‘Com a eleição de Milei, Argentina entra em terras desconhecidas’, diz especialista


Para Daniel Zovatto, a eleição do candidato de La Libertad Avanza, que não possui uma base política sólida, traz grandes incertezas

Por Jorge C. Carrasco

A vitória arrasadora de Javier Milei sobre Sergio Massa colocou em xeque as bases da política tradicional na Argentina. Com mais de 11 pontos de diferença entre os candidatos, o resultado é a pior derrota sofrida pelo peronismo em 40 anos de democracia e, pelo kirchnerismo, desde 2003. E pela primeira vez em décadas, os argentinos devem experienciar uma transição de governo entre dois modelos de país radicalmente diferentes.

Para Daniel Zovatto, diretor para a América Latina e o Caribe do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), a eleição do candidato da coalizão La Libertad Avanza coloca o país sul-americano em uma posição de incerteza, que consolida-se dentro de um grupo de movimentações eleitorais ocorridas no continente na última década.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

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Javier Milei fala durante um comício em Buenos Aires, Argentina, segunda-feira, 7 de agosto de 2023.  Foto: Natacha Pisarenko / AP

Em apenas dois anos da sua entrada na política argentina, Javier Milei conseguiu ganhar um amplo apoio da população para derrotar as duas forças políticas mais tradicionais do seu país. Como podemos interpretar seu sucesso nestas eleições?

Da votação das primárias até o ‘ballottage’ deste domingo, cada uma das eleições trouxe surpresas na Argentina. Milei chegou à última eleição em condições muito competitivas, sendo que, no início, não era muito claro o quão competitivo ele poderia chegar a ser frente a um Massa que tinha grandes chances de vencer.

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Com a vitória do candidato, se cumprem na Argentina as três tendências principais que temos observado nos processos eleitorais do continente:

A primeira é a do voto de castigo ao oficialismo. Em 17 das 18 eleições realizadas no nosso continente desde 2019, sempre perderam os partidos que estavam no governo, independentemente da sua ideologia. Isto se deu apenas com uma exceção, que foi a do Paraguai, onde venceu o partido que representava o governo. Esta mudança vertiginosa de regime vem quase sempre acompanhada de uma onda de descontento generalizado da população — no caso da Argentina, o descontento tem sido motivado, principalmente, pela profunda crise econômica em que se encontra imersa a população. Os processos de alternância de regime têm afetado governos de esquerda e de direita de forma similar. O Chile e a Colômbia tiveram até agora as mudanças mais radicais, passando de governos conservadores a lideranças progressistas, com Garbriel Boric e Gustavo Petro. Neste sentido, há um claro enfraquecimento do centro político como campo ideológico.

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A outra tendência é que, como em outros países, a eleição não teve definição no primeiro turno, gerando a necessidade de ir a um segundo turno para escolher o representante do executivo. Doze países latino-americanos aplicam segundo. Nas últimas dez eleições, sete tiveram uma virada política, com a vitória da oposição. Na Argentina, Massa representava um governo muito desgastado, com uma herança econômica complicada e poucos resultados positivos. Se bem Massa ainda apresentava seu projeto como diferente do seu antecessor, ele continuava profundamente ligado à classe governista, e a alta inflação (entre outros problemas) pairava na memória recente das pessoas, gerando ânsias de mudança.

A última tendência é a da poluição nas mensagens da campanha. Este é o caso da chamada “campanha do medo”, que apesar de não ter funcionado na Argentina, pois Milei foi eleito, tinha no seu cerne uma estratégia desestabilizadora com a propagação de imagens negativas um do outro, limitando o diálogo político construtivo — o que foi muito comum nas eleições dos últimos anos no continente.

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Que significa para a Argentina a eleição de Milei?

Diante de uma sociedade que está enfrentando uma situação de muita desesperança, muita raiva, um grande setor da população decidiu saltar no vazio em vez de permanecer na inércia. Na falta soluções para seus problemas, que agravaram-se nos últimos anos, coincidindo com o governo representado por Massa, os argentinos atreveram-se a tomar uma decisão radical.

