Como a América Latina ainda pode ter um papel na resolução da guerra na Ucrânia? Leia a análise


Os esforços diplomáticos da região têm sido ignorados até aqui ou descritos como pró-Moscou; isso é um erro, segundo afirma este proeminente professor

Por Juan Gabriel Tokatlian
Atualização:

BUENOS AIRES – Perspectiva importa. Ao longo dos últimos 16 meses, a guerra na Ucrânia tem sido sentida, percebida e analisada em todo o planeta segundo diferentes memórias e passados. Lamentavelmente, os pontos de vista do Sul Global, particularmente da América Latina, continuam distorcidos e percebidos erroneamente como pró-Rússia por muitos nos Estados Unidos e na Europa — o que constitui uma oportunidade perdida, porque as perspectivas singulares da região ainda poderiam ajudar a pôr fim à guerra antes que o conflito escale e saia ainda mais de controle.

Mas o que a América Latina poderia trazer para a mesa nesse tema? A região sem dúvida é portadora de muitas vicissitudes, incluindo os índices mais altos de desigualdade e crimes violentos no mundo. Não obstante, um de seus maiores sucessos ao longo dos últimos 200 anos é sua relativa paz quando se trata do número de guerras entre países.

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De fato, há que se remontar a quase um século atrás ou além para encontrar os últimos conflitos verdadeiramente grandes, como a Guerra da Tripla Aliança (1864-70), que envolveu Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina, ou a Guerra do Chaco (1932-35), entre Bolívia e Paraguai.

O presidente ucraniano Volodimir Zelenski visita Kherson após o ataque do exército russo à barragem de Kakhovka e a uma usina hidrelétrica no rio Dnipro, que inundou vários assentamentos e isolou milhares de ucranianos.  Foto: Mykola Tymchenko / EFE

Talvez contrariando a crença popular, esta paz relativa não decorre de uma ausência de tensões entre os países da região. Consideremos o exemplo das tensões periódicas ao longos das duas décadas recentes entre a liderança chavista da Venezuela e os governos conservadores da Colômbia, que em vários momentos resultaram em retóricas inflamadas, suspensões no comércio fronteiriço e até, em 2008, uma breve concentração de tropas na fronteira e rumores sobre mobilização de caças de combate.

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Voltando um pouco mais, Argentina e Chile se aproximaram de uma guerra por fronteira em 1978; e um breve conflito fronteiriço ocorrido em 1995 entre Peru e Equador deixou cerca de 100 mortos antes de um esforço regional de mediação pôr fim definitivamente aos combates. Na realidade o fato dessas três disputas não terem descambado para guerras maiores decorre de vários mecanismos valiosos que a América Latina desenvolveu ao longo de muitos anos.

Entre eles: países latino-americanos trabalham há muito na criação de interações diplomáticas bilaterais para desescalada de tensões; houve avanço progressivo e observância de mecanismos de construção de confiança; o diálogo regional irrompe como meio de evitar fricções descontroladas; aceita-se mediação de partes terceiras; assim como arbitragens internacionais. (Note que a maioria dessas alternativas jamais foi empreendida seriamente antes ou durante a guerra na Ucrânia.)

Além disso, a América Latina tem afirmado há anos sua singular condição de zona de paz, estabeleceu a primeira área livre de armas atômicas e seus dois países mais avançados em termos de capacidade nuclear — Argentina e Brasil — possuem o único sistema reconhecido de verificação de comprometimento mútuo ao uso pacífico da energia nuclear registrado em um acordo assinado com a Agência Internacional de Energia Atômica.

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Consequentemente, quando anteriormente este ano o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, pediu paz na Ucrânia, ele não expressou apenas sua própria preocupação a respeito da evolução da guerra, mas também apresentou as credenciais de paz de toda a região. A América Latina — depois de anos de estagnação no crescimento desde a década de 2010, do efeito socioeconômico devastador da covid-19 e dos dramáticos desfechos recessionários da guerra na Ucrânia — não pode optar pela passividade: a região é detentora do imperativo de invocar urgência pela calma global.

