A marcha de Hong Kong na direção de um futuro autoritário começou com uma simples frase num plano de ação formulado pela China: “Pequim tem jurisdição ampla sobre o território”.
Publicado em junho de 2014, o documento sinalizava a determinação de Xi Jinping de reprimir a atitude de desafio político da ex-colônia britânica, que manteve suas próprias leis e liberdades. Mas aquelas palavras foram afastadas por muitos como uma bravata intimidadora que o robusto sistema legal de Hong Kong e a oposição democrática conseguiriam enfrentar.
Hong Kong agora sabe das ambições de Xi Jinping com uma perplexa clareza. O documento deu início a uma disputa pelo controle da cidade e culminou numa lei de segurança nacional radical que pouca gente achava que um dia seria promulgada.
Desde que a lei entrou em vigor, há um ano, Pequim adotou uma avalanche de medidas para colocar Hong Kong sob o comando político do Partido Comunista Chinês: prendeu ativistas, confiscou ativos, demitiu funcionários públicos, deteve editores de jornais e reformulou o currículo escolar.
Embora a impressão fosse de que a repressão havia chegado com uma velocidade alarmante, o fato é que ela foi o coroamento dos esforços chineses que vinham se concretizando há anos. Entrevistas com pessoas familiarizadas com o assunto, conselheiros, e análises de discursos, planos de ação formulados, estudos financiados pelo Estado, revelam o crescente alarme das autoridades chinesas no tocante aos protestos ocorrendo em Hong Kong; sua impaciência com a hesitação da elite no governo da cidade favorável a Pequim; e a crescente convicção de que Hong Kong se tornara um refúgio da subversão apoiada pelo Ocidente.
Nos anos que se seguiram após a divulgação do seu plano de ação, Pequim estabeleceu as bases de uma contraofensiva. As autoridades chinesas atacaram a ideia de que a autonomia de Hong Kong era impossível de ser mexida com base no acordo negociado com o Reino Unido que pôs fim ao governo colonial. E rechaçaram demandas por direitos democráticos, ao mesmo tempo que assessores influentes audaciosamente propuseram que Pequim implementasse uma lei de segurança se os legisladores de Hong Kong não o fizessem.
A ofensiva da China acelerou dramaticamente sua absorção de Hong Kong, pressagiando mudanças mais profundas que acabariam com seu status de capital cosmopolita da Ásia.
“O processo inteiro se desenvolveu e evoluiu gradativamente até alguns anos atrás e depois acelerou rapidamente”, afirmou Lau Siu-Kai, estudioso de Hong Kong que assessora Pequim no campo político. “O problema é que a lei de segurança nacional foi implementada muito repentinamente e muitas pessoas foram pegas de surpresa, incluindo aquelas favoráveis a Pequim.”
Um muro desaparece
Xi chegou ao poder em 2012 em meio a expectativas em Hong Kong de que ele seria um superintendente pragmático, satisfeito com os políticos e magnatas que há muito tempo já falavam em nome de Pequim.
Seu pai foi um líder da liberalização na Província de Guangdong e Xi de início exibiu uma imagem relativamente branda. Disse a Leung Chun-ying, principal autoridade de Hong Kong, que a estratégia da China com relação ao território “não mudará”.
Mas instalado no poder, ele estabeleceu uma agenda ideológica férrea. Na China continental, sufocou os dissidentes e denunciou ideias como independência do Judiciário e sociedade civil - valores que para muitos definem Hong Kong.
O plano de ação de 2014 assinalou sua rejeição à ideia de que leis e tratados isolavam Hong Kong do poder estatal chinês. Muitas pessoas na cidade há muito tempo se preocupavam de que a sua autonomia era frágil, mas os líderes chineses anteriores preferiram exercer uma influência indireta e velada.
A nova frase do documento, “ampla jurisdição” sugeria que Pequim não via mais um muro circundando e fechando Hong Kong, como afirmou Michael C. Davies, ex-professor de Direito na Universidade de Hong Kong e autor do livro Making Hong Kong China.
Se de um lado essa frase provocou protestos por parte dos legisladores em Hong Kong, muitos a consideraram uma declaração política de intimidação sem fundamento legal e que incitaria a oposição em vez de detê-la.
“Essa posição declarada de pressionar até a morte é insana”, disse na época Chan Kin-man, acadêmico líder da campanha pró-democracia em Hong Kong. “Isto só vai provocar uma reação social muito maior.”
Pequim logo deixou claro que pensava seriamente em novas regras para Hong Kong.