Agora o país está nas mãos de um ‘outsider’ que não possui uma base política, sem governadores eleitos nas províncias e sem uma verdadeira equipe de governo. Nesse sentido, com a eleição de Milei a Argentina entra em terras desconhecidas. Até agora, a Argentina sempre alternou entre conservadores e peronistas, entre peronistas e radicais [corrente política tradicional de centro-direita]. Mas agora estamos entrando em uma situação que marca uma redefinição do sistema político como um todo. E ainda estamos por ver como as alianças serão recompostas.

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Javier Milei cumprimenta os apoiadores do lado de fora de sua sede de campanha após vencer o segundo turno das eleições presidenciais em Buenos Aires, Argentina, domingo, 19 de novembro de 2023. Foto: Natacha Pisarenko / AP

Estamos entrando em um nível de incerteza política e de governança, em que não é fácil prever o que Milei poderia fazer para governar sob a pesada herança deixada pelo governo anterior, com pouco apoio e nenhuma experiência na gestão política do Estado. Por outro lado, temos que levar em conta o fato de que termos na região uma grande volatilidade política e eleitoral. A alternância permanente de governos é um fato na Argentina, e o país é o único no continente, com exceção do México, que tem uma eleição de meio período de mandato. Ou seja, se Milei não fizer um bom trabalho, o voto de castigo vai ser brutal.

Qual é o impacto dessa eleição sobre o estado da democracia na Argentina?

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Para a democracia argentina, é um voto a favor no importante contexto dos 40 anos de democracia. Foi uma eleição limpa e democrática, e ambos os candidatos reconheceram que foi transparente. Massa admitiu a derrota antes da divulgação oficial dos resultados e seu discurso foi de conciliação. Mas o maior desafio estará no diálogo. A agravada crise econômica do país exige (e precisa urgentemente) reformas com repercussão social significativa, que apenas serão possíveis por meio da negociação e conciliação. Mas o período de transição do governo coloca pressão nas expectativas a meio prazo para a nação. Conflitos e instabilidade podem definir os primeiros momentos do mandato de Milei, e ele vai ter que fomentar um consenso político para não gerar um ataque de pânico no mercado e evitar que continue caindo o valor do peso em relação ao dólar. A experiência argentina indica que só é possível governar realizando acordos parlamentares, então o novo presidente pode encontrar rapidamente limites para as propostas prometidas na campanha.

A vitória arrasadora de Javier Milei sobre Sergio Massa colocou em xeque as bases da política tradicional na Argentina. Com mais de 11 pontos de diferença entre os candidatos, o resultado é a pior derrota sofrida pelo peronismo em 40 anos de democracia e, pelo kirchnerismo, desde 2003. E pela primeira vez em décadas, os argentinos devem experienciar uma transição de governo entre dois modelos de país radicalmente diferentes.

Para Daniel Zovatto, diretor para a América Latina e o Caribe do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), a eleição do candidato da coalizão La Libertad Avanza coloca o país sul-americano em uma posição de incerteza, que consolida-se dentro de um grupo de movimentações eleitorais ocorridas no continente na última década.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Javier Milei fala durante um comício em Buenos Aires, Argentina, segunda-feira, 7 de agosto de 2023.  Foto: Natacha Pisarenko / AP

Em apenas dois anos da sua entrada na política argentina, Javier Milei conseguiu ganhar um amplo apoio da população para derrotar as duas forças políticas mais tradicionais do seu país. Como podemos interpretar seu sucesso nestas eleições?

Da votação das primárias até o ‘ballottage’ deste domingo, cada uma das eleições trouxe surpresas na Argentina. Milei chegou à última eleição em condições muito competitivas, sendo que, no início, não era muito claro o quão competitivo ele poderia chegar a ser frente a um Massa que tinha grandes chances de vencer.