Neste estágio, o mundo não precisa de uma “coalizão de voluntários” dispostos a exacerbar a guerra, mas uma “coalizão de não agressores” para promover a causa da paz. O espectro de uma hecatombe nuclear está aumentando, e silenciar as opções para um desfecho negociado não é apenas contraproducente para toda a comunidade internacional — é também perigoso.

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A Rússia, a Ucrânia e o Ocidente sabem perfeitamente bem que guerras prolongadas sempre se degradam se não há uma solução diplomática. A convicção de que estamos passando apenas por uma “guerra limitada” — à la século 18 — é uma ilusão: nós estamos no meio da mudança de equilíbrio de poder mais importante em séculos, com múltiplos pontos de fricção e uma crescente rivalidade entre os dois maiores representantes do Oriente e do Ocidente: China e EUA.

Tendência regional de respeito à soberania

A ideia de que na Ucrânia cada parte está agindo defensivamente não é clara para o Sul Global. Além disso, quem observa as partes em disputa tem a sensação de que a escalada é a verdadeira estratégia tanto da Rússia quanto do Ocidente. Retóricas à parte, muito poucos no Sul Global assumem que os países mais poderosos do Ocidente operam segundo uma ordem com base em regras e que sanções sejam mecanismos eficazes para impedir guerras.

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A América Latina, da mesma maneira que o restante do Sul Global, é defensora persistente da integridade territorial e da soberania dos países, ao mesmo tempo que rejeita o uso ilegal da força. Uma análise ponderada dos votos recentes dos países latino-americanos no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU mostra exatamente isso.

Similarmente, a falta de apoio da América Latina às sanções contra a Rússia e ao fornecimento de armas para a Ucrânia não é novidade, tampouco é parte de um posicionamento pró-Moscou. Em vez disso, a região testemunhou em primeira mão a ineficácia das sanções ao longo das seis décadas de embargo a Cuba, enquanto o nível de gasto militar na América Latina declina em termos reais desde dos anos 60 e o gasto em geral das nações latino-americanas caiu significativamente na última década. É importante lembrar que apenas 26% dos membros das Nações Unidas aplicam o regime de sanções à Rússia e fornecem ajuda militar à Ucrânia.

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Adicionalmente, a América Latina tem na memória outro momento crítico na história recente em que a possibilidade do uso de armas nucleares se fez presente. A Crise dos Mísseis de Cuba, de 1962, gerou uma preocupação massiva e duradoura na região. Se o conselho do então general Curtis LeMay de lançar um ataque nuclear antes dos comunistas fosse colocado em prática, a América Latina poderia ter se transformado no laboratório da guerra atômica entre os EUA e a União Soviética.

Concluindo, a experiência da América Latina em termos de guerra e paz é relevante e merece ser levada em consideração. Europa e EUA deveriam entender que não são capazes de moldar o sistema global como tiveram a oportunidade de fazer no fim da Guerra Fria e que nós temos vivido (e continuaremos a viver) em um mundo pós-ocidental.

Uma ordem mais plural, multidimensional e complexa está emergindo: neste contexto, a voz e a experiência de regiões como a América Latina deveriam ser bem recebidas, em vez de desprezadas. O cardápio das opções praticadas pela América Latina — entre elas mecanismos discretos de desescalada, diplomacia furtiva entre os dois participantes cruciais (Moscou e Washington) e apoio regional — pode e deve ser explorado. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES – Perspectiva importa. Ao longo dos últimos 16 meses, a guerra na Ucrânia tem sido sentida, percebida e analisada em todo o planeta segundo diferentes memórias e passados. Lamentavelmente, os pontos de vista do Sul Global, particularmente da América Latina, continuam distorcidos e percebidos erroneamente como pró-Rússia por muitos nos Estados Unidos e na Europa — o que constitui uma oportunidade perdida, porque as perspectivas singulares da região ainda poderiam ajudar a pôr fim à guerra antes que o conflito escale e saia ainda mais de controle.

Mas o que a América Latina poderia trazer para a mesa nesse tema? A região sem dúvida é portadora de muitas vicissitudes, incluindo os índices mais altos de desigualdade e crimes violentos no mundo. Não obstante, um de seus maiores sucessos ao longo dos últimos 200 anos é sua relativa paz quando se trata do número de guerras entre países.

