VIENA — Ao longo dos 15 anos recentes, as pistas mais importantes a respeito do programa nuclear do Irã estiveram enterradas profundamente no subsolo, em uma fábrica construída dentro de uma montanha à beira do Grande Deserto Salgado. A usina, conhecida como Fordo, é o centro nevrálgico do complexo nuclear iraniano e um destino frequente de inspetores internacionais cujas visitas têm o objetivo de garantir que hão haja nenhum esforço secreto do Irã para fabricação de bombas atômicas.
A mais recente inspeção, em fevereiro, revelou matrizes de leituras e medições usuais, segundo a terminologia clínica do relatório da agência nuclear da ONU. Mas em meio à árida linguagem do documento há indicações de mudanças alarmantes.
Em recintos que tinham parado de fabricar urânio enriquecido sob o acordo nuclear de 2015, os inspetores testemunharam um frenesi de atividade: equipamentos instalados recentemente produzindo urânio enriquecido com cada vez mais rapidez, e uma expansão em andamento que logo poderá dobrar a produção da usina. De forma mais preocupante, Fordo estava elevando a escala de produção de uma forma mais perigosa de combustível nuclear — um tipo de urânio altamente enriquecido, com nível próximo ao militar. Autoridades iranianas responsáveis pela usina, enquanto isso, começaram a falar abertamente em alcançar “dissuasão”, sugerindo que Teerã tem agora tudo o que necessita para construir uma bomba atômica se assim desejar.
A transformação de Fordo espelha mudanças vistas em outros pontos do Irã ao mesmo tempo que o país ultrapassa limites determinados no acordo nuclear. Seis anos depois da controvertida decisão do governo Trump de retirar os EUA do pacto, as restrições foram ultrapassadas uma a uma, o que deixou o Irã mais próximo da capacidade atômica militar que em qualquer momento de sua história, segundo relatos confidenciais registrados pelos inspetores e entrevistas com autoridades e especialistas que monitoram proximamente o progresso iraniano.
Enquanto afirma que não tem planos de fabricar armas nucleares, o Irã possui agora um estoque de urânio altamente enriquecido com capacidade de ser transformado em combustível para pelo menos três bombas em um período que pode variar entre alguns dias e algumas semanas, afirmaram autoridades e ex-autoridades. A fabricação de um artefato nuclear rudimentar poderia ocorrer até seis meses depois de uma decisão ser tomada, mas superar os desafios de produzir uma ogiva nuclear que possa ser carregada em um míssil demoraria talvez dois anos ou mais, afirmaram as autoridades.
O Irã buscou recentemente diluir parte de seu urânio altamente enriquecido, sinalizando, na visão de autoridades americanas, que busca evitar um conflito impondo a si mesmo limites em sua produção de combustível nuclear de nível próximo ao militar. Mas as centrífugas de Fordo estão fabricando urânio enriquecido no ritmo mais veloz em sua história, e os estoques combinados do país de urânio combustível continuam a crescer, mostram os registros.
A tendência é inequívoca: a partir de entrevistas com autoridades da AIEA, na sede da agência de vigilância nuclear em Viena, e com mais mais de uma dezena de autoridades e ex-autoridades americanas e europeias de inteligência e segurança — muitas falando sob condição de anonimato para discutir temas sensíveis — a visão que emerge é a de que o Irã avança lentamente, mas com determinação, na obtenção de recursos para a fabricação de uma arma nuclear no futuro, ao mesmo tempo que não se movimenta abertamente para sua produção.
O colapso do acordo, enquanto isso, limitou acentuadamente a capacidade da AIEA monitorar a atividade do Irã ou investigar qualquer relato de atividade militar secreta, afirmaram autoridades e especialistas. Uma autoridade americana ciente das discussões internas entre a diretoria da AIEA reconheceu que a agência tem hoje menos capacidade de detectar avanços nucleares do Irã. Esse cenário poderia ocasionar uma série de reverberações, de uma corrida armamentista no Oriente Médio a um conflito direto entre Israel e Irã capaz de desencadear uma guerra mais ampla na região, afirmou a autoridade.
Por enquanto, disse a autoridade americana a respeito do Irã, “eles estão dançando exatamente em cima da linha”.
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O presidente Joe Biden prometeu anteriormente em seu mandato buscar reinstituir ou renovar o acordo, mas os esforços do governo americano foram impedidos por um muro de oposição política domesticamente e pela indiferença do Irã. Em dezembro de 2022, uma gravação de vídeo registrou Joe Biden reconhecendo que o acordo está “morto”, mas Washington não declarou isso formalmente.
O porta-voz de segurança nacional da Casa Branca, John Kirby, reconheceu o que classificou como a “futilidade” do esforço para ressuscitar o acordo e afirmou que o governo americano “parou de pôr energia nisso”. Kirby disse que Biden continua determinado em impedir que o Irã adquira capacidade de fabricar armas nucleares, mas admitiu que os EUA têm poucas ferramentas para alcançar esse objetivo.
“Ele preferiria — preferiria enormemente — fazer isso por meio de diplomacia”, afirmou Kirby em uma coletiva de imprensa na Casa Branca, em setembro. “Mas essa opção não é viável neste momento.”
Um pacto despedaçado incentiva o desafio do Irã
O acordo nuclear de 2015 — negociado durante o governo de Barack Obama pelos EUA e outras cinco potências mundiais e a União Europeia, conhecido como Plano de Ação Conjunto Global, ou JCPOA — tecnicamente ainda vigora, mesmo que apenas como um ordenamento de fachada. Países europeus continuam a reconhecer o acordo, e inspetores da AIEA têm acesso permitido a Fordo e outras instalações segundo pactos anteriores. Mas desde a retirada dos EUA o Irã se outorgou o direito de cancelar qualquer parte do pacto que deseje ignorar — o que na prática significa quase o acordo inteiro.
Sob o pacto, que passou a vigorar no início de 2016, o Irã concordou em aceitar várias limitações à sua capacidade de fabricar urânio enriquecido ou outros materiais físseis que pudessem ser usados em armas nucleares. Em troca do alívio nas sanções, o Irã também concordou com inspeções e monitoramentos intrusivos e limites rígidos sobre seu estoque total de urânio, garantindo que não acumulasse urânio enriquecido o suficiente para produzir nenhuma bomba sequer.
Mas o acordo foi amplamente criticado, incluindo por republicanos e alguns democratas no Congresso que se opunham a um alívio das sanções ao Irã e expressavam ceticismo em relação às intenções de Teerã de honrar o acordo. O governo israelense criticou o pacto classificando-o como amplamente inadequado, criticando particularmente “caducidades” de provisões que permitiam a expiração de várias restrições em apenas 15 anos, até 2031.
Donald Trump prometeu quando era candidato à presidência que retiraria os EUA do JCPOA e cumpriu a promessa em 2018, classificando o acordo como “um pacto horrível e parcial que nunca, jamais deveria ter sido feito”.
O governo Trump retomou sanções antigas e impôs sanções novas, em uma malsucedida tentativa unilateral de pressionar o Irã. A resposta de Teerã foi começar a ignorar sistematicamente as principais provisões do acordo ao mesmo tempo que criticava os EUA por negociar com má-fé.
Hoje, seis anos depois da retirada, o Irã desacatou quase todas as restrições do pacto a respeito da quantidade e do tipo de urânio enriquecido que possui, mostram documentos da AIEA. As ações iranianas parecem ter sido encorajadas, afirmam diplomatas americanos e europeus, pela aliança cada vez mais profunda entre Teerã e Moscou, um signatário do JCPOA que emergiu como importante parceiro estratégico desde a invasão da Rússia em escala total à Ucrânia, em fevereiro de 2022.
“A aliança com a Rússia faz a diferença em relação à maneira que o Irã se sente a respeito dos EUA e dos europeus — é possível ver que agora eles ficam muito à vontade” em desafiar o Ocidente, afirmou um graduado diplomata europeu, falando sob condição de anonimato para discutir deliberações internas sensíveis no Conselho de Governos da AIEA, composto por 35 países-membros da agência.
É incerto se o Irã finalmente decidirá fabricar uma bomba atômica. Os líderes iranianos têm sido cautelosos em relação a arriscar um confronto direto com Israel ou EUA, o que quase certamente ocorreria se um programa secreto de fabricação de uma arma nuclear fosse descoberto.
O aiatolá Ali Khamenei, líder-supremo do Irã, que emitiu uma fatwa — ou decreto religioso — contra armas nucleares em 2003, repetiu sua oposição oficial em um discurso pronunciado em junho de 2023, declarando que armas de destruição em massa “contradizem o Islã”. Khamenei afirmou que os países ocidentais “sabem muito bem que nós não estamos buscando armas nucleares”. Autoridades iranianas acusam frequentemente governos ocidentais de hipocrisia por colocar foco no programa nuclear iraniano enquanto não dizem nada a respeito de Israel, um país que possui armas atômicas e não é sujeito à supervisão da AIEA.
E-mails enviados pela reportagem para a missão do Irã nas Nações Unidas solicitando comentários não foram respondidos.
Livre das restrições do acordo, o Irã parece acreditar que possui um caminho legal e gradual, apesar de certo, para se tornar um Estado em latência nuclear — um país que possui os meios para fabricar bombas atômicas mas não o faz — sem se colocar em risco de sofrer um ataque militar, afirmaram autoridades de inteligência e especialistas em armamentos.