Com a vitória do candidato, se cumprem na Argentina as três tendências principais que temos observado nos processos eleitorais do continente:

A primeira é a do voto de castigo ao oficialismo. Em 17 das 18 eleições realizadas no nosso continente desde 2019, sempre perderam os partidos que estavam no governo, independentemente da sua ideologia. Isto se deu apenas com uma exceção, que foi a do Paraguai, onde venceu o partido que representava o governo. Esta mudança vertiginosa de regime vem quase sempre acompanhada de uma onda de descontento generalizado da população — no caso da Argentina, o descontento tem sido motivado, principalmente, pela profunda crise econômica em que se encontra imersa a população. Os processos de alternância de regime têm afetado governos de esquerda e de direita de forma similar. O Chile e a Colômbia tiveram até agora as mudanças mais radicais, passando de governos conservadores a lideranças progressistas, com Garbriel Boric e Gustavo Petro. Neste sentido, há um claro enfraquecimento do centro político como campo ideológico.

A outra tendência é que, como em outros países, a eleição não teve definição no primeiro turno, gerando a necessidade de ir a um segundo turno para escolher o representante do executivo. Doze países latino-americanos aplicam segundo. Nas últimas dez eleições, sete tiveram uma virada política, com a vitória da oposição. Na Argentina, Massa representava um governo muito desgastado, com uma herança econômica complicada e poucos resultados positivos. Se bem Massa ainda apresentava seu projeto como diferente do seu antecessor, ele continuava profundamente ligado à classe governista, e a alta inflação (entre outros problemas) pairava na memória recente das pessoas, gerando ânsias de mudança.

A última tendência é a da poluição nas mensagens da campanha. Este é o caso da chamada “campanha do medo”, que apesar de não ter funcionado na Argentina, pois Milei foi eleito, tinha no seu cerne uma estratégia desestabilizadora com a propagação de imagens negativas um do outro, limitando o diálogo político construtivo — o que foi muito comum nas eleições dos últimos anos no continente.

Que significa para a Argentina a eleição de Milei?

Diante de uma sociedade que está enfrentando uma situação de muita desesperança, muita raiva, um grande setor da população decidiu saltar no vazio em vez de permanecer na inércia. Na falta soluções para seus problemas, que agravaram-se nos últimos anos, coincidindo com o governo representado por Massa, os argentinos atreveram-se a tomar uma decisão radical.

Agora o país está nas mãos de um ‘outsider’ que não possui uma base política, sem governadores eleitos nas províncias e sem uma verdadeira equipe de governo. Nesse sentido, com a eleição de Milei a Argentina entra em terras desconhecidas. Até agora, a Argentina sempre alternou entre conservadores e peronistas, entre peronistas e radicais [corrente política tradicional de centro-direita]. Mas agora estamos entrando em uma situação que marca uma redefinição do sistema político como um todo. E ainda estamos por ver como as alianças serão recompostas.

Javier Milei cumprimenta os apoiadores do lado de fora de sua sede de campanha após vencer o segundo turno das eleições presidenciais em Buenos Aires, Argentina, domingo, 19 de novembro de 2023. Foto: Natacha Pisarenko / AP

Estamos entrando em um nível de incerteza política e de governança, em que não é fácil prever o que Milei poderia fazer para governar sob a pesada herança deixada pelo governo anterior, com pouco apoio e nenhuma experiência na gestão política do Estado. Por outro lado, temos que levar em conta o fato de que termos na região uma grande volatilidade política e eleitoral. A alternância permanente de governos é um fato na Argentina, e o país é o único no continente, com exceção do México, que tem uma eleição de meio período de mandato. Ou seja, se Milei não fizer um bom trabalho, o voto de castigo vai ser brutal.

Qual é o impacto dessa eleição sobre o estado da democracia na Argentina?

Para a democracia argentina, é um voto a favor no importante contexto dos 40 anos de democracia. Foi uma eleição limpa e democrática, e ambos os candidatos reconheceram que foi transparente. Massa admitiu a derrota antes da divulgação oficial dos resultados e seu discurso foi de conciliação. Mas o maior desafio estará no diálogo. A agravada crise econômica do país exige (e precisa urgentemente) reformas com repercussão social significativa, que apenas serão possíveis por meio da negociação e conciliação. Mas o período de transição do governo coloca pressão nas expectativas a meio prazo para a nação. Conflitos e instabilidade podem definir os primeiros momentos do mandato de Milei, e ele vai ter que fomentar um consenso político para não gerar um ataque de pânico no mercado e evitar que continue caindo o valor do peso em relação ao dólar. A experiência argentina indica que só é possível governar realizando acordos parlamentares, então o novo presidente pode encontrar rapidamente limites para as propostas prometidas na campanha.

A vitória arrasadora de Javier Milei sobre Sergio Massa colocou em xeque as bases da política tradicional na Argentina. Com mais de 11 pontos de diferença entre os candidatos, o resultado é a pior derrota sofrida pelo peronismo em 40 anos de democracia e, pelo kirchnerismo, desde 2003. E pela primeira vez em décadas, os argentinos devem experienciar uma transição de governo entre dois modelos de país radicalmente diferentes.

Para Daniel Zovatto, diretor para a América Latina e o Caribe do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), a eleição do candidato da coalizão La Libertad Avanza coloca o país sul-americano em uma posição de incerteza, que consolida-se dentro de um grupo de movimentações eleitorais ocorridas no continente na última década.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Javier Milei fala durante um comício em Buenos Aires, Argentina, segunda-feira, 7 de agosto de 2023.  Foto: Natacha Pisarenko / AP

Em apenas dois anos da sua entrada na política argentina, Javier Milei conseguiu ganhar um amplo apoio da população para derrotar as duas forças políticas mais tradicionais do seu país. Como podemos interpretar seu sucesso nestas eleições?

Da votação das primárias até o ‘ballottage’ deste domingo, cada uma das eleições trouxe surpresas na Argentina. Milei chegou à última eleição em condições muito competitivas, sendo que, no início, não era muito claro o quão competitivo ele poderia chegar a ser frente a um Massa que tinha grandes chances de vencer.

Com a vitória do candidato, se cumprem na Argentina as três tendências principais que temos observado nos processos eleitorais do continente:

A primeira é a do voto de castigo ao oficialismo. Em 17 das 18 eleições realizadas no nosso continente desde 2019, sempre perderam os partidos que estavam no governo, independentemente da sua ideologia. Isto se deu apenas com uma exceção, que foi a do Paraguai, onde venceu o partido que representava o governo. Esta mudança vertiginosa de regime vem quase sempre acompanhada de uma onda de descontento generalizado da população — no caso da Argentina, o descontento tem sido motivado, principalmente, pela profunda crise econômica em que se encontra imersa a população. Os processos de alternância de regime têm afetado governos de esquerda e de direita de forma similar. O Chile e a Colômbia tiveram até agora as mudanças mais radicais, passando de governos conservadores a lideranças progressistas, com Garbriel Boric e Gustavo Petro. Neste sentido, há um claro enfraquecimento do centro político como campo ideológico.

A outra tendência é que, como em outros países, a eleição não teve definição no primeiro turno, gerando a necessidade de ir a um segundo turno para escolher o representante do executivo. Doze países latino-americanos aplicam segundo. Nas últimas dez eleições, sete tiveram uma virada política, com a vitória da oposição. Na Argentina, Massa representava um governo muito desgastado, com uma herança econômica complicada e poucos resultados positivos. Se bem Massa ainda apresentava seu projeto como diferente do seu antecessor, ele continuava profundamente ligado à classe governista, e a alta inflação (entre outros problemas) pairava na memória recente das pessoas, gerando ânsias de mudança.

A última tendência é a da poluição nas mensagens da campanha. Este é o caso da chamada “campanha do medo”, que apesar de não ter funcionado na Argentina, pois Milei foi eleito, tinha no seu cerne uma estratégia desestabilizadora com a propagação de imagens negativas um do outro, limitando o diálogo político construtivo — o que foi muito comum nas eleições dos últimos anos no continente.

Que significa para a Argentina a eleição de Milei?

Diante de uma sociedade que está enfrentando uma situação de muita desesperança, muita raiva, um grande setor da população decidiu saltar no vazio em vez de permanecer na inércia. Na falta soluções para seus problemas, que agravaram-se nos últimos anos, coincidindo com o governo representado por Massa, os argentinos atreveram-se a tomar uma decisão radical.