De fato, há que se remontar a quase um século atrás ou além para encontrar os últimos conflitos verdadeiramente grandes, como a Guerra da Tripla Aliança (1864-70), que envolveu Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina, ou a Guerra do Chaco (1932-35), entre Bolívia e Paraguai.

O presidente ucraniano Volodimir Zelenski visita Kherson após o ataque do exército russo à barragem de Kakhovka e a uma usina hidrelétrica no rio Dnipro, que inundou vários assentamentos e isolou milhares de ucranianos.  Foto: Mykola Tymchenko / EFE

Talvez contrariando a crença popular, esta paz relativa não decorre de uma ausência de tensões entre os países da região. Consideremos o exemplo das tensões periódicas ao longos das duas décadas recentes entre a liderança chavista da Venezuela e os governos conservadores da Colômbia, que em vários momentos resultaram em retóricas inflamadas, suspensões no comércio fronteiriço e até, em 2008, uma breve concentração de tropas na fronteira e rumores sobre mobilização de caças de combate.

Voltando um pouco mais, Argentina e Chile se aproximaram de uma guerra por fronteira em 1978; e um breve conflito fronteiriço ocorrido em 1995 entre Peru e Equador deixou cerca de 100 mortos antes de um esforço regional de mediação pôr fim definitivamente aos combates. Na realidade o fato dessas três disputas não terem descambado para guerras maiores decorre de vários mecanismos valiosos que a América Latina desenvolveu ao longo de muitos anos.

Entre eles: países latino-americanos trabalham há muito na criação de interações diplomáticas bilaterais para desescalada de tensões; houve avanço progressivo e observância de mecanismos de construção de confiança; o diálogo regional irrompe como meio de evitar fricções descontroladas; aceita-se mediação de partes terceiras; assim como arbitragens internacionais. (Note que a maioria dessas alternativas jamais foi empreendida seriamente antes ou durante a guerra na Ucrânia.)

Além disso, a América Latina tem afirmado há anos sua singular condição de zona de paz, estabeleceu a primeira área livre de armas atômicas e seus dois países mais avançados em termos de capacidade nuclear — Argentina e Brasil — possuem o único sistema reconhecido de verificação de comprometimento mútuo ao uso pacífico da energia nuclear registrado em um acordo assinado com a Agência Internacional de Energia Atômica.

Consequentemente, quando anteriormente este ano o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, pediu paz na Ucrânia, ele não expressou apenas sua própria preocupação a respeito da evolução da guerra, mas também apresentou as credenciais de paz de toda a região. A América Latina — depois de anos de estagnação no crescimento desde a década de 2010, do efeito socioeconômico devastador da covid-19 e dos dramáticos desfechos recessionários da guerra na Ucrânia — não pode optar pela passividade: a região é detentora do imperativo de invocar urgência pela calma global.

Neste estágio, o mundo não precisa de uma “coalizão de voluntários” dispostos a exacerbar a guerra, mas uma “coalizão de não agressores” para promover a causa da paz. O espectro de uma hecatombe nuclear está aumentando, e silenciar as opções para um desfecho negociado não é apenas contraproducente para toda a comunidade internacional — é também perigoso.

A Rússia, a Ucrânia e o Ocidente sabem perfeitamente bem que guerras prolongadas sempre se degradam se não há uma solução diplomática. A convicção de que estamos passando apenas por uma “guerra limitada” — à la século 18 — é uma ilusão: nós estamos no meio da mudança de equilíbrio de poder mais importante em séculos, com múltiplos pontos de fricção e uma crescente rivalidade entre os dois maiores representantes do Oriente e do Ocidente: China e EUA.

Tendência regional de respeito à soberania

A ideia de que na Ucrânia cada parte está agindo defensivamente não é clara para o Sul Global. Além disso, quem observa as partes em disputa tem a sensação de que a escalada é a verdadeira estratégia tanto da Rússia quanto do Ocidente. Retóricas à parte, muito poucos no Sul Global assumem que os países mais poderosos do Ocidente operam segundo uma ordem com base em regras e que sanções sejam mecanismos eficazes para impedir guerras.

A América Latina, da mesma maneira que o restante do Sul Global, é defensora persistente da integridade territorial e da soberania dos países, ao mesmo tempo que rejeita o uso ilegal da força. Uma análise ponderada dos votos recentes dos países latino-americanos no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU mostra exatamente isso.

Similarmente, a falta de apoio da América Latina às sanções contra a Rússia e ao fornecimento de armas para a Ucrânia não é novidade, tampouco é parte de um posicionamento pró-Moscou. Em vez disso, a região testemunhou em primeira mão a ineficácia das sanções ao longo das seis décadas de embargo a Cuba, enquanto o nível de gasto militar na América Latina declina em termos reais desde dos anos 60 e o gasto em geral das nações latino-americanas caiu significativamente na última década. É importante lembrar que apenas 26% dos membros das Nações Unidas aplicam o regime de sanções à Rússia e fornecem ajuda militar à Ucrânia.

Adicionalmente, a América Latina tem na memória outro momento crítico na história recente em que a possibilidade do uso de armas nucleares se fez presente. A Crise dos Mísseis de Cuba, de 1962, gerou uma preocupação massiva e duradoura na região. Se o conselho do então general Curtis LeMay de lançar um ataque nuclear antes dos comunistas fosse colocado em prática, a América Latina poderia ter se transformado no laboratório da guerra atômica entre os EUA e a União Soviética.

Concluindo, a experiência da América Latina em termos de guerra e paz é relevante e merece ser levada em consideração. Europa e EUA deveriam entender que não são capazes de moldar o sistema global como tiveram a oportunidade de fazer no fim da Guerra Fria e que nós temos vivido (e continuaremos a viver) em um mundo pós-ocidental.

Uma ordem mais plural, multidimensional e complexa está emergindo: neste contexto, a voz e a experiência de regiões como a América Latina deveriam ser bem recebidas, em vez de desprezadas. O cardápio das opções praticadas pela América Latina — entre elas mecanismos discretos de desescalada, diplomacia furtiva entre os dois participantes cruciais (Moscou e Washington) e apoio regional — pode e deve ser explorado. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES – Perspectiva importa. Ao longo dos últimos 16 meses, a guerra na Ucrânia tem sido sentida, percebida e analisada em todo o planeta segundo diferentes memórias e passados. Lamentavelmente, os pontos de vista do Sul Global, particularmente da América Latina, continuam distorcidos e percebidos erroneamente como pró-Rússia por muitos nos Estados Unidos e na Europa — o que constitui uma oportunidade perdida, porque as perspectivas singulares da região ainda poderiam ajudar a pôr fim à guerra antes que o conflito escale e saia ainda mais de controle.

Mas o que a América Latina poderia trazer para a mesa nesse tema? A região sem dúvida é portadora de muitas vicissitudes, incluindo os índices mais altos de desigualdade e crimes violentos no mundo. Não obstante, um de seus maiores sucessos ao longo dos últimos 200 anos é sua relativa paz quando se trata do número de guerras entre países.

De fato, há que se remontar a quase um século atrás ou além para encontrar os últimos conflitos verdadeiramente grandes, como a Guerra da Tripla Aliança (1864-70), que envolveu Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina, ou a Guerra do Chaco (1932-35), entre Bolívia e Paraguai.

O presidente ucraniano Volodimir Zelenski visita Kherson após o ataque do exército russo à barragem de Kakhovka e a uma usina hidrelétrica no rio Dnipro, que inundou vários assentamentos e isolou milhares de ucranianos.  Foto: Mykola Tymchenko / EFE

Talvez contrariando a crença popular, esta paz relativa não decorre de uma ausência de tensões entre os países da região. Consideremos o exemplo das tensões periódicas ao longos das duas décadas recentes entre a liderança chavista da Venezuela e os governos conservadores da Colômbia, que em vários momentos resultaram em retóricas inflamadas, suspensões no comércio fronteiriço e até, em 2008, uma breve concentração de tropas na fronteira e rumores sobre mobilização de caças de combate.