Hu Jintao, predecessor de Xi, levantou a possibilidade de cumprir a promessa repetidas vezes adiada de Pequim de deixar que a população do território autônomo elegesse diretamente o chefe do seu Executivo, principal autoridade de Hong Kong. Em agosto de 2014, o governo chinês anunciou uma proposta para permitir o voto direto a partir de 2017, mas os candidatos seriam apenas aqueles aprovados por Pequim.
Dezenas de milhares de pessoas reagiram ocupando as ruas da cidade durante dois meses e meio. Os líderes chineses começaram a se preocupar de que o território poderia se tornar um abscesso ideológico que seria necessário intervir.
Mas Xi ainda não estava pronto para fazer incursões drásticas em Hong Kong. Sua política girou entre alertas e gestos tranquilizadores no campo econômico, levando algumas pessoas a achar que a mordida do partido não condizia com seu ladrar retórico.
O controle de Xi sobre o próprio aparato de segurança da China estava incompleto. Pequim também queria manter sob controle as tensões com os Estados Unidos e dar tempo a Hong Kong para restaurar sua economia após as manifestações, disse Tian Feilong, professor de Direito na universidade Beihang em Pequim, que defendeu uma abordagem mais dura com relação aos manifestantes.
Diante dessas considerações, afirmou ele, os líderes chineses não começaram a trabalhar com vistas a resolver o problema da segurança nacional.
Batata quente
Restringir a oposição em Hong Kong foi mais complicado do que outras áreas tensas da periferia da China, como Tibete e Xinjiang.
O território tinha seu próprio sistema legal herdado dos britânicos, uma oposição democrática popular e bem organizada e uma exposição econômica global muito maior. Enviar tropas chinesas para sufocar os protestos poderia assustar os mercados financeiros.
Políticos pró-Pequim relutaram em promover a lei de segurança nacional. Uma tentativa anterior, em 2003, havia fracassado depois de um enorme protesto.
“Ninguém se dispôs a agarrar essa batata quente”, disse Tian. “Ninguém, incluindo os países ocidentais, acreditava realmente que Hong Kong, a nível local, tinha força para implementar essa legislação.”
Depois de 2014, os apelos de Xi pelo ressurgimento do poder partidário incentivaram os assessores políticos a buscarem novas maneiras de quebrar o impasse sobre Hong Kong. Vozes mais radicais argumentaram que a China deveria impor uma lei de segurança no território por decreto.
“Algumas pessoas acham que o governo central não pode fazer tudo o que quer”, afirmou Mo Jihong, professor da Academia de Ciências Sociais Chinesa, durante uma reunião em 2016 sobre uma legislação de segurança para Hong Kong. “O governo central tem poder para tratar desses assuntos.”
Alguns acadêmicos chineses publicaram estudos argumentando que a própria lei de segurança nacional da China continental poderia ser estendida para Hong Kong. Outros propuseram que fosse elaborada uma lei sob medida para o território, com isso contornando os obstáculos na cidade.
Em julho de 2017, quando a elite de Hong Kong se reuniu para comemorar o 20º aniversário do retorno do território para a soberania chinesa, Xi estava disposto a aumentar as apostas.
Foi a primeira visita de um líder da China a Hong Kong. Horas antes, milhares de pessoas iniciarem um protesto anual em favor de mais direitos democráticos, Xi fez uma advertência extremamente dura no seu discurso comemorativo.
"Ameaças à segurança e à soberania nacional, ou contestações à autoridade do governo central em Hong Kong, cruzarão uma linha vermelha e nunca serão permitidas”, afirmou ele.
O sistema de cima para baixo da China, as palavras usadas por Xi estimularam os legisladores a buscar meios para defender essa linha vermelha.
Um alerta esquecido
Para Pequim, o momento crucial surgiu na noite de 21 de julho de 2019. Centenas de manifestantes cercaram o Central Liaison Office, o principal braço da China em Hong Kong, e cobriram de tinta preta o emblema nacional chinês, em vermelho e dourado, na entrada.
As manifestações haviam começado em junho como um protesto pacífico contra um projeto de lei que permitia extradições para a China continental. Em questão de semanas se tornaram um movimento gigantesco de desafogo contra anos de descontentamento crescente com as intrusões de Pequim. Alguns manifestantes mais radicais começaram a exigir a independência do território.
Para muitos cidadãos, a resistência era necessária mesmo que uma vitória fosse improvável. “Pensávamos que seria um estrangulamento lento”, disse Jackie Chan, assistente social que apoiou os protestos em 2019. “Nossa ideia era retardar esse estrangulamento, contê-lo e então mudar para algo melhor.”
