Como a dependência de armas da Rússia prejudica aproximação entre Índia e EUA


Durante a visita do primeiro-ministro indiano a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar da Índia

Por Karishma Mehrotra

THE WASHINGTON POST, NOVA DÉLHI — Um dos armamentos mais proeminentes da Índia é um míssil supersônico que pode ser lançado de mar, terra e ar. Seu nome, BrahMos, vem de uma combinação entre os Rios Brahmaputra, indiano, e Moscou, russo, pois Índia e Rússia começaram a desenvolver o míssil conjuntamente após a queda da União Soviética. Autoridades de defesa indianas o chamam de “Brahmastra” — uma arma da mitologia hindu capaz de destruir o universo inteiro.

A Índia considera o BrahMos parte essencial de uma capacidade militar com força para sobreviver a um ataque nuclear e o acionou em sua tensa fronteira com a China. O míssil foi fornecido às Filipinas, e possíveis vendas ao Vietnã e à Indonésia estão em andamento.

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Conforme o presidente Joe Biden recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na Casa Branca, esta semana, o míssil BrahMos ilustra como a antiga dependência da Índia em relação a equipamento e tecnologia militar da Rússia restringe a capacidade de Nova Délhi alinhar-se com o Ocidente para confrontar os russos por sua guerra na Ucrânia. Para a decepção de Washington, a Índia não condenou a invasão.

O míssil supersônico indiano BrahMos é exibido em uma parada militar em Nova Dle´lhi, na Índia: parceria próxima com a Rússia  Foto: Kamal Kishore/Reuters

Relação armamentista

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A relação armamentista é um “impulsionador crucial” da relutância indiana em expressar oposição à invasão russa à Ucrânia, afirmou Richard Rossow, chefe de pesquisas em políticas EUA-Índia no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

O comércio militar robusto entre os países remonta aos anos 60, e equipamentos russos atualmente constituem cerca de 85% do arsenal indiano, de acordo com uma equipe liderada por Sameer Lalwani, especialista sênior do Instituto dos Estados Unidos para a Paz. A Rússia forneceu caças de combate, submarinos nucleares, mísseis de cruzeiro, tanques, fuzis Kalashnikov e muito mais. Parte disso, como as aeronaves de combate, pode permanecer no arsenal indiano até 2065. A Índia continuará dependente de Moscou para obter peças de reposição e fazer manutenção dos equipamentos nas próximas décadas.

Outras formas de influência russa — incluindo apoio à Índia nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais e, desde do início da guerra na Ucrânia, vendas de petróleo com desconto — mantiveram a Índia próxima da Rússia. Mas especialistas como Lalwani afirmam que a dependência militar é o laço “mais forte” e “mais durável” entre os dois países.

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“O número de países realmente importantes para os EUA que têm bastante equipamento russo é pequeno, e a Índia está no topo dessa lista”, afirmou Chris Clary, ex-diretor para assuntos sul-asiáticos no gabinete do secretário da Defesa dos EUA, que atualmente leciona na Universidade do Estado de Nova York, em Albany. “O quadro maior é que não se acaba com uma relação de seis décadas rapidamente. Não será fácil nem mesmo para uma liderança nacional determinada superar isso, e para mim não está totalmente claro que a atual incumbência em Nova Délhi seja determinada.”

Durante a visita de Modi a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar indiana com discussões em andamento a respeito de acordos para a venda de 31 drones armados e fabricação conjunta de motores de caças de combate envolvendo a General Electric e uma nova iniciativa para aprofundar cooperação em pesquisa militar.

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Maior importador de armas do planeta

Os EUA buscaram expandir seu papel na década recente conforme as importações indianas da Rússia diminuíram gradualmente. A Índia, país que mais importa armas no planeta, obteve 45% de seu equipamento militar da Rússia entre 2018 e 2022, uma queda significativa em relação aos dois terços do quinquênio anterior, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Os fornecimentos dos americanos ainda representam apenas 1% do equipamento militar do Exército da Índia e cerca de 4% de sua Marinha e Força Aérea, afirmou Lalwani. Entre 2018 e 2022, de acordo com o SIPRI, o valor estimado dos armamentos russos vendidos para a Índia foi quatro vezes maior que o das compras indianas de armas americanas.

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O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala durante uma visita à National Science Foundation com a primeira-dama dos EUA, Jill Biden (não retratada), em Alexandria, Virgínia, EUA, em 21 de junho de 2023. Foto: Evelyn Hockstein / REUTERS

As autoridades dos EUA podem não estar felizes a respeito da predominância russa no arsenal militar indiano. Mas reconhecem ser importante que essas armas permaneçam eficazes dada a continuidade das tensões entre Índia e China, que representa a maior preocupação na Ásia, afirmou Rossow.

Compartilhamento de tecnologia

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Analistas de defesa na Índia concordam que a tecnologia russa está ficando obsoleta em relação a outros fornecedores, o que torna os contratos com os EUA mais desejáveis. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia causou atrasos no fornecimento de peças de reposição da Rússia, assim como problemas para os pagamentos. O professor de política internacional Rajesh Rajagopalan, da Universidade Jawaharlal, em Nova Délhi, disse suspeitar que os líderes indianos agora estão se “arrependendo de sua dependência excessiva” em relação à Rússia.

O domínio russo do mercado indiano tem raízes profundas. “A Rússia esteve historicamente disposta a fornecer tecnologias para a Índia que, sinceramente, os EUA evitaram compartilhar”, afirmou Lisa Curtis, diretora de segurança no Indo-Pacífico do Centro para uma Nova Segurança Americana, que anteriormente foi diretora de políticas para o sul da Ásia no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Quando a União Soviética fez sua primeira grande venda de caças de combate MiG-21 para a Índia, nos anos 60, Moscou ofereceu atrativos que Washington não equiparou, incluindo permitir aos indianos pagar em rúpias e produzir as aeronaves domesticamente. Nas décadas que se seguiram, os russos mantiveram monopólio quase completo sobre o mercado militar da Índia, cobrando preços menores que os competidores e oferecendo algumas transferências de tecnologia. Os russos começaram a ampliar abertamente o compartilhamento de tecnologia nuclear nos anos 80, vendendo para a Índia um submarino atômico e apoiando a produção de energia nuclear no país.

Muitas autoridades militares e estrategistas indianos, especialmente os que amadureceram durante a Guerra Fria, ficaram marcados pela decisão dos EUA, de 1971, de se alinhar com o Paquistão em sua guerra com a Índia. “Três décadas de relação Índia-EUA se perderam porque os americanos sentiram que nós éramos pró-soviéticos”, afirmou o ex-embaixador indiano na Rússia D.B. Venkatesh Verma. “Nós nos voltamos para os soviéticos porque nada nos foi oferecido.”

Soldados indianos desembarcam de um avião de transporte militar em uma base aérea avançada em Leh, na região de Ladakh, em 15 de setembro de 2020. Foto: DANISH SIDDIQUI / REUTERS

Após o colapso da União Soviética, quando a Índia esteve ávida para construir novas relações comerciais, os EUA continuaram relutantes em fornecer equipamentos militares aos indianos em razão de suas ambições de desenvolver capacidade nuclear militar, afirmou Verma.

O pacto nuclear alcançado em 2008, que estabeleceu coordenação entre Índia e EUA em relação a capacidades atômicas, marcou uma grande inflexão nas relações entre Nova Délhi e Washington.

“O sentimento em relação aos EUA se tornou muito mais caloroso ao longo dos 15 anos recentes, mas ainda não alcançou o nível de empatia estratégica que a Índia compartilhou com União Soviética e Rússia”, afirmou Rajagopalan.

Após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia, em 2014, e a interferência russa nas eleições americanas, em 2016, os EUA têm se oposto cada vez mais a que países comprem equipamentos da Rússia, adotando sanções, em 2017, que restringiram o compartilhamento de tecnologias americanas com nações que adquiriram determinados equipamentos russos. Apesar do risco de sanções, a Índia fechou um acordo para comprar mísseis de longo alcance dos russos conhecidos como S-400, que provavelmente durarão outras duas décadas.

A relação Índia-Rússia “lança uma sombra bastante longa sobre o futuro”, afirmou Verma. “Espera-se que haja entendimento dos EUA de que esta é uma transição que deve-se permitir à Índia fazer em seu próprio ritmo, porque a Índia é grande demais e sua relação com a Rússia é profunda demais para reviravoltas”.

Alguns especialistas na Índia já percebem o país se afastando da Rússia. Happymon Jacob, professor de estudos sobre desarmamento da Universidade Jawaharlal Nehru, afirma que os indianos pensam na relação da Rússia em “termos passados” e na relação com os EUA em “termos futuros”.