Voltando um pouco mais, Argentina e Chile se aproximaram de uma guerra por fronteira em 1978; e um breve conflito fronteiriço ocorrido em 1995 entre Peru e Equador deixou cerca de 100 mortos antes de um esforço regional de mediação pôr fim definitivamente aos combates. Na realidade o fato dessas três disputas não terem descambado para guerras maiores decorre de vários mecanismos valiosos que a América Latina desenvolveu ao longo de muitos anos.

Entre eles: países latino-americanos trabalham há muito na criação de interações diplomáticas bilaterais para desescalada de tensões; houve avanço progressivo e observância de mecanismos de construção de confiança; o diálogo regional irrompe como meio de evitar fricções descontroladas; aceita-se mediação de partes terceiras; assim como arbitragens internacionais. (Note que a maioria dessas alternativas jamais foi empreendida seriamente antes ou durante a guerra na Ucrânia.)

Além disso, a América Latina tem afirmado há anos sua singular condição de zona de paz, estabeleceu a primeira área livre de armas atômicas e seus dois países mais avançados em termos de capacidade nuclear — Argentina e Brasil — possuem o único sistema reconhecido de verificação de comprometimento mútuo ao uso pacífico da energia nuclear registrado em um acordo assinado com a Agência Internacional de Energia Atômica.

Consequentemente, quando anteriormente este ano o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, pediu paz na Ucrânia, ele não expressou apenas sua própria preocupação a respeito da evolução da guerra, mas também apresentou as credenciais de paz de toda a região. A América Latina — depois de anos de estagnação no crescimento desde a década de 2010, do efeito socioeconômico devastador da covid-19 e dos dramáticos desfechos recessionários da guerra na Ucrânia — não pode optar pela passividade: a região é detentora do imperativo de invocar urgência pela calma global.

Neste estágio, o mundo não precisa de uma “coalizão de voluntários” dispostos a exacerbar a guerra, mas uma “coalizão de não agressores” para promover a causa da paz. O espectro de uma hecatombe nuclear está aumentando, e silenciar as opções para um desfecho negociado não é apenas contraproducente para toda a comunidade internacional — é também perigoso.

A Rússia, a Ucrânia e o Ocidente sabem perfeitamente bem que guerras prolongadas sempre se degradam se não há uma solução diplomática. A convicção de que estamos passando apenas por uma “guerra limitada” — à la século 18 — é uma ilusão: nós estamos no meio da mudança de equilíbrio de poder mais importante em séculos, com múltiplos pontos de fricção e uma crescente rivalidade entre os dois maiores representantes do Oriente e do Ocidente: China e EUA.

Tendência regional de respeito à soberania

A ideia de que na Ucrânia cada parte está agindo defensivamente não é clara para o Sul Global. Além disso, quem observa as partes em disputa tem a sensação de que a escalada é a verdadeira estratégia tanto da Rússia quanto do Ocidente. Retóricas à parte, muito poucos no Sul Global assumem que os países mais poderosos do Ocidente operam segundo uma ordem com base em regras e que sanções sejam mecanismos eficazes para impedir guerras.

A América Latina, da mesma maneira que o restante do Sul Global, é defensora persistente da integridade territorial e da soberania dos países, ao mesmo tempo que rejeita o uso ilegal da força. Uma análise ponderada dos votos recentes dos países latino-americanos no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU mostra exatamente isso.

Similarmente, a falta de apoio da América Latina às sanções contra a Rússia e ao fornecimento de armas para a Ucrânia não é novidade, tampouco é parte de um posicionamento pró-Moscou. Em vez disso, a região testemunhou em primeira mão a ineficácia das sanções ao longo das seis décadas de embargo a Cuba, enquanto o nível de gasto militar na América Latina declina em termos reais desde dos anos 60 e o gasto em geral das nações latino-americanas caiu significativamente na última década. É importante lembrar que apenas 26% dos membros das Nações Unidas aplicam o regime de sanções à Rússia e fornecem ajuda militar à Ucrânia.

Adicionalmente, a América Latina tem na memória outro momento crítico na história recente em que a possibilidade do uso de armas nucleares se fez presente. A Crise dos Mísseis de Cuba, de 1962, gerou uma preocupação massiva e duradoura na região. Se o conselho do então general Curtis LeMay de lançar um ataque nuclear antes dos comunistas fosse colocado em prática, a América Latina poderia ter se transformado no laboratório da guerra atômica entre os EUA e a União Soviética.

Concluindo, a experiência da América Latina em termos de guerra e paz é relevante e merece ser levada em consideração. Europa e EUA deveriam entender que não são capazes de moldar o sistema global como tiveram a oportunidade de fazer no fim da Guerra Fria e que nós temos vivido (e continuaremos a viver) em um mundo pós-ocidental.

Uma ordem mais plural, multidimensional e complexa está emergindo: neste contexto, a voz e a experiência de regiões como a América Latina deveriam ser bem recebidas, em vez de desprezadas. O cardápio das opções praticadas pela América Latina — entre elas mecanismos discretos de desescalada, diplomacia furtiva entre os dois participantes cruciais (Moscou e Washington) e apoio regional — pode e deve ser explorado. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

BUENOS AIRES – Perspectiva importa. Ao longo dos últimos 16 meses, a guerra na Ucrânia tem sido sentida, percebida e analisada em todo o planeta segundo diferentes memórias e passados. Lamentavelmente, os pontos de vista do Sul Global, particularmente da América Latina, continuam distorcidos e percebidos erroneamente como pró-Rússia por muitos nos Estados Unidos e na Europa — o que constitui uma oportunidade perdida, porque as perspectivas singulares da região ainda poderiam ajudar a pôr fim à guerra antes que o conflito escale e saia ainda mais de controle.

Mas o que a América Latina poderia trazer para a mesa nesse tema? A região sem dúvida é portadora de muitas vicissitudes, incluindo os índices mais altos de desigualdade e crimes violentos no mundo. Não obstante, um de seus maiores sucessos ao longo dos últimos 200 anos é sua relativa paz quando se trata do número de guerras entre países.

De fato, há que se remontar a quase um século atrás ou além para encontrar os últimos conflitos verdadeiramente grandes, como a Guerra da Tripla Aliança (1864-70), que envolveu Paraguai, Brasil, Uruguai e Argentina, ou a Guerra do Chaco (1932-35), entre Bolívia e Paraguai.

O presidente ucraniano Volodimir Zelenski visita Kherson após o ataque do exército russo à barragem de Kakhovka e a uma usina hidrelétrica no rio Dnipro, que inundou vários assentamentos e isolou milhares de ucranianos.  Foto: Mykola Tymchenko / EFE

Talvez contrariando a crença popular, esta paz relativa não decorre de uma ausência de tensões entre os países da região. Consideremos o exemplo das tensões periódicas ao longos das duas décadas recentes entre a liderança chavista da Venezuela e os governos conservadores da Colômbia, que em vários momentos resultaram em retóricas inflamadas, suspensões no comércio fronteiriço e até, em 2008, uma breve concentração de tropas na fronteira e rumores sobre mobilização de caças de combate.

Voltando um pouco mais, Argentina e Chile se aproximaram de uma guerra por fronteira em 1978; e um breve conflito fronteiriço ocorrido em 1995 entre Peru e Equador deixou cerca de 100 mortos antes de um esforço regional de mediação pôr fim definitivamente aos combates. Na realidade o fato dessas três disputas não terem descambado para guerras maiores decorre de vários mecanismos valiosos que a América Latina desenvolveu ao longo de muitos anos.

Entre eles: países latino-americanos trabalham há muito na criação de interações diplomáticas bilaterais para desescalada de tensões; houve avanço progressivo e observância de mecanismos de construção de confiança; o diálogo regional irrompe como meio de evitar fricções descontroladas; aceita-se mediação de partes terceiras; assim como arbitragens internacionais. (Note que a maioria dessas alternativas jamais foi empreendida seriamente antes ou durante a guerra na Ucrânia.)