Para Pequim, o vandalismo no caso do emblema nacional confirmou que os protestos haviam se tornado um ataque à sua reivindicação do território.
A mídia oficial, calada sobre os protestos durante semanas, manifestou-se furiosamente. O People’s Daily, principal jornal do Partido Comunista, declarou que o incidente desafiou sem pudor a autoridade do governo central e cruzou uma linha vermelh”, repetindo a advertência feita por Xi dois anos antes.
“Já basta”, disse Regina Ip, deputada em Hong Kong pró-Pequim, numa recente entrevista, referindo-se à reação das autoridades ao vandalismo.
O sinal mais nítido de como Pequim reagiria veio em outubro de 2019. A TV estatal mostrou centenas de autoridades do alto escalão numa reunião a portas fechadas levantando os braços para endossar uma medida visando endurecer a lei e a ordem em toda a China.
O plano, publicado dias depois, era no sentido de “um sistema legal e um mecanismo de aplicação da segurança nacional” em Hong Kong.
Esse alerta foi ignorado. Se de um lado muitos cidadãos de Hong Kong imaginavam que Pequim adotaria medidas para pôr fim aos protestos, muitos achavam que as medidas seriam familiares. Alguns esperavam uma nova pressão sobre as autoridades locais para implementarem as leis de segurança.
Mas os líderes chineses já pretendiam ir mais além das autoridades que administram Hong Kong - sua credibilidade abalada por meses de protestos - e discretamente recrutaram especialistas com vistas à preparação de uma intervenção, disseram duas pessoas que tomaram conhecimento das deliberações. Agências principais do Partido Comunista conduziram os preparativos.
Xi formalmente ampliou o formidável aparato de segurança da China para Hong Kong, criando uma agência ali que responde diretamente ao partido.
Nem mesmo as mais draconianas propostas públicas para uma lei de segurança haviam concebido tal medida. “Ninguém pensaria que haveria uma agência central em Hong Kong”, disse Fu Hualing, diretor da faculdade de Direito da Universidade de Hong Kong.
Boa acolhida e suporte
O anúncio chocou a cidade. Antes da reunião legislativa anual da China, um porta-voz afirmou numa coletiva de imprensa tarde da noite do dia 21 de maio que os legisladores haviam revisado um plano para impor uma lei de segurança nacional em Hong Kong.
A lei foi rapidamente aprovada em 30 de junho, estabelecendo quatro crimes - separatismo, subversão, terrorismo e conluio com potências estrangeiras - com penalidades de até prisão perpétua. E impõe também uma fiscalização das escolas e da mídia.
Com base na lei foi criada a nova agência de segurança chinesa em Hong Kong, imune a contestações legais. Ela tem poderes para investigar casos e enviar os acusados para serem julgados no continente, onde os tribunais controlados pelo partido raramente rejeitam as acusações dos promotores.
Autoridades da cidade inicialmente disseram que a lei seria aplicada com uma precisão escrupulosa; mas em vez disso, desencadeou uma campanha que deixou poucos segmentos da sociedade intocados.
Mais de 11 pessoas foram presas em investigações baseadas na lei de segurança nacional durante o ano passado, 64 foram acusadas, incluindo ativistas pró-democracia muito conhecidos.
A agência de segurança chinesa tem se mantido à distância. Sua presença mais visível é marcada pelo prédio onde tem sua sede temporária, o Metropark Hotel Causeway Bay, que dá vista para o Victoria Park, outrora local de algumas das maiores manifestações de protesto realizadas em Hong Kong.
Mas ocasionalmente ela quebra seu silêncio, lembrando os moradores que ela atua por trás dos bastidores. Tem elogiado as prisões de figuras conhecidas, incluindo políticos da oposição e editores do Apple Daily, tabloide pró-democracia que foi forçado a fechar na semana passada.
A agência vasculha museus em busca de obras de arte potencialmente subversivas, segundo uma autoridade local. E tem enaltecido a lei de segurança nacional como solução para a turbulência política em Hong Kong.
“Agradeço a população de Hong Kong”, afirmou o diretor Zheng Yanxiong num raro discurso público proferido no National Security Education Day, em abril. “As pessoas passaram de um processo racional, muito natural, da falta de familiaridade, esperando para ver o que acontece, no caso da lei de segurança nacional, para uma aceitação, acolhendo-a bem e dando suporte”.
Uma semana depois, o governo de Hong Kong anunciou que a agência de segurança da China construirá uma sede permanente na cidade, ocupando um espaço equivalente a dois campos de futebol./TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO