Com apoio da Europa, países norte-africanos empurram migrantes para o deserto


Investigação mostra como países europeus dão apoio e financiamento a operações agressivas para deter dezenas de milhares de pessoas todos os anos e soltá-las em áreas remotas

Por Anthony Faiola, Imogen Piper, Joyce Sohyun Lee, Klaas van Dijken, Maud Jullien e May Bulman
Atualização:

“A Argélia é naquela direção, sigam a luz”, berrou a autoridade tunisiana para migrantes negros. “Se forem vistos por aqui, vocês levarão um tiro.”

François, um camaronês de 38 anos, obedeceu, saltando da carroceria de uma picape nas proximidades da desolada fronteira com a Argélia. Um dia antes, a frágil embarcação que tentava transportá-lo para a Europa juntamente com outros esperançosos subsaarianos — incluindo sua mulher e seu enteado de 6 anos — tinha sido interceptada pela Guarda Costeira da Tunísia nas águas azul-cobalto da costa mediterrânea. Ainda molhados e com frio, o grupo de 30 migrantes, incluindo duas mulheres grávidas, caminhava na direção de sua punição: o deserto.

Sua provação — uma odisseia de pelo menos 555 quilômetros do mar até a areia, relatada por François e comprovada pelos registros de GPS em seu telefone e imagens e vídeos que ele gravou durante nove dias caminhando — ilustra um exemplo das práticas draconianas empregadas em pelo menos três países do Norte da África para dissuadir migrantes subsaarianos de tentar empreender as arriscadas travessias para a Europa.

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As operações clandestinas, com foco principalmente em migrantes negros, têm uma parceira silenciosa: a Europa. Uma investigação conjunta, de um ano, realizada pelo Washington Post, pela Lighthouse Reports e por um consórcio de meios de imprensa internacionais, mostra como a União Europeia e países europeus, individualmente, estão dando apoio e financiamento a operações agressivas de nações norte-africanas destinadas a deter dezenas de milhares de migrantes anualmente e soltá-los em áreas remotas, com frequência desertos inóspitos.

Fundos europeus têm sido usados para treinar agentes e comprar equipamentos para as unidades envolvidas no deslocamento forçado ao deserto e outros abusos de direitos humanos, mostram registros e entrevistas. Migrantes têm sido obrigados a seguir na direção das partes mais desoladas do Norte da África e abandonados sem comida nem água, sendo expostos a sequestros, extorsões, escravizações, torturas, violências sexuais e, nos piores casos, à morte.

Crianças brincam em campo de refugiados na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters
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Forças de segurança espanholas fotografaram migrantes na Mauritânia e formularam listas antes que eles fossem obrigados a seguir para o Mali e caminhar dias a fio em uma região em que violentos grupos islamistas operam, de acordo com depoimentos e documentos.

Na Mauritânia, no Marrocos e na Tunísia veículos da mesma marca e modelo dos usados por forças de segurança de países europeus têm retirado migrantes negros das ruas e os transportado de centros de detenção para regiões remotas, de acordo com imagens gravadas e verificadas, depoimentos de migrantes e entrevistas com autoridades.

Autoridades europeias debatem internamente algumas dessas práticas abusivas pelo menos desde 2019 e foram ligadas a suspeitas em relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da Frontex, a agência de controle de fronteiras da UE.

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Bruxelas forneceu mais de 400 milhões de euros para a Tunísia, o Marrocos e a Mauritânia entre 2015 e 2021 sob seu maior fundo para gestão de migração, o Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África, uma iniciativa para fomentar o crescimento de economias locais e conter o fluxo migratório. Além disso, a UE financiou outras dúzias de projetos difíceis de quantificar em razão da falta de transparência do sistema europeu de financiamento.

Para confrontar um aumento na migração irregular ocorrido no ano passado, a Europa se movimentou para aprofundar parcerias no Norte da África, oferecendo outros 105 milhões de euros para a Tunísia no ano passado e assinando um acordo com a Mauritânia em fevereiro para fornecer mais 210 milhões de euros.

Esta investigação — com foco na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia, os três países com parcerias mais profundas com a UE — é a tentativa mais abrangente de documentar o conhecimento e o envolvimento de europeus sobre operações antimigração no Norte da África. A reportagem tem como base observações diretas de jornalistas, análises de provas visuais, mapeamento geoespacial, documentos internos da UE e entrevistas com 50 migrantes que foram vítimas de deslocamentos forçados, assim como autoridades europeias e norte-africanas e outras fontes familiarizadas com as operações. Como François, muitos migrantes entrevistados só concordaram em conversar com a reportagem sob a condição de ser identificados apenas pelo primeiro nome, por temer represálias.

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Na Tunísia, provas visuais e relatos foram usados para verificar 11 deslocamentos forçados — de até 90 migrantes cada — no deserto próximo às fronteiras com a Líbia e a Argélia, o mais recente este mês, assim como um caso em que migrantes foram levados à fronteira líbia e detidos do outro lado. Segundo relatos, pelo menos 29 pessoas morreram e dúzias desapareceram depois de ser deslocadas forçadamente ou expulsas da Tunísia para a Líbia, de acordo com a Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia e organizações humanitárias.

Imigrantes são resgatados perto da costa da Líbia.  Foto: Valeria Mongelli/Associated Press

A UE, segundo suas próprias leis e tratados internacionais que adere, é obrigada a garantir que seus recursos sejam gastos de maneiras que respeitem direitos humanos fundamentais. Mas a Comissão Europeia, o organismo Executivo do bloco, admitiu que análises sobre direitos humanos não são conduzidas em financiamentos de projetos que envolvem migrantes no exterior. As agências que recebem os fundos europeus têm a incumbência de monitorar as implementações em parceria com consultores externos. Mas a transparência em relação às maneiras que equipamentos e recursos são usados é com frequência opaca, e autoridades europeias graduadas reconhecem privadamente que é “impossível” regular todos os usos.

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Falando aos eurodeputados, em janeiro, Ylva Johansson, a ministra da UE incumbida de gerir a migração, confirmou relatos de deslocamentos forçados ao deserto em pelo menos um país — a Tunísia. “Não posso dizer que essa prática acabou”, reconheceu. Mas ela negou categoricamente que o bloco esteja “financiando” maus-tratos ou deportações de migrantes por meio de apoio financeiro.

Um porta-voz da Comissão Europeia afirmou em um comunicado que a ajuda para a gestão da migração nos países do Norte da África é projetada para combater o tráfico humano e “defender os direitos” dos migrantes. O bloco, segundo o comunicado, busca monitorar programas por meio de “missões de verificação local”, “exercícios de monitoramento” e avaliações externas.

Autoridades graduadas na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia negaram a prática de perfilamento racial e deslocamentos forçados de migrantes para áreas remotas, insistindo que os direitos dos migrantes têm sido respeitados. Mas autoridades tunisianas e mauritanas afirmaram que alguns migrantes foram retornados ou deportados através de suas áridas fronteiras.

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“A realidade é que os Estados europeus não querem sujar as mãos. Não querem ser considerados responsáveis pelas violações de direitos humanos”, afirmou Marie-Laure Basilien-Gainche, jurista e especialista em direitos humanos da universidade francesa Jean Moulin Lyon 3. “Portanto, eles estão terceirizando essas violações para outros Estados. Mas eu considero que, realmente, de acordo com o direito internacional, são eles os responsáveis.”

Críticos notam que as operações também ocorrem em um cenário de crescentes reações em toda a Europa contra a migração irregular, um tema que tem dominado os debates políticos nas campanhas para as críticas eleições de junho para o Parlamento Europeu, nas quais a extrema direita está posicionada para alcançar vitórias-recorde.

Analistas e ex-autoridades afirmam que o objetivo das operações no Norte da África é claro: dissuasão. “A gente tem que dificultar a vida” dos migrantes, afirmou um agente que trabalhou em projetos financiados pelo Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África. A fonte falou sob condição de que seu nome não fosse revelado, para não atrapalhar contratos futuros. “Complicar suas vidas. Então, se um migrante da Guiné está (no Marrocos) e nós o levamos para o Saara duas vezes, na terceira ele (…) pede um retorno voluntário para seu país.”

A investigação determinou, por meio de depoimentos de testemunhas, vídeos gravados por repórteres e imagens verificadas pelo Post, que as operações antimigrantes com frequência envolvem detenções com base em seu perfil racial das pessoas — um uso que foi reconhecido em documentos da UE. Um relatório interno sobre o Marrocos produzido pela Frontex e obtido por meio de solicitação com base em lei de acesso a informações notou “alegações de perfilamento racial e uso excessivo de força por policiais e outras autoridades de segurança contra migrantes, solicitantes de asilo e refugiados, assim como prisões arbitrárias, detenções e realocações forçadas do norte para o sul, o que afetou desproporcionalmente migrantes oriundos de países subsaarianos”.

Na capital marroquina, Rabat, jornalistas observaram três situações em três dias nas quais forças auxiliares que recebem recursos da UE detiveram migrantes negros e os levaram dentro de vans. Dúzias de vídeos verificados registraram operações similares praticadas pelas mesmas agências em Fez, Tânger e Tan-Tan, assim como em Laayoune, no Saara Ocidental, um território controlado pelo Marrocos.

“Quando um negro aparece, eles vêm”, afirmou o guineense Lamine, de 25 anos. Ele relatou que desde o início de 2023 foi detido e espancado consecutivamente em Rabat — e então levado para o interior do país por forças marroquinas, apesar de ter documentos de refugiado emitidos pelo Acnur.

Em um comunicado, o Ministério do Interior do Marrocos classificou como “infundadas” as alegações de perfilamento racial em remoções de migrantes e afirmou que as realocações de migrantes têm objetivo de afastá-los de “redes de tráfico” e “aumentar sua proteção”. Segundo o governo marroquino, o “apoio técnico” europeu para a gestão da migração é “mínimo em comparação com os esforços e custos do nosso país”.

Soldados preparam chá perto de campo de refugiados no deserto.  Foto: Borja Suarez/Reuters

Vagando no deserto

O Saara tornou-se uma punição cada vez mais frequente e perigosa para os migrantes que ousam atravessar o mar para chegar à Europa. François, o camaronês de 38 anos, embarcou quatro vezes em barcos superlotados na costa tunisiana com esperança de chegar à Europa. Em todas as viagens, seu grupo de migrantes foi detido no mar e obrigado a voltar para a terra-firme.