Além disso, a América Latina tem afirmado há anos sua singular condição de zona de paz, estabeleceu a primeira área livre de armas atômicas e seus dois países mais avançados em termos de capacidade nuclear — Argentina e Brasil — possuem o único sistema reconhecido de verificação de comprometimento mútuo ao uso pacífico da energia nuclear registrado em um acordo assinado com a Agência Internacional de Energia Atômica.

Consequentemente, quando anteriormente este ano o presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, pediu paz na Ucrânia, ele não expressou apenas sua própria preocupação a respeito da evolução da guerra, mas também apresentou as credenciais de paz de toda a região. A América Latina — depois de anos de estagnação no crescimento desde a década de 2010, do efeito socioeconômico devastador da covid-19 e dos dramáticos desfechos recessionários da guerra na Ucrânia — não pode optar pela passividade: a região é detentora do imperativo de invocar urgência pela calma global.

Neste estágio, o mundo não precisa de uma “coalizão de voluntários” dispostos a exacerbar a guerra, mas uma “coalizão de não agressores” para promover a causa da paz. O espectro de uma hecatombe nuclear está aumentando, e silenciar as opções para um desfecho negociado não é apenas contraproducente para toda a comunidade internacional — é também perigoso.

A Rússia, a Ucrânia e o Ocidente sabem perfeitamente bem que guerras prolongadas sempre se degradam se não há uma solução diplomática. A convicção de que estamos passando apenas por uma “guerra limitada” — à la século 18 — é uma ilusão: nós estamos no meio da mudança de equilíbrio de poder mais importante em séculos, com múltiplos pontos de fricção e uma crescente rivalidade entre os dois maiores representantes do Oriente e do Ocidente: China e EUA.

Tendência regional de respeito à soberania

A ideia de que na Ucrânia cada parte está agindo defensivamente não é clara para o Sul Global. Além disso, quem observa as partes em disputa tem a sensação de que a escalada é a verdadeira estratégia tanto da Rússia quanto do Ocidente. Retóricas à parte, muito poucos no Sul Global assumem que os países mais poderosos do Ocidente operam segundo uma ordem com base em regras e que sanções sejam mecanismos eficazes para impedir guerras.

A América Latina, da mesma maneira que o restante do Sul Global, é defensora persistente da integridade territorial e da soberania dos países, ao mesmo tempo que rejeita o uso ilegal da força. Uma análise ponderada dos votos recentes dos países latino-americanos no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU mostra exatamente isso.

Similarmente, a falta de apoio da América Latina às sanções contra a Rússia e ao fornecimento de armas para a Ucrânia não é novidade, tampouco é parte de um posicionamento pró-Moscou. Em vez disso, a região testemunhou em primeira mão a ineficácia das sanções ao longo das seis décadas de embargo a Cuba, enquanto o nível de gasto militar na América Latina declina em termos reais desde dos anos 60 e o gasto em geral das nações latino-americanas caiu significativamente na última década. É importante lembrar que apenas 26% dos membros das Nações Unidas aplicam o regime de sanções à Rússia e fornecem ajuda militar à Ucrânia.

Adicionalmente, a América Latina tem na memória outro momento crítico na história recente em que a possibilidade do uso de armas nucleares se fez presente. A Crise dos Mísseis de Cuba, de 1962, gerou uma preocupação massiva e duradoura na região. Se o conselho do então general Curtis LeMay de lançar um ataque nuclear antes dos comunistas fosse colocado em prática, a América Latina poderia ter se transformado no laboratório da guerra atômica entre os EUA e a União Soviética.

Concluindo, a experiência da América Latina em termos de guerra e paz é relevante e merece ser levada em consideração. Europa e EUA deveriam entender que não são capazes de moldar o sistema global como tiveram a oportunidade de fazer no fim da Guerra Fria e que nós temos vivido (e continuaremos a viver) em um mundo pós-ocidental.

Uma ordem mais plural, multidimensional e complexa está emergindo: neste contexto, a voz e a experiência de regiões como a América Latina deveriam ser bem recebidas, em vez de desprezadas. O cardápio das opções praticadas pela América Latina — entre elas mecanismos discretos de desescalada, diplomacia furtiva entre os dois participantes cruciais (Moscou e Washington) e apoio regional — pode e deve ser explorado. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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