Autoridades de defesa graduadas dos EUA afirmam que a Índia começou a reduzir sua dependência em relação à Rússia antes da guerra na Ucrânia, notando que a Lockheed Martin já está produzindo asas de F-16 e caudas de C-130J em fábricas indianas. “Ainda existe uma realidade com a qual eles têm de lidar em relação à Rússia? Sim. Mas as tendências rumam para o sentido correto”, afirmou uma autoridade, falando sob condição de anonimato para não violar regras básicas estabelecidas pelo Pentágono. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE WASHINGTON POST, NOVA DÉLHI — Um dos armamentos mais proeminentes da Índia é um míssil supersônico que pode ser lançado de mar, terra e ar. Seu nome, BrahMos, vem de uma combinação entre os Rios Brahmaputra, indiano, e Moscou, russo, pois Índia e Rússia começaram a desenvolver o míssil conjuntamente após a queda da União Soviética. Autoridades de defesa indianas o chamam de “Brahmastra” — uma arma da mitologia hindu capaz de destruir o universo inteiro.

A Índia considera o BrahMos parte essencial de uma capacidade militar com força para sobreviver a um ataque nuclear e o acionou em sua tensa fronteira com a China. O míssil foi fornecido às Filipinas, e possíveis vendas ao Vietnã e à Indonésia estão em andamento.

Conforme o presidente Joe Biden recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na Casa Branca, esta semana, o míssil BrahMos ilustra como a antiga dependência da Índia em relação a equipamento e tecnologia militar da Rússia restringe a capacidade de Nova Délhi alinhar-se com o Ocidente para confrontar os russos por sua guerra na Ucrânia. Para a decepção de Washington, a Índia não condenou a invasão.

O míssil supersônico indiano BrahMos é exibido em uma parada militar em Nova Dle´lhi, na Índia: parceria próxima com a Rússia  Foto: Kamal Kishore/Reuters

Relação armamentista

A relação armamentista é um “impulsionador crucial” da relutância indiana em expressar oposição à invasão russa à Ucrânia, afirmou Richard Rossow, chefe de pesquisas em políticas EUA-Índia no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

O comércio militar robusto entre os países remonta aos anos 60, e equipamentos russos atualmente constituem cerca de 85% do arsenal indiano, de acordo com uma equipe liderada por Sameer Lalwani, especialista sênior do Instituto dos Estados Unidos para a Paz. A Rússia forneceu caças de combate, submarinos nucleares, mísseis de cruzeiro, tanques, fuzis Kalashnikov e muito mais. Parte disso, como as aeronaves de combate, pode permanecer no arsenal indiano até 2065. A Índia continuará dependente de Moscou para obter peças de reposição e fazer manutenção dos equipamentos nas próximas décadas.

Outras formas de influência russa — incluindo apoio à Índia nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais e, desde do início da guerra na Ucrânia, vendas de petróleo com desconto — mantiveram a Índia próxima da Rússia. Mas especialistas como Lalwani afirmam que a dependência militar é o laço “mais forte” e “mais durável” entre os dois países.

“O número de países realmente importantes para os EUA que têm bastante equipamento russo é pequeno, e a Índia está no topo dessa lista”, afirmou Chris Clary, ex-diretor para assuntos sul-asiáticos no gabinete do secretário da Defesa dos EUA, que atualmente leciona na Universidade do Estado de Nova York, em Albany. “O quadro maior é que não se acaba com uma relação de seis décadas rapidamente. Não será fácil nem mesmo para uma liderança nacional determinada superar isso, e para mim não está totalmente claro que a atual incumbência em Nova Délhi seja determinada.”

Durante a visita de Modi a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar indiana com discussões em andamento a respeito de acordos para a venda de 31 drones armados e fabricação conjunta de motores de caças de combate envolvendo a General Electric e uma nova iniciativa para aprofundar cooperação em pesquisa militar.

Maior importador de armas do planeta

Os EUA buscaram expandir seu papel na década recente conforme as importações indianas da Rússia diminuíram gradualmente. A Índia, país que mais importa armas no planeta, obteve 45% de seu equipamento militar da Rússia entre 2018 e 2022, uma queda significativa em relação aos dois terços do quinquênio anterior, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Os fornecimentos dos americanos ainda representam apenas 1% do equipamento militar do Exército da Índia e cerca de 4% de sua Marinha e Força Aérea, afirmou Lalwani. Entre 2018 e 2022, de acordo com o SIPRI, o valor estimado dos armamentos russos vendidos para a Índia foi quatro vezes maior que o das compras indianas de armas americanas.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala durante uma visita à National Science Foundation com a primeira-dama dos EUA, Jill Biden (não retratada), em Alexandria, Virgínia, EUA, em 21 de junho de 2023. Foto: Evelyn Hockstein / REUTERS

As autoridades dos EUA podem não estar felizes a respeito da predominância russa no arsenal militar indiano. Mas reconhecem ser importante que essas armas permaneçam eficazes dada a continuidade das tensões entre Índia e China, que representa a maior preocupação na Ásia, afirmou Rossow.