Em três ocasiões, as autoridades transportaram todos os migrantes detidos para a desolada fronteira argelina, disse François ao relatar as experiências. Sua maior provação foi em setembro.

Seu grupo de migrantes, que incluía duas mulheres grávidas, caminhou nove dias. François disse que, em cidades remotas na região da fronteira, os migrantes imploravam por água e pão, que às vezes as pessoas lhes davam. Depois de ser atacado com violência em um vilarejo, disse ele, o grupo se afastou das estradas.

Crianças brincam em dunas enquanto adultos montam acampamento no meio do deserto na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

“No meio do deserto, você olha para a esquerda, para a direita e não tem nada”, afirmou François. Alguns migrantes começaram a alucinar até que encontraram a cidade de Tajerouine.

Relatos de testemunhas e imagens analisadas pelo Post mostram a Guarda Nacional da Tunísia no centro das operações de deslocamento forçado para o deserto. Entre 2015 e 2023, a Polícia Federal da Alemanha acionou 449 agentes e gastou mais de 1 milhão de euros para treinar aproximadamente 4 mil guardas tunisianos. Conforme as operações de deslocamento forçado ocorriam, em novembro de 2023, a Áustria, a Dinamarca e os Países Baixos gastaram 9 milhões de euros em um centro de treinamento de gestão de fronteiras aberto na Tunísia.

“Não acho que a Tunísia é responsável pelo que está acontecendo”, afirmou François. “A UE não gosta da gente. Por que o homem subsaariano é considerado lixo?”

Expulsões coletivas abusivas

No ano passado, a UE registou 380.227 chegadas irregulares à fronteira, o terceiro aumento em três anos e o número mais elevado desde a crise de refugiados encabeçada pelos sírios na região, de 2015 a 2016. As consequências políticas fazem com que a Europa se esforce para transformar o Norte da África em um cordão de isolamento para conter as entradas ilegais.

Na Tunísia, o presidente Kais Saied reconheceu recentemente a “coordenação contínua” dos regressos migratórios com os “países vizinhos” e disse que as forças militares tunisinas estavam intervindo para impedir a imigração irregular. “A Tunísia não terá um lugar para eles, e a Tunísia está trabalhando para não ser um ponto de trânsito para eles”, disse ele ao seu conselho de segurança nacional no início deste mês.

Presidente da Tunísia, Kais Saied, vota nas eleições legislativas.  Foto: Slim Abid/Associated Press

As nacionalidades dos imigrantes variam muito, dependendo dos seus pontos de acesso à Europa, sendo a maior rota – atravessando o Mediterrâneo central até a Itália – dominada no ano passado por guineenses, tunisianos e marfinenses.

Na Tunísia, onde Saied aludiu a uma “grande teoria de substituição” segundo a qual os africanos subsaarianos estariam tentando suplantar os árabes no país, com os imigrantes negros sendo alvo de prisão, táticas mais agressivas levaram à redução do fluxo na rota central pelo Mediterrâneo. Essa rota registou uma queda de 59% nas chegadas no primeiro trimestre deste ano, juntamente com uma mudança demográfica: até agora, em 2024, nenhum país subsaariano figura entre as principais nacionalidades que a percorrem.

Em um comunicado, o ministério dos assuntos estrangeiros tunisiano insistiu que defende os direitos dos imigrantes, que só são expulsos “voluntariamente”, e somente para seus países de origem. O ministério rejeitou todas as alegações nesta reportagem feitas por imigrantes contra as suas forças de segurança, denunciando-as como inflamatórias.

O ministério anunciou 2.718 operações durante os primeiros quatro meses deste ano que, segundo ele, “salvaram” e “impediram” 21.545 imigrantes de cruzarem o mar rumo à Europa, e impediram outros 21.462 de “se infiltrarem no território tunisino” por terra.

As autoridades europeias celebraram esses resultados.

“Essa cooperação traz muitos resultados. Estou pensando, por exemplo, na gestão de fronteiras”, disse a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, de extrema direita, durante uma visita a Túnis em abril, quando elogiou os esforços de Saied.

Na Mauritânia, as autoridades espanholas permitiram táticas agressivas, fornecendo veículos para o transporte de imigrantes, ajudando nas intercepções marítimas, participando de operações contra imigrantes e contrabandistas de seres humanos e financiando novos centros de detenção, de acordo com documentos, entrevistas com autoridades mauritanas e vídeos promocionais espanhóis.

Equipes de resgate ajudam imigrante a desembarcar na Espanha. Foto: Borja Suarez/Reuters

As autoridades espanholas também parecem ser cúmplices nos deslocamentos forçados no deserto.

Em janeiro, Idiatou, 23 anos, e Bella, 27 anos, duas amigas da Guiné, foram levadas para o centro de detenção de imigrantes Ksar – um conjunto de edifícios murados e fortemente vigiados – na capital mauritana, Nouakchott, após uma tentativa fracassada de atravessar para Espanha pelo mar. O centro se tornou um ponto de trânsito utilizado pelas autoridades mauritanas antes de transportarem imigrantes para a distante fronteira com o Mali, devastado pela guerra, muitas vezes sem comida ou água, de acordo com entrevistas com detidos e trabalhadores de agências humanitárias.

Uma pessoa familiarizada com o encarceramento de Idiatou e Bella disse que dois agentes da polícia espanhola fotografaram as mulheres durante a sua detenção. Segundo a pessoa, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, os agentes analisaram ainda uma lista de prisioneiros – obtida pelo consórcio de meios de comunicação – que foram posteriormente deportados para o Mali. Tal como ocorreu com outros imigrantes entrevistados para este artigo, ambas as mulheres disseram que lhes foi negado o devido processo.

Em uma entrevista, as mulheres recordaram ter visto agentes “brancos” que as autoridades mauritanas identificaram como policiais espanhóis antes de serem embarcadas em um ônibus para deportação. Os repórteres no local observaram aquele ônibus, um Toyota Coaster branco com vidros escuros, ao partir de Ksar, e o seguiram por 16 quilômetros ao longo da autoestrada N3, que leva ao Mali.

Muitos veículos utilizados pelas autoridades mauritanas para deter e deportar imigrantes foram comprados com fundos espanhóis, de acordo com um alto funcionário europeu que falou sob condição de anonimato para debater um tópico delicado. Repórteres no local filmaram picapes Toyota entrando e saindo de centros de detenção que eram da mesma marca e modelo que as licitadas pela agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP e pelo ministério do interior espanhol. Estas incluem picapes Toyota Hilux fornecidas pela Espanha em 2019 com o propósito declarado de serem utilizadas pelas autoridades mauritanas para combater a “imigração ilegal”, de acordo com os documentos.

Um relatório de membros do Parlamento Europeu que visitaram a Mauritânia em dezembro descreveu uma equipe da guarda costeira espanhola presente no local quando os imigrantes eram devolvidos à costa após tentarem uma travessia marítima. As notas do relatório afirmavam que, depois de os migrantes terem sido examinados, a maioria foi “rapidamente conduzida para a fronteira”. Gilles Lebreton, um membro do Parlamento Europeu da extrema-direita francesa que esteve nessa missão, confirmou que os funcionários foram informados a respeito das deportações para as fronteiras com o Mali e o Senegal.

Um documento vazado da ACNUR de 2023 também afirmava que a agência entrevistou mais de 300 pessoas deportadas da Mauritânia para Gogui, no Mali. Um documento do Parlamento Europeu a respeito das negociações entre a agência de fronteiras da UE e a Mauritânia disse que os requerentes de asilo e imigrantes na Mauritânia enfrentaram “expulsões coletivas abusivas para o Senegal e o Mali” e deportação sem o devido processo.

Em resposta a um pedido de comentários detalhados, o ministério do interior espanhol não confirmou nem negou conhecimento de deslocamentos forçados para o deserto, da utilização de veículos adquiridos com fundos espanhóis nessas operações, ou de que os seus agentes se encontravam em um centro de detenção documentando imigrantes a serem deportados involuntariamente.

O ministério reconheceu que a Espanha enviou uma força de cerca de 50 agentes da polícia e da guarda civil para a Mauritânia para “investigar e desmantelar as máfias do tráfico de seres humanos”. Essas forças, disse o ministério, operavam com “pleno respeito” pelos “direitos humanos e liberdades” dos imigrantes.

A agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP negou ter conhecimento da existência de deslocamentos forçados para o deserto e disse que os agentes da polícia espanhola que trabalham em seus programas na Mauritânia “jamais testemunharam qualquer ação da polícia mauritana que violasse os direitos humanos”. Esses agentes, disse a agência, também negaram ter fotografado “nenhum imigrante em nenhum centro”. Recusou-se a confirmar se os veículos filmados pelo consórcio em operações de combate à imigração foram fornecidos pela agência, alegando preocupações de segurança.

Questionado a respeito dos agentes da polícia espanhola no centro de detenção, Nani Ould Chrougha, porta-voz do governo da Mauritânia, disse em uma declaração por escrito que um acordo bilateral com Madri “prevê uma série de compromissos mútuos, incluindo a troca de informações na luta contra a imigração ilegal, respeitando ao mesmo tempo a privacidade dos indivíduos e a proteção dos seus dados pessoais”.

Ele disse que os imigrantes que tentam atravessar em direção à Europa estão sujeitos à deportação, mas rejeitou as alegações de que os imigrantes na Mauritânia sofram maus-tratos de qualquer tipo. Os deportados para países vizinhos, disse ele, estavam sendo entregues às “autoridades competentes” em “postos de fronteira oficiais”. Afirmou que os imigrantes estavam apenas sendo repatriados para seus países de origem.

As duas mulheres da Guiné, no entanto, disseram que as forças mauritanas deixaram seu grupo em uma parte desolada e despovoada da fronteira com o Mali, e depois “perseguiram” o grupo em direção à fronteira “como animais”. Eles caminharam por uma paisagem monocromática durante quatro dias até chegarem a uma aldeia do Mali, onde finalmente conseguiram uma carona até um parente no Senegal.