“Eles não cruzarão os limites, eles os estão movimentando”, afirmou o especialista em não proliferação Robert Litwak, vice-presidente do Centro Internacional Woodrow Wilson para Acadêmicos, um instituto de análise em Washington. “A ideia do Irã é se proteger.”
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O centro nevrálgico do programa nuclear iraniano
Uma das mudanças profundas pretendidas pelos arquitetos do JCPOA foi a transformação da fábrica subterrânea conhecida formalmente como Usina de Enriquecimento de Combustível de Fordo. Projetada pelo Irã como uma instalação secreta para produção de urânio enriquecido, a usina foi construída dentro de túneis cavados a 90 metros de profundidade, dentro de uma montanha escarpada a noroeste de Qom, uma cidade ancestral e sagrada na árida região centro-boreal do Irã. Agências de inteligência ocidentais detectaram a fábrica durante sua construção, e Obama revelou ao mundo sua existência em 2009.
Antes do acordo nuclear de 2015, ecoava nos lustrosos recintos de produção em Fordo o ruído de aproximadamente 3 mil centrífugas. Essas delgadas máquinas cilíndricas giram em velocidades supersônicas para criar uma forma de urânio que contém concentrações mais elevadas de um isótopo chamado U-235, a parte do átomo de urânio que pode ser facilmente dividida para criar uma reação nuclear em cadeia. Mesmo nos dias anteriores ao JCPOA, a usina de Fordo produzia U-235 enriquecido a um grau de pureza de apenas 3% a 20%, mostram documentos da AIEA — níveis típicos em reatores nucleares de uso civil.
Fordo passou a simbolizar o colapso do acordo nuclear. Sob o pacto, a maioria das centrífugas de Fordo tinha sido desativada, e o restante só podia produzir isótopos para aplicações médicas e pesquisas civis. Todo o urânio físsil foi removido. Então, depois da decisão de Trump, em 2018, a usina voltou à vida gradualmente. Desde 2018, inspetores da AIEA viram a produção de urânio enriquecido em Fordo ir de zero para 317,5 quilos ao mês em fevereiro deste ano, de acordo com o relatório da AIEA enviado para os Estados-membros no mês passado.
A diferença qualitativa no combustível é ainda mais alarmante. O produto mais refinado de Fordo atualmente tem uma pureza de U-235 de 60%, mostra o relatório da AIEA.
“Não há razão para estar em 60%”, afirmou um segundo diplomata europeu a par das discussões internas no Conselho de Governos da AIEA. “Sessenta por cento é um nível muito próximo ao de armas. Eles poderiam chegar lá num piscar de olhos.”
Fordo começou a produzir o combustível altamente enriquecido em 2022, mas o ritmo de produção aumentou constantemente ao longo dos dois anos recentes. A maior usina de enriquecimento de urânio no Irã, em Natanz, também passou a produzir urânio enriquecido a 60%, e seu estoque combinado de combustível era de aproximadamente 122,5 quilos quando os inspetores visitaram o local em fevereiro, mostra o relatório.
Em um gesto que governos ocidentais interpretaram como conciliador, o Irã começou nos meses recentes a diluir parte do combustível enriquecido para evitar que o total subisse acentuadamente. Mas o estoque atual do Irã já poderia produzir urânio em nível militar para pelo menos três bombas, afirmaram autoridades e ex-autoridades americanas e especialistas em armamentos. A conversão para combustível em nível militar é relativamente simples utilizando o equipamento que o Irã possui e poderia ocorrer em um cronograma que varia entre alguns dias e algumas semanas, afirmaram as autoridades.
Acredita-se que o Irã possua quase todo o conhecimento tecnológico e equipamento necessário para construir um artefato nuclear rudimentar. Documentos roubados de um armazém em Teerã por espiões israelenses em 2018 confirmaram o que agências de inteligência americanas tinham concluído anos antes: o Irã lançou um programa agressivo de projetos de armas nucleares no início dos anos 2000 e aparentemente abandonou o esforço por volta de 2003, aproximadamente no mesmo momento da invasão americana ao Iraque. Documentos revelados pelos israelenses mostravam iranianos desenvolvendo e testando componentes para um artefato nuclear rudimentar no começo da década de 2000.
“Eles já deram a maioria dos passos que precisariam dar”, afirmou o especialista no programa nuclear iraniano David Albright, presidente do Instituto pela Ciência e a Segurança Internacional, que analisou muitos dos documentos. O desafio mais significativo do Irã no início dos anos 2000 era obter urânio altamente enriquecido ou plutônio para uma bomba. “E eles resolveram esse problema ainda melhor do que esperavam. Percebe-se a partir de suas declarações que eles sabem muito bem o que têm nas mãos”, afirmou Albright.