Compartilhamento de tecnologia

Analistas de defesa na Índia concordam que a tecnologia russa está ficando obsoleta em relação a outros fornecedores, o que torna os contratos com os EUA mais desejáveis. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia causou atrasos no fornecimento de peças de reposição da Rússia, assim como problemas para os pagamentos. O professor de política internacional Rajesh Rajagopalan, da Universidade Jawaharlal, em Nova Délhi, disse suspeitar que os líderes indianos agora estão se “arrependendo de sua dependência excessiva” em relação à Rússia.

O domínio russo do mercado indiano tem raízes profundas. “A Rússia esteve historicamente disposta a fornecer tecnologias para a Índia que, sinceramente, os EUA evitaram compartilhar”, afirmou Lisa Curtis, diretora de segurança no Indo-Pacífico do Centro para uma Nova Segurança Americana, que anteriormente foi diretora de políticas para o sul da Ásia no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Quando a União Soviética fez sua primeira grande venda de caças de combate MiG-21 para a Índia, nos anos 60, Moscou ofereceu atrativos que Washington não equiparou, incluindo permitir aos indianos pagar em rúpias e produzir as aeronaves domesticamente. Nas décadas que se seguiram, os russos mantiveram monopólio quase completo sobre o mercado militar da Índia, cobrando preços menores que os competidores e oferecendo algumas transferências de tecnologia. Os russos começaram a ampliar abertamente o compartilhamento de tecnologia nuclear nos anos 80, vendendo para a Índia um submarino atômico e apoiando a produção de energia nuclear no país.

Muitas autoridades militares e estrategistas indianos, especialmente os que amadureceram durante a Guerra Fria, ficaram marcados pela decisão dos EUA, de 1971, de se alinhar com o Paquistão em sua guerra com a Índia. “Três décadas de relação Índia-EUA se perderam porque os americanos sentiram que nós éramos pró-soviéticos”, afirmou o ex-embaixador indiano na Rússia D.B. Venkatesh Verma. “Nós nos voltamos para os soviéticos porque nada nos foi oferecido.”

Soldados indianos desembarcam de um avião de transporte militar em uma base aérea avançada em Leh, na região de Ladakh, em 15 de setembro de 2020. Foto: DANISH SIDDIQUI / REUTERS

Após o colapso da União Soviética, quando a Índia esteve ávida para construir novas relações comerciais, os EUA continuaram relutantes em fornecer equipamentos militares aos indianos em razão de suas ambições de desenvolver capacidade nuclear militar, afirmou Verma.

O pacto nuclear alcançado em 2008, que estabeleceu coordenação entre Índia e EUA em relação a capacidades atômicas, marcou uma grande inflexão nas relações entre Nova Délhi e Washington.

“O sentimento em relação aos EUA se tornou muito mais caloroso ao longo dos 15 anos recentes, mas ainda não alcançou o nível de empatia estratégica que a Índia compartilhou com União Soviética e Rússia”, afirmou Rajagopalan.

Após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia, em 2014, e a interferência russa nas eleições americanas, em 2016, os EUA têm se oposto cada vez mais a que países comprem equipamentos da Rússia, adotando sanções, em 2017, que restringiram o compartilhamento de tecnologias americanas com nações que adquiriram determinados equipamentos russos. Apesar do risco de sanções, a Índia fechou um acordo para comprar mísseis de longo alcance dos russos conhecidos como S-400, que provavelmente durarão outras duas décadas.

A relação Índia-Rússia “lança uma sombra bastante longa sobre o futuro”, afirmou Verma. “Espera-se que haja entendimento dos EUA de que esta é uma transição que deve-se permitir à Índia fazer em seu próprio ritmo, porque a Índia é grande demais e sua relação com a Rússia é profunda demais para reviravoltas”.