A tática pareceu surtir o efeito desejado. “Se eu soubesse que tudo isso iria acontecer, não teria tentado” ir para a Europa, disse Bella. “Eu juro que não faria isso. Porque sofremos muito. … Não temos nada.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO E AUGUSTO CALIL

“A Argélia é naquela direção, sigam a luz”, berrou a autoridade tunisiana para migrantes negros. “Se forem vistos por aqui, vocês levarão um tiro.”

François, um camaronês de 38 anos, obedeceu, saltando da carroceria de uma picape nas proximidades da desolada fronteira com a Argélia. Um dia antes, a frágil embarcação que tentava transportá-lo para a Europa juntamente com outros esperançosos subsaarianos — incluindo sua mulher e seu enteado de 6 anos — tinha sido interceptada pela Guarda Costeira da Tunísia nas águas azul-cobalto da costa mediterrânea. Ainda molhados e com frio, o grupo de 30 migrantes, incluindo duas mulheres grávidas, caminhava na direção de sua punição: o deserto.

Sua provação — uma odisseia de pelo menos 555 quilômetros do mar até a areia, relatada por François e comprovada pelos registros de GPS em seu telefone e imagens e vídeos que ele gravou durante nove dias caminhando — ilustra um exemplo das práticas draconianas empregadas em pelo menos três países do Norte da África para dissuadir migrantes subsaarianos de tentar empreender as arriscadas travessias para a Europa.

As operações clandestinas, com foco principalmente em migrantes negros, têm uma parceira silenciosa: a Europa. Uma investigação conjunta, de um ano, realizada pelo Washington Post, pela Lighthouse Reports e por um consórcio de meios de imprensa internacionais, mostra como a União Europeia e países europeus, individualmente, estão dando apoio e financiamento a operações agressivas de nações norte-africanas destinadas a deter dezenas de milhares de migrantes anualmente e soltá-los em áreas remotas, com frequência desertos inóspitos.

Fundos europeus têm sido usados para treinar agentes e comprar equipamentos para as unidades envolvidas no deslocamento forçado ao deserto e outros abusos de direitos humanos, mostram registros e entrevistas. Migrantes têm sido obrigados a seguir na direção das partes mais desoladas do Norte da África e abandonados sem comida nem água, sendo expostos a sequestros, extorsões, escravizações, torturas, violências sexuais e, nos piores casos, à morte.

Crianças brincam em campo de refugiados na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

Forças de segurança espanholas fotografaram migrantes na Mauritânia e formularam listas antes que eles fossem obrigados a seguir para o Mali e caminhar dias a fio em uma região em que violentos grupos islamistas operam, de acordo com depoimentos e documentos.

Na Mauritânia, no Marrocos e na Tunísia veículos da mesma marca e modelo dos usados por forças de segurança de países europeus têm retirado migrantes negros das ruas e os transportado de centros de detenção para regiões remotas, de acordo com imagens gravadas e verificadas, depoimentos de migrantes e entrevistas com autoridades.

Autoridades europeias debatem internamente algumas dessas práticas abusivas pelo menos desde 2019 e foram ligadas a suspeitas em relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da Frontex, a agência de controle de fronteiras da UE.

Bruxelas forneceu mais de 400 milhões de euros para a Tunísia, o Marrocos e a Mauritânia entre 2015 e 2021 sob seu maior fundo para gestão de migração, o Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África, uma iniciativa para fomentar o crescimento de economias locais e conter o fluxo migratório. Além disso, a UE financiou outras dúzias de projetos difíceis de quantificar em razão da falta de transparência do sistema europeu de financiamento.

Para confrontar um aumento na migração irregular ocorrido no ano passado, a Europa se movimentou para aprofundar parcerias no Norte da África, oferecendo outros 105 milhões de euros para a Tunísia no ano passado e assinando um acordo com a Mauritânia em fevereiro para fornecer mais 210 milhões de euros.

Esta investigação — com foco na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia, os três países com parcerias mais profundas com a UE — é a tentativa mais abrangente de documentar o conhecimento e o envolvimento de europeus sobre operações antimigração no Norte da África. A reportagem tem como base observações diretas de jornalistas, análises de provas visuais, mapeamento geoespacial, documentos internos da UE e entrevistas com 50 migrantes que foram vítimas de deslocamentos forçados, assim como autoridades europeias e norte-africanas e outras fontes familiarizadas com as operações. Como François, muitos migrantes entrevistados só concordaram em conversar com a reportagem sob a condição de ser identificados apenas pelo primeiro nome, por temer represálias.

Na Tunísia, provas visuais e relatos foram usados para verificar 11 deslocamentos forçados — de até 90 migrantes cada — no deserto próximo às fronteiras com a Líbia e a Argélia, o mais recente este mês, assim como um caso em que migrantes foram levados à fronteira líbia e detidos do outro lado. Segundo relatos, pelo menos 29 pessoas morreram e dúzias desapareceram depois de ser deslocadas forçadamente ou expulsas da Tunísia para a Líbia, de acordo com a Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia e organizações humanitárias.

Imigrantes são resgatados perto da costa da Líbia.  Foto: Valeria Mongelli/Associated Press

A UE, segundo suas próprias leis e tratados internacionais que adere, é obrigada a garantir que seus recursos sejam gastos de maneiras que respeitem direitos humanos fundamentais. Mas a Comissão Europeia, o organismo Executivo do bloco, admitiu que análises sobre direitos humanos não são conduzidas em financiamentos de projetos que envolvem migrantes no exterior. As agências que recebem os fundos europeus têm a incumbência de monitorar as implementações em parceria com consultores externos. Mas a transparência em relação às maneiras que equipamentos e recursos são usados é com frequência opaca, e autoridades europeias graduadas reconhecem privadamente que é “impossível” regular todos os usos.

Falando aos eurodeputados, em janeiro, Ylva Johansson, a ministra da UE incumbida de gerir a migração, confirmou relatos de deslocamentos forçados ao deserto em pelo menos um país — a Tunísia. “Não posso dizer que essa prática acabou”, reconheceu. Mas ela negou categoricamente que o bloco esteja “financiando” maus-tratos ou deportações de migrantes por meio de apoio financeiro.

Um porta-voz da Comissão Europeia afirmou em um comunicado que a ajuda para a gestão da migração nos países do Norte da África é projetada para combater o tráfico humano e “defender os direitos” dos migrantes. O bloco, segundo o comunicado, busca monitorar programas por meio de “missões de verificação local”, “exercícios de monitoramento” e avaliações externas.

Autoridades graduadas na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia negaram a prática de perfilamento racial e deslocamentos forçados de migrantes para áreas remotas, insistindo que os direitos dos migrantes têm sido respeitados. Mas autoridades tunisianas e mauritanas afirmaram que alguns migrantes foram retornados ou deportados através de suas áridas fronteiras.

“A realidade é que os Estados europeus não querem sujar as mãos. Não querem ser considerados responsáveis pelas violações de direitos humanos”, afirmou Marie-Laure Basilien-Gainche, jurista e especialista em direitos humanos da universidade francesa Jean Moulin Lyon 3. “Portanto, eles estão terceirizando essas violações para outros Estados. Mas eu considero que, realmente, de acordo com o direito internacional, são eles os responsáveis.”

Críticos notam que as operações também ocorrem em um cenário de crescentes reações em toda a Europa contra a migração irregular, um tema que tem dominado os debates políticos nas campanhas para as críticas eleições de junho para o Parlamento Europeu, nas quais a extrema direita está posicionada para alcançar vitórias-recorde.

Analistas e ex-autoridades afirmam que o objetivo das operações no Norte da África é claro: dissuasão. “A gente tem que dificultar a vida” dos migrantes, afirmou um agente que trabalhou em projetos financiados pelo Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África. A fonte falou sob condição de que seu nome não fosse revelado, para não atrapalhar contratos futuros. “Complicar suas vidas. Então, se um migrante da Guiné está (no Marrocos) e nós o levamos para o Saara duas vezes, na terceira ele (…) pede um retorno voluntário para seu país.”

A investigação determinou, por meio de depoimentos de testemunhas, vídeos gravados por repórteres e imagens verificadas pelo Post, que as operações antimigrantes com frequência envolvem detenções com base em seu perfil racial das pessoas — um uso que foi reconhecido em documentos da UE. Um relatório interno sobre o Marrocos produzido pela Frontex e obtido por meio de solicitação com base em lei de acesso a informações notou “alegações de perfilamento racial e uso excessivo de força por policiais e outras autoridades de segurança contra migrantes, solicitantes de asilo e refugiados, assim como prisões arbitrárias, detenções e realocações forçadas do norte para o sul, o que afetou desproporcionalmente migrantes oriundos de países subsaarianos”.

Na capital marroquina, Rabat, jornalistas observaram três situações em três dias nas quais forças auxiliares que recebem recursos da UE detiveram migrantes negros e os levaram dentro de vans. Dúzias de vídeos verificados registraram operações similares praticadas pelas mesmas agências em Fez, Tânger e Tan-Tan, assim como em Laayoune, no Saara Ocidental, um território controlado pelo Marrocos.

“Quando um negro aparece, eles vêm”, afirmou o guineense Lamine, de 25 anos. Ele relatou que desde o início de 2023 foi detido e espancado consecutivamente em Rabat — e então levado para o interior do país por forças marroquinas, apesar de ter documentos de refugiado emitidos pelo Acnur.

Em um comunicado, o Ministério do Interior do Marrocos classificou como “infundadas” as alegações de perfilamento racial em remoções de migrantes e afirmou que as realocações de migrantes têm objetivo de afastá-los de “redes de tráfico” e “aumentar sua proteção”. Segundo o governo marroquino, o “apoio técnico” europeu para a gestão da migração é “mínimo em comparação com os esforços e custos do nosso país”.

Soldados preparam chá perto de campo de refugiados no deserto.  Foto: Borja Suarez/Reuters

Vagando no deserto

O Saara tornou-se uma punição cada vez mais frequente e perigosa para os migrantes que ousam atravessar o mar para chegar à Europa. François, o camaronês de 38 anos, embarcou quatro vezes em barcos superlotados na costa tunisiana com esperança de chegar à Europa. Em todas as viagens, seu grupo de migrantes foi detido no mar e obrigado a voltar para a terra-firme.