Uma nova coragem
As capacidades melhoradas transparecem uma nova coragem nas declarações públicas do Irã a respeito de suas instalações nucleares.
Anteriormente este ano, o diretor da Organização de Energia Atômica do Irã usou um termo provocador, “dissuasão”, ao descrever o propósito do programa nuclear iraniano. Em um contexto de armas nucleares, “dissuasão” refere-se à ameaça de um país poder usar armas de destruição em massa em resposta a uma agressão de outra potência.
Referindo-se ao programa nuclear iraniano em uma entrevista em janeiro, o diretor da OEAI, Mohammad Eslami, afirmou especificamente que “a dissuasão foi alcançada, com a ajuda de Deus, sem ter de violar regras ou regulações”.
“Em termos de nossa segurança nacional, nós não queremos fazer isso”, afirmou Eslami a respeito da filosofia do Irã em relação a armas nucleares. Mas ele logo acrescentou: “Não se trata de falta de capacidade. Este ponto é muito importante. (…) Nós não deveríamos subestimar nossas atuais realizações pensando que ainda não chegamos lá”.
O antecessor de Eslami na OEAI, Ali Akbar Salehi, sintetizou a situação em tons mais gritantes numa entrevista concedida em fevereiro, comparando o programa nuclear iraniano a uma coleção de componentes de um carro que só falta ser montado. “Vocês fabricaram uma caixa de câmbio. Eu digo sim. Um motor? Mas cada qual para seu próprio propósito.”
Os comentários receberam críticas atipicamente duras da AIEA, uma agência cuja missão é evitar a proliferação de armas nucleares, montadas ou não.
“Toda essa conversa mole sobre armas nucleares é extremamente contraproducente, e eu francamente deploro essa atitude”, afirmou em entrevista o diretor-geral da AIEA, Rafael Grossi. “Se você é parte no Tratado de Não-Proliferação Nuclear, não deveria ter nenhum armamento atômico — montado, desmontado, numa gaveta da estante, como que for. Você não deve buscar e não deve ter. Ponto.”
Um ‘efeito dominó’ nuclear
Em uma região assolada pela guerra — tanto a guerra direta na Faixa de Gaza quanto o conflito nas sombras entre Irã e Israel — o progresso de Teerã tem sido monitorado com crescente inquietude. Os serviços militar e de inteligência israelenses têm um longo histórico de operações secretas para diminuir o ritmo de progresso nuclear do Irã, entre assassinatos de cientistas iranianos e ciberataques contra instalações nucleares, incluindo as ações de sabotagem cibernética conhecidas como Stuxnet. As evidências reveladas recentemente de sucesso do Irã no campo nuclear poderiam motivar ataques aéreos israelenses contra instalações nucleares de Teerã. Um contra-ataque dos sistemas cada vez mais sofisticados de mísseis do Irã ou de sua frota de drones poderia desencadear uma guerra maior no Oriente Médio.
O espectro de um Irã com capacidade nuclear militar também poderia fazer outros países da região — incluindo Arábia Saudita e Turquia — reconsiderar suas opções de segurança. Durante a entrevista, Grossi alertou para a possibilidade de um “efeito dominó” desestabilizador.
“Vários países expressaram, literalmente, que ver um Irã com capacidade nuclear militar os faria também buscar essa capacidade”, afirmou ele. Se acontecer, acrescentou, isso poderia ocasionar “o possível desmantelamento do regime de não proliferação em grande escala”.
Ciente do perigo crescente, Grossi pediu com urgência que o acordo de 2015 seja reestabelecido ou substituído por uma nova versão, para dar aos vizinhos do Irã mais claridade a respeito das intenções nucleares de Teerã.
“Se ficamos no limbo, coisas ruins acontecem”, afirmou ele.
Por agora, perspectivas de reestabelecimento ou revisão do pacto parecem sombrias, conforme reconhecem até mesmo apoiadores ardentes do JCPOA. Sem nenhum acordo vigorando, persuadir Teerã a reduzir seus índices de enriquecimento de urânio será, na melhor das hipóteses, difícil, afirmaram autoridades e ex-autoridades americanas.
“Será bastante complicado retornar para uma posição de confiança, em que o Irã não avançou com o objetivo de obter um artefato nuclear”, afirmou o físico Ernest Moniz, ex-secretário de Energia dos EUA que ajudou a negociar o acordo de 2015.
“Qualquer progresso real que possa vir no futuro quase certamente terá de ser parte de um acordo maior” entre o Irã e o Ocidente, afirmou Moniz, que atualmente trabalha como CEO da Nuclear Threat Initiative, uma ONG de Washington. “E isso será muito desafiador e provavelmente muito difícil de alcançar.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL