunismo, os países que reformaram sua economia gradualmente superaram aqueles que tentaram reformar tudo de uma vez só. A terapia de choque desencadeou problemas que ressoam ainda hoje.

Pior ainda, Milei terá de conviver com um congresso que ele não controla. Não conseguirá fazer muito sem o apoio dos políticos que passou a vida inteira denunciando. Mas a tentação de tirar os óculos e exibir sua veia radical sempre estará presente. A democracia argentina em breve poderá enfrentar um impasse político no meio do caos econômico, com um presidente que corre o risco de ser seduzido pela má ideia de que é inútil negociar com os adversários.

Muitas vezes vimos essa dinâmica moldar a política de um país. Mais recentemente, no Peru, um presidente antidemocrático e incapaz tentou dissolver o Congresso. Foi derrubado em poucas horas.

Um dos motivos que Javier Milei tem para manter os óculos pode ser evitar esse destino. Outra razão é que ele tem uma oportunidade histórica que, se for bem sucedida, tirará milhões de compatriotas da miséria.

Boa sorte, Argentina./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELOURENTZOU

Mais uma vez, a Argentina escolheu viver tempos interessantes. Os argentinos acabam de eleger Javier Milei, uma figura profundamente distante dos políticos convencionais. Milei é muitas coisas: economista libertário ortodoxo, provocador de direita nascido para a televisão e dotado de um ego adequado para esse meio, entusiasta da clonagem de cães e do misticismo esotérico, político com sede de poder que está disposto a construir alianças com pessoas que ele passou anos desprezando publicamente. Não é fácil discernir qual dos dois (ou mais?) Milei acabará governando a Argentina.

Os mercados financeiros celebraram sua vitória, e é fácil perceber o porquê. Depois de um século 21 calamitoso, principalmente nas mãos de um peronismo retrógrado, Javier Milei se candidatou com a promessa de romper radicalmente com o passado. O trágico registro de fracassos econômicos e sociais da Argentina sob o peronismo deixou os eleitores desesperados por um líder que oferecesse a ruptura mais rápida e profunda com o passado. Nessa perspectiva, Javier Milei era imbatível.

Sua campanha foi uma adaptação eficaz: de comentador televisivo estridente a candidato que aniquilaria a corrupção e o populismo. Assim, suas denúncias e propostas provocativas eletrizaram um público cansado da linguagem dos políticos tradicionais. Milei costuma ficar mais confortável defendendo seus planos mais extremos: abandonar o peso argentino e dolarizar a economia! Fechar o Banco Central! Privatizar tudo! Reduzir os gastos públicos quase pela metade! Simplesmente fechar a maioria dos ministérios, ninguém vai ligar!

Com ou sem óculos, o novo presidente argentino vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres. Foto: Natacha Pisarenko/AP

Pareciam os discursos de um estudante universitário de 19 anos que tinha acabado de ler Ludwig von Mises, o economista libertário. Em qualquer país normal, tais propostas teriam sido rejeitadas de imediato ou consideradas impraticáveis demais para serem levadas a sério. Mas, na Argentina, onde as propostas responsáveis dos adultos na sala pareciam meros ajustes marginais a um sistema podre, a mensagem teve impacto. Milei avançou para o segundo turno... e logo depois mudou.

Dando voz ao político habilidoso que existe dentro dele, Milei moderou o tom, procurou conquistar aliados entre os conservadores mais tradicionais e obteve o apoio crucial de sua oponente de centro-direita, Patricia Bullrich, e do ex-presidente Mauricio Macri. Ele começou a ler discursos preparados, com os óculos de leitura apoiados na ponta do nariz, em vez de bradar de improviso, como era seu estilo habitual.

Em Buenos Aires corre a piada de que os óculos do novo presidente têm algum tipo de poder mágico. Parece haver dois Milei: um é o estadista emergente com óculos de leitura, o outro é o ideólogo que fustiga a incapacidade das elites. Qual dos dois vai governar? Obviamente, esperamos que seja o Milei de óculos, pois a versão sem óculos não tem outro destino senão a escalada do caos.

Com ou sem óculos, o novo presidente vai enfrentar um conjunto ameaçador de desastres: o governo não tem dinheiro para pagar seus credores nacionais ou estrangeiros. A inflação fugiu do controle e a pobreza só aumenta. Milhões de argentinos dependem do governo para comer.

No discurso após o resultado das urnas, Milei reiterou seu compromisso fundamental com a terapia de choque, dizendo que não há espaço para mudanças graduais diante de uma situação tão grave. Sei o que ele quer dizer: em 1989, eu era Ministro do Desenvolvimento da Venezuela e o novo governo herdou uma situação igualmente desastrosa. Os apelos ao gradualismo soavam vazios e oportunistas. Simplesmente não tínhamos dinheiro para adiar reformas drásticas. O mesmo pode ser dito da Argentina de hoje. O Milei de óculos logo vai descobrir o que aprendi: correr para desmantelar as proteções sociais pode deixar a sociedade ainda mais instável. Na Europa após a queda do comunismo, os países que reformaram sua economia gradualmente superaram aqueles que tentaram reformar tudo de uma vez só. A terapia de choque desencadeou problemas que ressoam ainda hoje.

Pior ainda, Milei terá de conviver com um congresso que ele não controla. Não conseguirá fazer muito sem o apoio dos políticos que passou a vida inteira denunciando. Mas a tentação de tirar os óculos e exibir sua veia radical sempre estará presente. A democracia argentina em breve poderá enfrentar um impasse político no meio do caos econômico, com um presidente que corre o risco de ser seduzido pela má ideia de que é inútil negociar com os adversários.

Muitas vezes vimos essa dinâmica moldar a política de um país. Mais recentemente, no Peru, um presidente antidemocrático e incapaz tentou dissolver o Congresso. Foi derrubado em poucas horas.

Um dos motivos que Javier Milei tem para manter os óculos pode ser evitar esse destino. Outra razão é que ele tem uma oportunidade histórica que, se for bem sucedida, tirará milhões de compatriotas da miséria.

Boa sorte, Argentina./ TRADUÇÃO DE RENATO PRELOURENTZOU

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