Em três ocasiões, as autoridades transportaram todos os migrantes detidos para a desolada fronteira argelina, disse François ao relatar as experiências. Sua maior provação foi em setembro.

Seu grupo de migrantes, que incluía duas mulheres grávidas, caminhou nove dias. François disse que, em cidades remotas na região da fronteira, os migrantes imploravam por água e pão, que às vezes as pessoas lhes davam. Depois de ser atacado com violência em um vilarejo, disse ele, o grupo se afastou das estradas.

Crianças brincam em dunas enquanto adultos montam acampamento no meio do deserto na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

“No meio do deserto, você olha para a esquerda, para a direita e não tem nada”, afirmou François. Alguns migrantes começaram a alucinar até que encontraram a cidade de Tajerouine.

Relatos de testemunhas e imagens analisadas pelo Post mostram a Guarda Nacional da Tunísia no centro das operações de deslocamento forçado para o deserto. Entre 2015 e 2023, a Polícia Federal da Alemanha acionou 449 agentes e gastou mais de 1 milhão de euros para treinar aproximadamente 4 mil guardas tunisianos. Conforme as operações de deslocamento forçado ocorriam, em novembro de 2023, a Áustria, a Dinamarca e os Países Baixos gastaram 9 milhões de euros em um centro de treinamento de gestão de fronteiras aberto na Tunísia.

“Não acho que a Tunísia é responsável pelo que está acontecendo”, afirmou François. “A UE não gosta da gente. Por que o homem subsaariano é considerado lixo?”

Expulsões coletivas abusivas

No ano passado, a UE registou 380.227 chegadas irregulares à fronteira, o terceiro aumento em três anos e o número mais elevado desde a crise de refugiados encabeçada pelos sírios na região, de 2015 a 2016. As consequências políticas fazem com que a Europa se esforce para transformar o Norte da África em um cordão de isolamento para conter as entradas ilegais.

Na Tunísia, o presidente Kais Saied reconheceu recentemente a “coordenação contínua” dos regressos migratórios com os “países vizinhos” e disse que as forças militares tunisinas estavam intervindo para impedir a imigração irregular. “A Tunísia não terá um lugar para eles, e a Tunísia está trabalhando para não ser um ponto de trânsito para eles”, disse ele ao seu conselho de segurança nacional no início deste mês.

Presidente da Tunísia, Kais Saied, vota nas eleições legislativas.  Foto: Slim Abid/Associated Press

As nacionalidades dos imigrantes variam muito, dependendo dos seus pontos de acesso à Europa, sendo a maior rota – atravessando o Mediterrâneo central até a Itália – dominada no ano passado por guineenses, tunisianos e marfinenses.

Na Tunísia, onde Saied aludiu a uma “grande teoria de substituição” segundo a qual os africanos subsaarianos estariam tentando suplantar os árabes no país, com os imigrantes negros sendo alvo de prisão, táticas mais agressivas levaram à redução do fluxo na rota central pelo Mediterrâneo. Essa rota registou uma queda de 59% nas chegadas no primeiro trimestre deste ano, juntamente com uma mudança demográfica: até agora, em 2024, nenhum país subsaariano figura entre as principais nacionalidades que a percorrem.

Em um comunicado, o ministério dos assuntos estrangeiros tunisiano insistiu que defende os direitos dos imigrantes, que só são expulsos “voluntariamente”, e somente para seus países de origem. O ministério rejeitou todas as alegações nesta reportagem feitas por imigrantes contra as suas forças de segurança, denunciando-as como inflamatórias.

O ministério anunciou 2.718 operações durante os primeiros quatro meses deste ano que, segundo ele, “salvaram” e “impediram” 21.545 imigrantes de cruzarem o mar rumo à Europa, e impediram outros 21.462 de “se infiltrarem no território tunisino” por terra.

As autoridades europeias celebraram esses resultados.

“Essa cooperação traz muitos resultados. Estou pensando, por exemplo, na gestão de fronteiras”, disse a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, de extrema direita, durante uma visita a Túnis em abril, quando elogiou os esforços de Saied.

Na Mauritânia, as autoridades espanholas permitiram táticas agressivas, fornecendo veículos para o transporte de imigrantes, ajudando nas intercepções marítimas, participando de operações contra imigrantes e contrabandistas de seres humanos e financiando novos centros de detenção, de acordo com documentos, entrevistas com autoridades mauritanas e vídeos promocionais espanhóis.

Equipes de resgate ajudam imigrante a desembarcar na Espanha. Foto: Borja Suarez/Reuters

As autoridades espanholas também parecem ser cúmplices nos deslocamentos forçados no deserto.

Em janeiro, Idiatou, 23 anos, e Bella, 27 anos, duas amigas da Guiné, foram levadas para o centro de detenção de imigrantes Ksar – um conjunto de edifícios murados e fortemente vigiados – na capital mauritana, Nouakchott, após uma tentativa fracassada de atravessar para Espanha pelo mar. O centro se tornou um ponto de trânsito utilizado pelas autoridades mauritanas antes de transportarem imigrantes para a distante fronteira com o Mali, devastado pela guerra, muitas vezes sem comida ou água, de acordo com entrevistas com detidos e trabalhadores de agências humanitárias.

Uma pessoa familiarizada com o encarceramento de Idiatou e Bella disse que dois agentes da polícia espanhola fotografaram as mulheres durante a sua detenção. Segundo a pessoa, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, os agentes analisaram ainda uma lista de prisioneiros – obtida pelo consórcio de meios de comunicação – que foram posteriormente deportados para o Mali. Tal como ocorreu com outros imigrantes entrevistados para este artigo, ambas as mulheres disseram que lhes foi negado o devido processo.

Em uma entrevista, as mulheres recordaram ter visto agentes “brancos” que as autoridades mauritanas identificaram como policiais espanhóis antes de serem embarcadas em um ônibus para deportação. Os repórteres no local observaram aquele ônibus, um Toyota Coaster branco com vidros escuros, ao partir de Ksar, e o seguiram por 16 quilômetros ao longo da autoestrada N3, que leva ao Mali.

Muitos veículos utilizados pelas autoridades mauritanas para deter e deportar imigrantes foram comprados com fundos espanhóis, de acordo com um alto funcionário europeu que falou sob condição de anonimato para debater um tópico delicado. Repórteres no local filmaram picapes Toyota entrando e saindo de centros de detenção que eram da mesma marca e modelo que as licitadas pela agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP e pelo ministério do interior espanhol. Estas incluem picapes Toyota Hilux fornecidas pela Espanha em 2019 com o propósito declarado de serem utilizadas pelas autoridades mauritanas para combater a “imigração ilegal”, de acordo com os documentos.

Um relatório de membros do Parlamento Europeu que visitaram a Mauritânia em dezembro descreveu uma equipe da guarda costeira espanhola presente no local quando os imigrantes eram devolvidos à costa após tentarem uma travessia marítima. As notas do relatório afirmavam que, depois de os migrantes terem sido examinados, a maioria foi “rapidamente conduzida para a fronteira”. Gilles Lebreton, um membro do Parlamento Europeu da extrema-direita francesa que esteve nessa missão, confirmou que os funcionários foram informados a respeito das deportações para as fronteiras com o Mali e o Senegal.

Um documento vazado da ACNUR de 2023 também afirmava que a agência entrevistou mais de 300 pessoas deportadas da Mauritânia para Gogui, no Mali. Um documento do Parlamento Europeu a respeito das negociações entre a agência de fronteiras da UE e a Mauritânia disse que os requerentes de asilo e imigrantes na Mauritânia enfrentaram “expulsões coletivas abusivas para o Senegal e o Mali” e deportação sem o devido processo.

Em resposta a um pedido de comentários detalhados, o ministério do interior espanhol não confirmou nem negou conhecimento de deslocamentos forçados para o deserto, da utilização de veículos adquiridos com fundos espanhóis nessas operações, ou de que os seus agentes se encontravam em um centro de detenção documentando imigrantes a serem deportados involuntariamente.

O ministério reconheceu que a Espanha enviou uma força de cerca de 50 agentes da polícia e da guarda civil para a Mauritânia para “investigar e desmantelar as máfias do tráfico de seres humanos”. Essas forças, disse o ministério, operavam com “pleno respeito” pelos “direitos humanos e liberdades” dos imigrantes.

A agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP negou ter conhecimento da existência de deslocamentos forçados para o deserto e disse que os agentes da polícia espanhola que trabalham em seus programas na Mauritânia “jamais testemunharam qualquer ação da polícia mauritana que violasse os direitos humanos”. Esses agentes, disse a agência, também negaram ter fotografado “nenhum imigrante em nenhum centro”. Recusou-se a confirmar se os veículos filmados pelo consórcio em operações de combate à imigração foram fornecidos pela agência, alegando preocupações de segurança.

Questionado a respeito dos agentes da polícia espanhola no centro de detenção, Nani Ould Chrougha, porta-voz do governo da Mauritânia, disse em uma declaração por escrito que um acordo bilateral com Madri “prevê uma série de compromissos mútuos, incluindo a troca de informações na luta contra a imigração ilegal, respeitando ao mesmo tempo a privacidade dos indivíduos e a proteção dos seus dados pessoais”.

Ele disse que os imigrantes que tentam atravessar em direção à Europa estão sujeitos à deportação, mas rejeitou as alegações de que os imigrantes na Mauritânia sofram maus-tratos de qualquer tipo. Os deportados para países vizinhos, disse ele, estavam sendo entregues às “autoridades competentes” em “postos de fronteira oficiais”. Afirmou que os imigrantes estavam apenas sendo repatriados para seus países de origem.

As duas mulheres da Guiné, no entanto, disseram que as forças mauritanas deixaram seu grupo em uma parte desolada e despovoada da fronteira com o Mali, e depois “perseguiram” o grupo em direção à fronteira “como animais”. Eles caminharam por uma paisagem monocromática durante quatro dias até chegarem a uma aldeia do Mali, onde finalmente conseguiram uma carona até um parente no Senegal.

A tática pareceu surtir o efeito desejado. “Se eu soubesse que tudo isso iria acontecer, não teria tentado” ir para a Europa, disse Bella. “Eu juro que não faria isso. Porque sofremos muito. … Não temos nada.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO E AUGUSTO CALIL

“A Argélia é naquela direção, sigam a luz”, berrou a autoridade tunisiana para migrantes negros. “Se forem vistos por aqui, vocês levarão um tiro.”

François, um camaronês de 38 anos, obedeceu, saltando da carroceria de uma picape nas proximidades da desolada fronteira com a Argélia. Um dia antes, a frágil embarcação que tentava transportá-lo para a Europa juntamente com outros esperançosos subsaarianos — incluindo sua mulher e seu enteado de 6 anos — tinha sido interceptada pela Guarda Costeira da Tunísia nas águas azul-cobalto da costa mediterrânea. Ainda molhados e com frio, o grupo de 30 migrantes, incluindo duas mulheres grávidas, caminhava na direção de sua punição: o deserto.

Sua provação — uma odisseia de pelo menos 555 quilômetros do mar até a areia, relatada por François e comprovada pelos registros de GPS em seu telefone e imagens e vídeos que ele gravou durante nove dias caminhando — ilustra um exemplo das práticas draconianas empregadas em pelo menos três países do Norte da África para dissuadir migrantes subsaarianos de tentar empreender as arriscadas travessias para a Europa.

As operações clandestinas, com foco principalmente em migrantes negros, têm uma parceira silenciosa: a Europa. Uma investigação conjunta, de um ano, realizada pelo Washington Post, pela Lighthouse Reports e por um consórcio de meios de imprensa internacionais, mostra como a União Europeia e países europeus, individualmente, estão dando apoio e financiamento a operações agressivas de nações norte-africanas destinadas a deter dezenas de milhares de migrantes anualmente e soltá-los em áreas remotas, com frequência desertos inóspitos.

Fundos europeus têm sido usados para treinar agentes e comprar equipamentos para as unidades envolvidas no deslocamento forçado ao deserto e outros abusos de direitos humanos, mostram registros e entrevistas. Migrantes têm sido obrigados a seguir na direção das partes mais desoladas do Norte da África e abandonados sem comida nem água, sendo expostos a sequestros, extorsões, escravizações, torturas, violências sexuais e, nos piores casos, à morte.

Crianças brincam em campo de refugiados na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

Forças de segurança espanholas fotografaram migrantes na Mauritânia e formularam listas antes que eles fossem obrigados a seguir para o Mali e caminhar dias a fio em uma região em que violentos grupos islamistas operam, de acordo com depoimentos e documentos.

Na Mauritânia, no Marrocos e na Tunísia veículos da mesma marca e modelo dos usados por forças de segurança de países europeus têm retirado migrantes negros das ruas e os transportado de centros de detenção para regiões remotas, de acordo com imagens gravadas e verificadas, depoimentos de migrantes e entrevistas com autoridades.

Autoridades europeias debatem internamente algumas dessas práticas abusivas pelo menos desde 2019 e foram ligadas a suspeitas em relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da Frontex, a agência de controle de fronteiras da UE.

Bruxelas forneceu mais de 400 milhões de euros para a Tunísia, o Marrocos e a Mauritânia entre 2015 e 2021 sob seu maior fundo para gestão de migração, o Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África, uma iniciativa para fomentar o crescimento de economias locais e conter o fluxo migratório. Além disso, a UE financiou outras dúzias de projetos difíceis de quantificar em razão da falta de transparência do sistema europeu de financiamento.

Para confrontar um aumento na migração irregular ocorrido no ano passado, a Europa se movimentou para aprofundar parcerias no Norte da África, oferecendo outros 105 milhões de euros para a Tunísia no ano passado e assinando um acordo com a Mauritânia em fevereiro para fornecer mais 210 milhões de euros.

Esta investigação — com foco na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia, os três países com parcerias mais profundas com a UE — é a tentativa mais abrangente de documentar o conhecimento e o envolvimento de europeus sobre operações antimigração no Norte da África. A reportagem tem como base observações diretas de jornalistas, análises de provas visuais, mapeamento geoespacial, documentos internos da UE e entrevistas com 50 migrantes que foram vítimas de deslocamentos forçados, assim como autoridades europeias e norte-africanas e outras fontes familiarizadas com as operações. Como François, muitos migrantes entrevistados só concordaram em conversar com a reportagem sob a condição de ser identificados apenas pelo primeiro nome, por temer represálias.

Na Tunísia, provas visuais e relatos foram usados para verificar 11 deslocamentos forçados — de até 90 migrantes cada — no deserto próximo às fronteiras com a Líbia e a Argélia, o mais recente este mês, assim como um caso em que migrantes foram levados à fronteira líbia e detidos do outro lado. Segundo relatos, pelo menos 29 pessoas morreram e dúzias desapareceram depois de ser deslocadas forçadamente ou expulsas da Tunísia para a Líbia, de acordo com a Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia e organizações humanitárias.

Imigrantes são resgatados perto da costa da Líbia.  Foto: Valeria Mongelli/Associated Press

A UE, segundo suas próprias leis e tratados internacionais que adere, é obrigada a garantir que seus recursos sejam gastos de maneiras que respeitem direitos humanos fundamentais. Mas a Comissão Europeia, o organismo Executivo do bloco, admitiu que análises sobre direitos humanos não são conduzidas em financiamentos de projetos que envolvem migrantes no exterior. As agências que recebem os fundos europeus têm a incumbência de monitorar as implementações em parceria com consultores externos. Mas a transparência em relação às maneiras que equipamentos e recursos são usados é com frequência opaca, e autoridades europeias graduadas reconhecem privadamente que é “impossível” regular todos os usos.

Falando aos eurodeputados, em janeiro, Ylva Johansson, a ministra da UE incumbida de gerir a migração, confirmou relatos de deslocamentos forçados ao deserto em pelo menos um país — a Tunísia. “Não posso dizer que essa prática acabou”, reconheceu. Mas ela negou categoricamente que o bloco esteja “financiando” maus-tratos ou deportações de migrantes por meio de apoio financeiro.

Um porta-voz da Comissão Europeia afirmou em um comunicado que a ajuda para a gestão da migração nos países do Norte da África é projetada para combater o tráfico humano e “defender os direitos” dos migrantes. O bloco, segundo o comunicado, busca monitorar programas por meio de “missões de verificação local”, “exercícios de monitoramento” e avaliações externas.

Autoridades graduadas na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia negaram a prática de perfilamento racial e deslocamentos forçados de migrantes para áreas remotas, insistindo que os direitos dos migrantes têm sido respeitados. Mas autoridades tunisianas e mauritanas afirmaram que alguns migrantes foram retornados ou deportados através de suas áridas fronteiras.

“A realidade é que os Estados europeus não querem sujar as mãos. Não querem ser considerados responsáveis pelas violações de direitos humanos”, afirmou Marie-Laure Basilien-Gainche, jurista e especialista em direitos humanos da universidade francesa Jean Moulin Lyon 3. “Portanto, eles estão terceirizando essas violações para outros Estados. Mas eu considero que, realmente, de acordo com o direito internacional, são eles os responsáveis.”

Críticos notam que as operações também ocorrem em um cenário de crescentes reações em toda a Europa contra a migração irregular, um tema que tem dominado os debates políticos nas campanhas para as críticas eleições de junho para o Parlamento Europeu, nas quais a extrema direita está posicionada para alcançar vitórias-recorde.

Analistas e ex-autoridades afirmam que o objetivo das operações no Norte da África é claro: dissuasão. “A gente tem que dificultar a vida” dos migrantes, afirmou um agente que trabalhou em projetos financiados pelo Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África. A fonte falou sob condição de que seu nome não fosse revelado, para não atrapalhar contratos futuros. “Complicar suas vidas. Então, se um migrante da Guiné está (no Marrocos) e nós o levamos para o Saara duas vezes, na terceira ele (…) pede um retorno voluntário para seu país.”

A investigação determinou, por meio de depoimentos de testemunhas, vídeos gravados por repórteres e imagens verificadas pelo Post, que as operações antimigrantes com frequência envolvem detenções com base em seu perfil racial das pessoas — um uso que foi reconhecido em documentos da UE. Um relatório interno sobre o Marrocos produzido pela Frontex e obtido por meio de solicitação com base em lei de acesso a informações notou “alegações de perfilamento racial e uso excessivo de força por policiais e outras autoridades de segurança contra migrantes, solicitantes de asilo e refugiados, assim como prisões arbitrárias, detenções e realocações forçadas do norte para o sul, o que afetou desproporcionalmente migrantes oriundos de países subsaarianos”.

Na capital marroquina, Rabat, jornalistas observaram três situações em três dias nas quais forças auxiliares que recebem recursos da UE detiveram migrantes negros e os levaram dentro de vans. Dúzias de vídeos verificados registraram operações similares praticadas pelas mesmas agências em Fez, Tânger e Tan-Tan, assim como em Laayoune, no Saara Ocidental, um território controlado pelo Marrocos.

“Quando um negro aparece, eles vêm”, afirmou o guineense Lamine, de 25 anos. Ele relatou que desde o início de 2023 foi detido e espancado consecutivamente em Rabat — e então levado para o interior do país por forças marroquinas, apesar de ter documentos de refugiado emitidos pelo Acnur.

Em um comunicado, o Ministério do Interior do Marrocos classificou como “infundadas” as alegações de perfilamento racial em remoções de migrantes e afirmou que as realocações de migrantes têm objetivo de afastá-los de “redes de tráfico” e “aumentar sua proteção”. Segundo o governo marroquino, o “apoio técnico” europeu para a gestão da migração é “mínimo em comparação com os esforços e custos do nosso país”.

Soldados preparam chá perto de campo de refugiados no deserto.  Foto: Borja Suarez/Reuters

Vagando no deserto

O Saara tornou-se uma punição cada vez mais frequente e perigosa para os migrantes que ousam atravessar o mar para chegar à Europa. François, o camaronês de 38 anos, embarcou quatro vezes em barcos superlotados na costa tunisiana com esperança de chegar à Europa. Em todas as viagens, seu grupo de migrantes foi detido no mar e obrigado a voltar para a terra-firme.

Em três ocasiões, as autoridades transportaram todos os migrantes detidos para a desolada fronteira argelina, disse François ao relatar as experiências. Sua maior provação foi em setembro.