Agora o país está nas mãos de um ‘outsider’ que não possui uma base política, sem governadores eleitos nas províncias e sem uma verdadeira equipe de governo. Nesse sentido, com a eleição de Milei a Argentina entra em terras desconhecidas. Até agora, a Argentina sempre alternou entre conservadores e peronistas, entre peronistas e radicais [corrente política tradicional de centro-direita]. Mas agora estamos entrando em uma situação que marca uma redefinição do sistema político como um todo. E ainda estamos por ver como as alianças serão recompostas.

Javier Milei cumprimenta os apoiadores do lado de fora de sua sede de campanha após vencer o segundo turno das eleições presidenciais em Buenos Aires, Argentina, domingo, 19 de novembro de 2023. Foto: Natacha Pisarenko / AP

Estamos entrando em um nível de incerteza política e de governança, em que não é fácil prever o que Milei poderia fazer para governar sob a pesada herança deixada pelo governo anterior, com pouco apoio e nenhuma experiência na gestão política do Estado. Por outro lado, temos que levar em conta o fato de que termos na região uma grande volatilidade política e eleitoral. A alternância permanente de governos é um fato na Argentina, e o país é o único no continente, com exceção do México, que tem uma eleição de meio período de mandato. Ou seja, se Milei não fizer um bom trabalho, o voto de castigo vai ser brutal.

Qual é o impacto dessa eleição sobre o estado da democracia na Argentina?

Para a democracia argentina, é um voto a favor no importante contexto dos 40 anos de democracia. Foi uma eleição limpa e democrática, e ambos os candidatos reconheceram que foi transparente. Massa admitiu a derrota antes da divulgação oficial dos resultados e seu discurso foi de conciliação. Mas o maior desafio estará no diálogo. A agravada crise econômica do país exige (e precisa urgentemente) reformas com repercussão social significativa, que apenas serão possíveis por meio da negociação e conciliação. Mas o período de transição do governo coloca pressão nas expectativas a meio prazo para a nação. Conflitos e instabilidade podem definir os primeiros momentos do mandato de Milei, e ele vai ter que fomentar um consenso político para não gerar um ataque de pânico no mercado e evitar que continue caindo o valor do peso em relação ao dólar. A experiência argentina indica que só é possível governar realizando acordos parlamentares, então o novo presidente pode encontrar rapidamente limites para as propostas prometidas na campanha.

A vitória arrasadora de Javier Milei sobre Sergio Massa colocou em xeque as bases da política tradicional na Argentina. Com mais de 11 pontos de diferença entre os candidatos, o resultado é a pior derrota sofrida pelo peronismo em 40 anos de democracia e, pelo kirchnerismo, desde 2003. E pela primeira vez em décadas, os argentinos devem experienciar uma transição de governo entre dois modelos de país radicalmente diferentes.

Para Daniel Zovatto, diretor para a América Latina e o Caribe do Instituto Internacional para Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA), a eleição do candidato da coalizão La Libertad Avanza coloca o país sul-americano em uma posição de incerteza, que consolida-se dentro de um grupo de movimentações eleitorais ocorridas no continente na última década.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

Javier Milei fala durante um comício em Buenos Aires, Argentina, segunda-feira, 7 de agosto de 2023.  Foto: Natacha Pisarenko / AP

Em apenas dois anos da sua entrada na política argentina, Javier Milei conseguiu ganhar um amplo apoio da população para derrotar as duas forças políticas mais tradicionais do seu país. Como podemos interpretar seu sucesso nestas eleições?

Da votação das primárias até o ‘ballottage’ deste domingo, cada uma das eleições trouxe surpresas na Argentina. Milei chegou à última eleição em condições muito competitivas, sendo que, no início, não era muito claro o quão competitivo ele poderia chegar a ser frente a um Massa que tinha grandes chances de vencer.

Com a vitória do candidato, se cumprem na Argentina as três tendências principais que temos observado nos processos eleitorais do continente:

A primeira é a do voto de castigo ao oficialismo. Em 17 das 18 eleições realizadas no nosso continente desde 2019, sempre perderam os partidos que estavam no governo, independentemente da sua ideologia. Isto se deu apenas com uma exceção, que foi a do Paraguai, onde venceu o partido que representava o governo. Esta mudança vertiginosa de regime vem quase sempre acompanhada de uma onda de descontento generalizado da população — no caso da Argentina, o descontento tem sido motivado, principalmente, pela profunda crise econômica em que se encontra imersa a população. Os processos de alternância de regime têm afetado governos de esquerda e de direita de forma similar. O Chile e a Colômbia tiveram até agora as mudanças mais radicais, passando de governos conservadores a lideranças progressistas, com Garbriel Boric e Gustavo Petro. Neste sentido, há um claro enfraquecimento do centro político como campo ideológico.