Seu grupo de migrantes, que incluía duas mulheres grávidas, caminhou nove dias. François disse que, em cidades remotas na região da fronteira, os migrantes imploravam por água e pão, que às vezes as pessoas lhes davam. Depois de ser atacado com violência em um vilarejo, disse ele, o grupo se afastou das estradas.

Crianças brincam em dunas enquanto adultos montam acampamento no meio do deserto na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

“No meio do deserto, você olha para a esquerda, para a direita e não tem nada”, afirmou François. Alguns migrantes começaram a alucinar até que encontraram a cidade de Tajerouine.

Relatos de testemunhas e imagens analisadas pelo Post mostram a Guarda Nacional da Tunísia no centro das operações de deslocamento forçado para o deserto. Entre 2015 e 2023, a Polícia Federal da Alemanha acionou 449 agentes e gastou mais de 1 milhão de euros para treinar aproximadamente 4 mil guardas tunisianos. Conforme as operações de deslocamento forçado ocorriam, em novembro de 2023, a Áustria, a Dinamarca e os Países Baixos gastaram 9 milhões de euros em um centro de treinamento de gestão de fronteiras aberto na Tunísia.

“Não acho que a Tunísia é responsável pelo que está acontecendo”, afirmou François. “A UE não gosta da gente. Por que o homem subsaariano é considerado lixo?”

Expulsões coletivas abusivas

No ano passado, a UE registou 380.227 chegadas irregulares à fronteira, o terceiro aumento em três anos e o número mais elevado desde a crise de refugiados encabeçada pelos sírios na região, de 2015 a 2016. As consequências políticas fazem com que a Europa se esforce para transformar o Norte da África em um cordão de isolamento para conter as entradas ilegais.

Na Tunísia, o presidente Kais Saied reconheceu recentemente a “coordenação contínua” dos regressos migratórios com os “países vizinhos” e disse que as forças militares tunisinas estavam intervindo para impedir a imigração irregular. “A Tunísia não terá um lugar para eles, e a Tunísia está trabalhando para não ser um ponto de trânsito para eles”, disse ele ao seu conselho de segurança nacional no início deste mês.

Presidente da Tunísia, Kais Saied, vota nas eleições legislativas.  Foto: Slim Abid/Associated Press

As nacionalidades dos imigrantes variam muito, dependendo dos seus pontos de acesso à Europa, sendo a maior rota – atravessando o Mediterrâneo central até a Itália – dominada no ano passado por guineenses, tunisianos e marfinenses.

Na Tunísia, onde Saied aludiu a uma “grande teoria de substituição” segundo a qual os africanos subsaarianos estariam tentando suplantar os árabes no país, com os imigrantes negros sendo alvo de prisão, táticas mais agressivas levaram à redução do fluxo na rota central pelo Mediterrâneo. Essa rota registou uma queda de 59% nas chegadas no primeiro trimestre deste ano, juntamente com uma mudança demográfica: até agora, em 2024, nenhum país subsaariano figura entre as principais nacionalidades que a percorrem.

Em um comunicado, o ministério dos assuntos estrangeiros tunisiano insistiu que defende os direitos dos imigrantes, que só são expulsos “voluntariamente”, e somente para seus países de origem. O ministério rejeitou todas as alegações nesta reportagem feitas por imigrantes contra as suas forças de segurança, denunciando-as como inflamatórias.

O ministério anunciou 2.718 operações durante os primeiros quatro meses deste ano que, segundo ele, “salvaram” e “impediram” 21.545 imigrantes de cruzarem o mar rumo à Europa, e impediram outros 21.462 de “se infiltrarem no território tunisino” por terra.

As autoridades europeias celebraram esses resultados.

“Essa cooperação traz muitos resultados. Estou pensando, por exemplo, na gestão de fronteiras”, disse a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, de extrema direita, durante uma visita a Túnis em abril, quando elogiou os esforços de Saied.

Na Mauritânia, as autoridades espanholas permitiram táticas agressivas, fornecendo veículos para o transporte de imigrantes, ajudando nas intercepções marítimas, participando de operações contra imigrantes e contrabandistas de seres humanos e financiando novos centros de detenção, de acordo com documentos, entrevistas com autoridades mauritanas e vídeos promocionais espanhóis.

Equipes de resgate ajudam imigrante a desembarcar na Espanha. Foto: Borja Suarez/Reuters

As autoridades espanholas também parecem ser cúmplices nos deslocamentos forçados no deserto.

Em janeiro, Idiatou, 23 anos, e Bella, 27 anos, duas amigas da Guiné, foram levadas para o centro de detenção de imigrantes Ksar – um conjunto de edifícios murados e fortemente vigiados – na capital mauritana, Nouakchott, após uma tentativa fracassada de atravessar para Espanha pelo mar. O centro se tornou um ponto de trânsito utilizado pelas autoridades mauritanas antes de transportarem imigrantes para a distante fronteira com o Mali, devastado pela guerra, muitas vezes sem comida ou água, de acordo com entrevistas com detidos e trabalhadores de agências humanitárias.

Uma pessoa familiarizada com o encarceramento de Idiatou e Bella disse que dois agentes da polícia espanhola fotografaram as mulheres durante a sua detenção. Segundo a pessoa, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, os agentes analisaram ainda uma lista de prisioneiros – obtida pelo consórcio de meios de comunicação – que foram posteriormente deportados para o Mali. Tal como ocorreu com outros imigrantes entrevistados para este artigo, ambas as mulheres disseram que lhes foi negado o devido processo.

Em uma entrevista, as mulheres recordaram ter visto agentes “brancos” que as autoridades mauritanas identificaram como policiais espanhóis antes de serem embarcadas em um ônibus para deportação. Os repórteres no local observaram aquele ônibus, um Toyota Coaster branco com vidros escuros, ao partir de Ksar, e o seguiram por 16 quilômetros ao longo da autoestrada N3, que leva ao Mali.

Muitos veículos utilizados pelas autoridades mauritanas para deter e deportar imigrantes foram comprados com fundos espanhóis, de acordo com um alto funcionário europeu que falou sob condição de anonimato para debater um tópico delicado. Repórteres no local filmaram picapes Toyota entrando e saindo de centros de detenção que eram da mesma marca e modelo que as licitadas pela agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP e pelo ministério do interior espanhol. Estas incluem picapes Toyota Hilux fornecidas pela Espanha em 2019 com o propósito declarado de serem utilizadas pelas autoridades mauritanas para combater a “imigração ilegal”, de acordo com os documentos.

Um relatório de membros do Parlamento Europeu que visitaram a Mauritânia em dezembro descreveu uma equipe da guarda costeira espanhola presente no local quando os imigrantes eram devolvidos à costa após tentarem uma travessia marítima. As notas do relatório afirmavam que, depois de os migrantes terem sido examinados, a maioria foi “rapidamente conduzida para a fronteira”. Gilles Lebreton, um membro do Parlamento Europeu da extrema-direita francesa que esteve nessa missão, confirmou que os funcionários foram informados a respeito das deportações para as fronteiras com o Mali e o Senegal.

Um documento vazado da ACNUR de 2023 também afirmava que a agência entrevistou mais de 300 pessoas deportadas da Mauritânia para Gogui, no Mali. Um documento do Parlamento Europeu a respeito das negociações entre a agência de fronteiras da UE e a Mauritânia disse que os requerentes de asilo e imigrantes na Mauritânia enfrentaram “expulsões coletivas abusivas para o Senegal e o Mali” e deportação sem o devido processo.

Em resposta a um pedido de comentários detalhados, o ministério do interior espanhol não confirmou nem negou conhecimento de deslocamentos forçados para o deserto, da utilização de veículos adquiridos com fundos espanhóis nessas operações, ou de que os seus agentes se encontravam em um centro de detenção documentando imigrantes a serem deportados involuntariamente.

O ministério reconheceu que a Espanha enviou uma força de cerca de 50 agentes da polícia e da guarda civil para a Mauritânia para “investigar e desmantelar as máfias do tráfico de seres humanos”. Essas forças, disse o ministério, operavam com “pleno respeito” pelos “direitos humanos e liberdades” dos imigrantes.

A agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP negou ter conhecimento da existência de deslocamentos forçados para o deserto e disse que os agentes da polícia espanhola que trabalham em seus programas na Mauritânia “jamais testemunharam qualquer ação da polícia mauritana que violasse os direitos humanos”. Esses agentes, disse a agência, também negaram ter fotografado “nenhum imigrante em nenhum centro”. Recusou-se a confirmar se os veículos filmados pelo consórcio em operações de combate à imigração foram fornecidos pela agência, alegando preocupações de segurança.

Questionado a respeito dos agentes da polícia espanhola no centro de detenção, Nani Ould Chrougha, porta-voz do governo da Mauritânia, disse em uma declaração por escrito que um acordo bilateral com Madri “prevê uma série de compromissos mútuos, incluindo a troca de informações na luta contra a imigração ilegal, respeitando ao mesmo tempo a privacidade dos indivíduos e a proteção dos seus dados pessoais”.

Ele disse que os imigrantes que tentam atravessar em direção à Europa estão sujeitos à deportação, mas rejeitou as alegações de que os imigrantes na Mauritânia sofram maus-tratos de qualquer tipo. Os deportados para países vizinhos, disse ele, estavam sendo entregues às “autoridades competentes” em “postos de fronteira oficiais”. Afirmou que os imigrantes estavam apenas sendo repatriados para seus países de origem.

As duas mulheres da Guiné, no entanto, disseram que as forças mauritanas deixaram seu grupo em uma parte desolada e despovoada da fronteira com o Mali, e depois “perseguiram” o grupo em direção à fronteira “como animais”. Eles caminharam por uma paisagem monocromática durante quatro dias até chegarem a uma aldeia do Mali, onde finalmente conseguiram uma carona até um parente no Senegal.

A tática pareceu surtir o efeito desejado. “Se eu soubesse que tudo isso iria acontecer, não teria tentado” ir para a Europa, disse Bella. “Eu juro que não faria isso. Porque sofremos muito. … Não temos nada.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO E AUGUSTO CALIL

“A Argélia é naquela direção, sigam a luz”, berrou a autoridade tunisiana para migrantes negros. “Se forem vistos por aqui, vocês levarão um tiro.”

François, um camaronês de 38 anos, obedeceu, saltando da carroceria de uma picape nas proximidades da desolada fronteira com a Argélia. Um dia antes, a frágil embarcação que tentava transportá-lo para a Europa juntamente com outros esperançosos subsaarianos — incluindo sua mulher e seu enteado de 6 anos — tinha sido interceptada pela Guarda Costeira da Tunísia nas águas azul-cobalto da costa mediterrânea. Ainda molhados e com frio, o grupo de 30 migrantes, incluindo duas mulheres grávidas, caminhava na direção de sua punição: o deserto.

Sua provação — uma odisseia de pelo menos 555 quilômetros do mar até a areia, relatada por François e comprovada pelos registros de GPS em seu telefone e imagens e vídeos que ele gravou durante nove dias caminhando — ilustra um exemplo das práticas draconianas empregadas em pelo menos três países do Norte da África para dissuadir migrantes subsaarianos de tentar empreender as arriscadas travessias para a Europa.

As operações clandestinas, com foco principalmente em migrantes negros, têm uma parceira silenciosa: a Europa. Uma investigação conjunta, de um ano, realizada pelo Washington Post, pela Lighthouse Reports e por um consórcio de meios de imprensa internacionais, mostra como a União Europeia e países europeus, individualmente, estão dando apoio e financiamento a operações agressivas de nações norte-africanas destinadas a deter dezenas de milhares de migrantes anualmente e soltá-los em áreas remotas, com frequência desertos inóspitos.

Fundos europeus têm sido usados para treinar agentes e comprar equipamentos para as unidades envolvidas no deslocamento forçado ao deserto e outros abusos de direitos humanos, mostram registros e entrevistas. Migrantes têm sido obrigados a seguir na direção das partes mais desoladas do Norte da África e abandonados sem comida nem água, sendo expostos a sequestros, extorsões, escravizações, torturas, violências sexuais e, nos piores casos, à morte.

Crianças brincam em campo de refugiados na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

Forças de segurança espanholas fotografaram migrantes na Mauritânia e formularam listas antes que eles fossem obrigados a seguir para o Mali e caminhar dias a fio em uma região em que violentos grupos islamistas operam, de acordo com depoimentos e documentos.

Na Mauritânia, no Marrocos e na Tunísia veículos da mesma marca e modelo dos usados por forças de segurança de países europeus têm retirado migrantes negros das ruas e os transportado de centros de detenção para regiões remotas, de acordo com imagens gravadas e verificadas, depoimentos de migrantes e entrevistas com autoridades.

Autoridades europeias debatem internamente algumas dessas práticas abusivas pelo menos desde 2019 e foram ligadas a suspeitas em relatórios do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur) e da Frontex, a agência de controle de fronteiras da UE.

Bruxelas forneceu mais de 400 milhões de euros para a Tunísia, o Marrocos e a Mauritânia entre 2015 e 2021 sob seu maior fundo para gestão de migração, o Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África, uma iniciativa para fomentar o crescimento de economias locais e conter o fluxo migratório. Além disso, a UE financiou outras dúzias de projetos difíceis de quantificar em razão da falta de transparência do sistema europeu de financiamento.

Para confrontar um aumento na migração irregular ocorrido no ano passado, a Europa se movimentou para aprofundar parcerias no Norte da África, oferecendo outros 105 milhões de euros para a Tunísia no ano passado e assinando um acordo com a Mauritânia em fevereiro para fornecer mais 210 milhões de euros.

Esta investigação — com foco na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia, os três países com parcerias mais profundas com a UE — é a tentativa mais abrangente de documentar o conhecimento e o envolvimento de europeus sobre operações antimigração no Norte da África. A reportagem tem como base observações diretas de jornalistas, análises de provas visuais, mapeamento geoespacial, documentos internos da UE e entrevistas com 50 migrantes que foram vítimas de deslocamentos forçados, assim como autoridades europeias e norte-africanas e outras fontes familiarizadas com as operações. Como François, muitos migrantes entrevistados só concordaram em conversar com a reportagem sob a condição de ser identificados apenas pelo primeiro nome, por temer represálias.

Na Tunísia, provas visuais e relatos foram usados para verificar 11 deslocamentos forçados — de até 90 migrantes cada — no deserto próximo às fronteiras com a Líbia e a Argélia, o mais recente este mês, assim como um caso em que migrantes foram levados à fronteira líbia e detidos do outro lado. Segundo relatos, pelo menos 29 pessoas morreram e dúzias desapareceram depois de ser deslocadas forçadamente ou expulsas da Tunísia para a Líbia, de acordo com a Missão de Apoio das Nações Unidas na Líbia e organizações humanitárias.

Imigrantes são resgatados perto da costa da Líbia.  Foto: Valeria Mongelli/Associated Press

A UE, segundo suas próprias leis e tratados internacionais que adere, é obrigada a garantir que seus recursos sejam gastos de maneiras que respeitem direitos humanos fundamentais. Mas a Comissão Europeia, o organismo Executivo do bloco, admitiu que análises sobre direitos humanos não são conduzidas em financiamentos de projetos que envolvem migrantes no exterior. As agências que recebem os fundos europeus têm a incumbência de monitorar as implementações em parceria com consultores externos. Mas a transparência em relação às maneiras que equipamentos e recursos são usados é com frequência opaca, e autoridades europeias graduadas reconhecem privadamente que é “impossível” regular todos os usos.

Falando aos eurodeputados, em janeiro, Ylva Johansson, a ministra da UE incumbida de gerir a migração, confirmou relatos de deslocamentos forçados ao deserto em pelo menos um país — a Tunísia. “Não posso dizer que essa prática acabou”, reconheceu. Mas ela negou categoricamente que o bloco esteja “financiando” maus-tratos ou deportações de migrantes por meio de apoio financeiro.

Um porta-voz da Comissão Europeia afirmou em um comunicado que a ajuda para a gestão da migração nos países do Norte da África é projetada para combater o tráfico humano e “defender os direitos” dos migrantes. O bloco, segundo o comunicado, busca monitorar programas por meio de “missões de verificação local”, “exercícios de monitoramento” e avaliações externas.

Autoridades graduadas na Tunísia, no Marrocos e na Mauritânia negaram a prática de perfilamento racial e deslocamentos forçados de migrantes para áreas remotas, insistindo que os direitos dos migrantes têm sido respeitados. Mas autoridades tunisianas e mauritanas afirmaram que alguns migrantes foram retornados ou deportados através de suas áridas fronteiras.

“A realidade é que os Estados europeus não querem sujar as mãos. Não querem ser considerados responsáveis pelas violações de direitos humanos”, afirmou Marie-Laure Basilien-Gainche, jurista e especialista em direitos humanos da universidade francesa Jean Moulin Lyon 3. “Portanto, eles estão terceirizando essas violações para outros Estados. Mas eu considero que, realmente, de acordo com o direito internacional, são eles os responsáveis.”

Críticos notam que as operações também ocorrem em um cenário de crescentes reações em toda a Europa contra a migração irregular, um tema que tem dominado os debates políticos nas campanhas para as críticas eleições de junho para o Parlamento Europeu, nas quais a extrema direita está posicionada para alcançar vitórias-recorde.

Analistas e ex-autoridades afirmam que o objetivo das operações no Norte da África é claro: dissuasão. “A gente tem que dificultar a vida” dos migrantes, afirmou um agente que trabalhou em projetos financiados pelo Fundo Fiduciário de Emergência da UE para a África. A fonte falou sob condição de que seu nome não fosse revelado, para não atrapalhar contratos futuros. “Complicar suas vidas. Então, se um migrante da Guiné está (no Marrocos) e nós o levamos para o Saara duas vezes, na terceira ele (…) pede um retorno voluntário para seu país.”

A investigação determinou, por meio de depoimentos de testemunhas, vídeos gravados por repórteres e imagens verificadas pelo Post, que as operações antimigrantes com frequência envolvem detenções com base em seu perfil racial das pessoas — um uso que foi reconhecido em documentos da UE. Um relatório interno sobre o Marrocos produzido pela Frontex e obtido por meio de solicitação com base em lei de acesso a informações notou “alegações de perfilamento racial e uso excessivo de força por policiais e outras autoridades de segurança contra migrantes, solicitantes de asilo e refugiados, assim como prisões arbitrárias, detenções e realocações forçadas do norte para o sul, o que afetou desproporcionalmente migrantes oriundos de países subsaarianos”.

Na capital marroquina, Rabat, jornalistas observaram três situações em três dias nas quais forças auxiliares que recebem recursos da UE detiveram migrantes negros e os levaram dentro de vans. Dúzias de vídeos verificados registraram operações similares praticadas pelas mesmas agências em Fez, Tânger e Tan-Tan, assim como em Laayoune, no Saara Ocidental, um território controlado pelo Marrocos.

“Quando um negro aparece, eles vêm”, afirmou o guineense Lamine, de 25 anos. Ele relatou que desde o início de 2023 foi detido e espancado consecutivamente em Rabat — e então levado para o interior do país por forças marroquinas, apesar de ter documentos de refugiado emitidos pelo Acnur.

Em um comunicado, o Ministério do Interior do Marrocos classificou como “infundadas” as alegações de perfilamento racial em remoções de migrantes e afirmou que as realocações de migrantes têm objetivo de afastá-los de “redes de tráfico” e “aumentar sua proteção”. Segundo o governo marroquino, o “apoio técnico” europeu para a gestão da migração é “mínimo em comparação com os esforços e custos do nosso país”.

Soldados preparam chá perto de campo de refugiados no deserto.  Foto: Borja Suarez/Reuters

Vagando no deserto

O Saara tornou-se uma punição cada vez mais frequente e perigosa para os migrantes que ousam atravessar o mar para chegar à Europa. François, o camaronês de 38 anos, embarcou quatro vezes em barcos superlotados na costa tunisiana com esperança de chegar à Europa. Em todas as viagens, seu grupo de migrantes foi detido no mar e obrigado a voltar para a terra-firme.

Em três ocasiões, as autoridades transportaram todos os migrantes detidos para a desolada fronteira argelina, disse François ao relatar as experiências. Sua maior provação foi em setembro.

Seu grupo de migrantes, que incluía duas mulheres grávidas, caminhou nove dias. François disse que, em cidades remotas na região da fronteira, os migrantes imploravam por água e pão, que às vezes as pessoas lhes davam. Depois de ser atacado com violência em um vilarejo, disse ele, o grupo se afastou das estradas.

Crianças brincam em dunas enquanto adultos montam acampamento no meio do deserto na Argélia. Foto: Borja Suarez/Reuters

“No meio do deserto, você olha para a esquerda, para a direita e não tem nada”, afirmou François. Alguns migrantes começaram a alucinar até que encontraram a cidade de Tajerouine.

Relatos de testemunhas e imagens analisadas pelo Post mostram a Guarda Nacional da Tunísia no centro das operações de deslocamento forçado para o deserto. Entre 2015 e 2023, a Polícia Federal da Alemanha acionou 449 agentes e gastou mais de 1 milhão de euros para treinar aproximadamente 4 mil guardas tunisianos. Conforme as operações de deslocamento forçado ocorriam, em novembro de 2023, a Áustria, a Dinamarca e os Países Baixos gastaram 9 milhões de euros em um centro de treinamento de gestão de fronteiras aberto na Tunísia.

“Não acho que a Tunísia é responsável pelo que está acontecendo”, afirmou François. “A UE não gosta da gente. Por que o homem subsaariano é considerado lixo?”

Expulsões coletivas abusivas

No ano passado, a UE registou 380.227 chegadas irregulares à fronteira, o terceiro aumento em três anos e o número mais elevado desde a crise de refugiados encabeçada pelos sírios na região, de 2015 a 2016. As consequências políticas fazem com que a Europa se esforce para transformar o Norte da África em um cordão de isolamento para conter as entradas ilegais.

Na Tunísia, o presidente Kais Saied reconheceu recentemente a “coordenação contínua” dos regressos migratórios com os “países vizinhos” e disse que as forças militares tunisinas estavam intervindo para impedir a imigração irregular. “A Tunísia não terá um lugar para eles, e a Tunísia está trabalhando para não ser um ponto de trânsito para eles”, disse ele ao seu conselho de segurança nacional no início deste mês.

Presidente da Tunísia, Kais Saied, vota nas eleições legislativas.  Foto: Slim Abid/Associated Press

As nacionalidades dos imigrantes variam muito, dependendo dos seus pontos de acesso à Europa, sendo a maior rota – atravessando o Mediterrâneo central até a Itália – dominada no ano passado por guineenses, tunisianos e marfinenses.

Na Tunísia, onde Saied aludiu a uma “grande teoria de substituição” segundo a qual os africanos subsaarianos estariam tentando suplantar os árabes no país, com os imigrantes negros sendo alvo de prisão, táticas mais agressivas levaram à redução do fluxo na rota central pelo Mediterrâneo. Essa rota registou uma queda de 59% nas chegadas no primeiro trimestre deste ano, juntamente com uma mudança demográfica: até agora, em 2024, nenhum país subsaariano figura entre as principais nacionalidades que a percorrem.

Em um comunicado, o ministério dos assuntos estrangeiros tunisiano insistiu que defende os direitos dos imigrantes, que só são expulsos “voluntariamente”, e somente para seus países de origem. O ministério rejeitou todas as alegações nesta reportagem feitas por imigrantes contra as suas forças de segurança, denunciando-as como inflamatórias.

O ministério anunciou 2.718 operações durante os primeiros quatro meses deste ano que, segundo ele, “salvaram” e “impediram” 21.545 imigrantes de cruzarem o mar rumo à Europa, e impediram outros 21.462 de “se infiltrarem no território tunisino” por terra.

As autoridades europeias celebraram esses resultados.

“Essa cooperação traz muitos resultados. Estou pensando, por exemplo, na gestão de fronteiras”, disse a primeira-ministra italiana Giorgia Meloni, de extrema direita, durante uma visita a Túnis em abril, quando elogiou os esforços de Saied.

Na Mauritânia, as autoridades espanholas permitiram táticas agressivas, fornecendo veículos para o transporte de imigrantes, ajudando nas intercepções marítimas, participando de operações contra imigrantes e contrabandistas de seres humanos e financiando novos centros de detenção, de acordo com documentos, entrevistas com autoridades mauritanas e vídeos promocionais espanhóis.

Equipes de resgate ajudam imigrante a desembarcar na Espanha. Foto: Borja Suarez/Reuters

As autoridades espanholas também parecem ser cúmplices nos deslocamentos forçados no deserto.

Em janeiro, Idiatou, 23 anos, e Bella, 27 anos, duas amigas da Guiné, foram levadas para o centro de detenção de imigrantes Ksar – um conjunto de edifícios murados e fortemente vigiados – na capital mauritana, Nouakchott, após uma tentativa fracassada de atravessar para Espanha pelo mar. O centro se tornou um ponto de trânsito utilizado pelas autoridades mauritanas antes de transportarem imigrantes para a distante fronteira com o Mali, devastado pela guerra, muitas vezes sem comida ou água, de acordo com entrevistas com detidos e trabalhadores de agências humanitárias.

Uma pessoa familiarizada com o encarceramento de Idiatou e Bella disse que dois agentes da polícia espanhola fotografaram as mulheres durante a sua detenção. Segundo a pessoa, que falou sob condição de anonimato por medo de represálias, os agentes analisaram ainda uma lista de prisioneiros – obtida pelo consórcio de meios de comunicação – que foram posteriormente deportados para o Mali. Tal como ocorreu com outros imigrantes entrevistados para este artigo, ambas as mulheres disseram que lhes foi negado o devido processo.

Em uma entrevista, as mulheres recordaram ter visto agentes “brancos” que as autoridades mauritanas identificaram como policiais espanhóis antes de serem embarcadas em um ônibus para deportação. Os repórteres no local observaram aquele ônibus, um Toyota Coaster branco com vidros escuros, ao partir de Ksar, e o seguiram por 16 quilômetros ao longo da autoestrada N3, que leva ao Mali.

Muitos veículos utilizados pelas autoridades mauritanas para deter e deportar imigrantes foram comprados com fundos espanhóis, de acordo com um alto funcionário europeu que falou sob condição de anonimato para debater um tópico delicado. Repórteres no local filmaram picapes Toyota entrando e saindo de centros de detenção que eram da mesma marca e modelo que as licitadas pela agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP e pelo ministério do interior espanhol. Estas incluem picapes Toyota Hilux fornecidas pela Espanha em 2019 com o propósito declarado de serem utilizadas pelas autoridades mauritanas para combater a “imigração ilegal”, de acordo com os documentos.

Um relatório de membros do Parlamento Europeu que visitaram a Mauritânia em dezembro descreveu uma equipe da guarda costeira espanhola presente no local quando os imigrantes eram devolvidos à costa após tentarem uma travessia marítima. As notas do relatório afirmavam que, depois de os migrantes terem sido examinados, a maioria foi “rapidamente conduzida para a fronteira”. Gilles Lebreton, um membro do Parlamento Europeu da extrema-direita francesa que esteve nessa missão, confirmou que os funcionários foram informados a respeito das deportações para as fronteiras com o Mali e o Senegal.

Um documento vazado da ACNUR de 2023 também afirmava que a agência entrevistou mais de 300 pessoas deportadas da Mauritânia para Gogui, no Mali. Um documento do Parlamento Europeu a respeito das negociações entre a agência de fronteiras da UE e a Mauritânia disse que os requerentes de asilo e imigrantes na Mauritânia enfrentaram “expulsões coletivas abusivas para o Senegal e o Mali” e deportação sem o devido processo.

Em resposta a um pedido de comentários detalhados, o ministério do interior espanhol não confirmou nem negou conhecimento de deslocamentos forçados para o deserto, da utilização de veículos adquiridos com fundos espanhóis nessas operações, ou de que os seus agentes se encontravam em um centro de detenção documentando imigrantes a serem deportados involuntariamente.

O ministério reconheceu que a Espanha enviou uma força de cerca de 50 agentes da polícia e da guarda civil para a Mauritânia para “investigar e desmantelar as máfias do tráfico de seres humanos”. Essas forças, disse o ministério, operavam com “pleno respeito” pelos “direitos humanos e liberdades” dos imigrantes.

A agência de desenvolvimento espanhola FIIAPP negou ter conhecimento da existência de deslocamentos forçados para o deserto e disse que os agentes da polícia espanhola que trabalham em seus programas na Mauritânia “jamais testemunharam qualquer ação da polícia mauritana que violasse os direitos humanos”. Esses agentes, disse a agência, também negaram ter fotografado “nenhum imigrante em nenhum centro”. Recusou-se a confirmar se os veículos filmados pelo consórcio em operações de combate à imigração foram fornecidos pela agência, alegando preocupações de segurança.

Questionado a respeito dos agentes da polícia espanhola no centro de detenção, Nani Ould Chrougha, porta-voz do governo da Mauritânia, disse em uma declaração por escrito que um acordo bilateral com Madri “prevê uma série de compromissos mútuos, incluindo a troca de informações na luta contra a imigração ilegal, respeitando ao mesmo tempo a privacidade dos indivíduos e a proteção dos seus dados pessoais”.

Ele disse que os imigrantes que tentam atravessar em direção à Europa estão sujeitos à deportação, mas rejeitou as alegações de que os imigrantes na Mauritânia sofram maus-tratos de qualquer tipo. Os deportados para países vizinhos, disse ele, estavam sendo entregues às “autoridades competentes” em “postos de fronteira oficiais”. Afirmou que os imigrantes estavam apenas sendo repatriados para seus países de origem.

As duas mulheres da Guiné, no entanto, disseram que as forças mauritanas deixaram seu grupo em uma parte desolada e despovoada da fronteira com o Mali, e depois “perseguiram” o grupo em direção à fronteira “como animais”. Eles caminharam por uma paisagem monocromática durante quatro dias até chegarem a uma aldeia do Mali, onde finalmente conseguiram uma carona até um parente no Senegal.

A tática pareceu surtir o efeito desejado. “Se eu soubesse que tudo isso iria acontecer, não teria tentado” ir para a Europa, disse Bella. “Eu juro que não faria isso. Porque sofremos muito. … Não temos nada.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO E AUGUSTO CALIL

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