A outra tendência é que, como em outros países, a eleição não teve definição no primeiro turno, gerando a necessidade de ir a um segundo turno para escolher o representante do executivo. Doze países latino-americanos aplicam segundo. Nas últimas dez eleições, sete tiveram uma virada política, com a vitória da oposição. Na Argentina, Massa representava um governo muito desgastado, com uma herança econômica complicada e poucos resultados positivos. Se bem Massa ainda apresentava seu projeto como diferente do seu antecessor, ele continuava profundamente ligado à classe governista, e a alta inflação (entre outros problemas) pairava na memória recente das pessoas, gerando ânsias de mudança.

A última tendência é a da poluição nas mensagens da campanha. Este é o caso da chamada “campanha do medo”, que apesar de não ter funcionado na Argentina, pois Milei foi eleito, tinha no seu cerne uma estratégia desestabilizadora com a propagação de imagens negativas um do outro, limitando o diálogo político construtivo — o que foi muito comum nas eleições dos últimos anos no continente.

Que significa para a Argentina a eleição de Milei?

Diante de uma sociedade que está enfrentando uma situação de muita desesperança, muita raiva, um grande setor da população decidiu saltar no vazio em vez de permanecer na inércia. Na falta soluções para seus problemas, que agravaram-se nos últimos anos, coincidindo com o governo representado por Massa, os argentinos atreveram-se a tomar uma decisão radical.

Agora o país está nas mãos de um ‘outsider’ que não possui uma base política, sem governadores eleitos nas províncias e sem uma verdadeira equipe de governo. Nesse sentido, com a eleição de Milei a Argentina entra em terras desconhecidas. Até agora, a Argentina sempre alternou entre conservadores e peronistas, entre peronistas e radicais [corrente política tradicional de centro-direita]. Mas agora estamos entrando em uma situação que marca uma redefinição do sistema político como um todo. E ainda estamos por ver como as alianças serão recompostas.

Javier Milei cumprimenta os apoiadores do lado de fora de sua sede de campanha após vencer o segundo turno das eleições presidenciais em Buenos Aires, Argentina, domingo, 19 de novembro de 2023. Foto: Natacha Pisarenko / AP

Estamos entrando em um nível de incerteza política e de governança, em que não é fácil prever o que Milei poderia fazer para governar sob a pesada herança deixada pelo governo anterior, com pouco apoio e nenhuma experiência na gestão política do Estado. Por outro lado, temos que levar em conta o fato de que termos na região uma grande volatilidade política e eleitoral. A alternância permanente de governos é um fato na Argentina, e o país é o único no continente, com exceção do México, que tem uma eleição de meio período de mandato. Ou seja, se Milei não fizer um bom trabalho, o voto de castigo vai ser brutal.

Qual é o impacto dessa eleição sobre o estado da democracia na Argentina?

Para a democracia argentina, é um voto a favor no importante contexto dos 40 anos de democracia. Foi uma eleição limpa e democrática, e ambos os candidatos reconheceram que foi transparente. Massa admitiu a derrota antes da divulgação oficial dos resultados e seu discurso foi de conciliação. Mas o maior desafio estará no diálogo. A agravada crise econômica do país exige (e precisa urgentemente) reformas com repercussão social significativa, que apenas serão possíveis por meio da negociação e conciliação. Mas o período de transição do governo coloca pressão nas expectativas a meio prazo para a nação. Conflitos e instabilidade podem definir os primeiros momentos do mandato de Milei, e ele vai ter que fomentar um consenso político para não gerar um ataque de pânico no mercado e evitar que continue caindo o valor do peso em relação ao dólar. A experiência argentina indica que só é possível governar realizando acordos parlamentares, então o novo presidente pode encontrar rapidamente limites para as propostas prometidas na campanha.

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