Alguns especialistas na Índia já percebem o país se afastando da Rússia. Happymon Jacob, professor de estudos sobre desarmamento da Universidade Jawaharlal Nehru, afirma que os indianos pensam na relação da Rússia em “termos passados” e na relação com os EUA em “termos futuros”.

Autoridades de defesa graduadas dos EUA afirmam que a Índia começou a reduzir sua dependência em relação à Rússia antes da guerra na Ucrânia, notando que a Lockheed Martin já está produzindo asas de F-16 e caudas de C-130J em fábricas indianas. “Ainda existe uma realidade com a qual eles têm de lidar em relação à Rússia? Sim. Mas as tendências rumam para o sentido correto”, afirmou uma autoridade, falando sob condição de anonimato para não violar regras básicas estabelecidas pelo Pentágono. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE WASHINGTON POST, NOVA DÉLHI — Um dos armamentos mais proeminentes da Índia é um míssil supersônico que pode ser lançado de mar, terra e ar. Seu nome, BrahMos, vem de uma combinação entre os Rios Brahmaputra, indiano, e Moscou, russo, pois Índia e Rússia começaram a desenvolver o míssil conjuntamente após a queda da União Soviética. Autoridades de defesa indianas o chamam de “Brahmastra” — uma arma da mitologia hindu capaz de destruir o universo inteiro.

A Índia considera o BrahMos parte essencial de uma capacidade militar com força para sobreviver a um ataque nuclear e o acionou em sua tensa fronteira com a China. O míssil foi fornecido às Filipinas, e possíveis vendas ao Vietnã e à Indonésia estão em andamento.

Conforme o presidente Joe Biden recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na Casa Branca, esta semana, o míssil BrahMos ilustra como a antiga dependência da Índia em relação a equipamento e tecnologia militar da Rússia restringe a capacidade de Nova Délhi alinhar-se com o Ocidente para confrontar os russos por sua guerra na Ucrânia. Para a decepção de Washington, a Índia não condenou a invasão.

O míssil supersônico indiano BrahMos é exibido em uma parada militar em Nova Dle´lhi, na Índia: parceria próxima com a Rússia  Foto: Kamal Kishore/Reuters

Relação armamentista

A relação armamentista é um “impulsionador crucial” da relutância indiana em expressar oposição à invasão russa à Ucrânia, afirmou Richard Rossow, chefe de pesquisas em políticas EUA-Índia no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

O comércio militar robusto entre os países remonta aos anos 60, e equipamentos russos atualmente constituem cerca de 85% do arsenal indiano, de acordo com uma equipe liderada por Sameer Lalwani, especialista sênior do Instituto dos Estados Unidos para a Paz. A Rússia forneceu caças de combate, submarinos nucleares, mísseis de cruzeiro, tanques, fuzis Kalashnikov e muito mais. Parte disso, como as aeronaves de combate, pode permanecer no arsenal indiano até 2065. A Índia continuará dependente de Moscou para obter peças de reposição e fazer manutenção dos equipamentos nas próximas décadas.

Outras formas de influência russa — incluindo apoio à Índia nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais e, desde do início da guerra na Ucrânia, vendas de petróleo com desconto — mantiveram a Índia próxima da Rússia. Mas especialistas como Lalwani afirmam que a dependência militar é o laço “mais forte” e “mais durável” entre os dois países.

“O número de países realmente importantes para os EUA que têm bastante equipamento russo é pequeno, e a Índia está no topo dessa lista”, afirmou Chris Clary, ex-diretor para assuntos sul-asiáticos no gabinete do secretário da Defesa dos EUA, que atualmente leciona na Universidade do Estado de Nova York, em Albany. “O quadro maior é que não se acaba com uma relação de seis décadas rapidamente. Não será fácil nem mesmo para uma liderança nacional determinada superar isso, e para mim não está totalmente claro que a atual incumbência em Nova Délhi seja determinada.”

Durante a visita de Modi a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar indiana com discussões em andamento a respeito de acordos para a venda de 31 drones armados e fabricação conjunta de motores de caças de combate envolvendo a General Electric e uma nova iniciativa para aprofundar cooperação em pesquisa militar.

Maior importador de armas do planeta

Os EUA buscaram expandir seu papel na década recente conforme as importações indianas da Rússia diminuíram gradualmente. A Índia, país que mais importa armas no planeta, obteve 45% de seu equipamento militar da Rússia entre 2018 e 2022, uma queda significativa em relação aos dois terços do quinquênio anterior, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Os fornecimentos dos americanos ainda representam apenas 1% do equipamento militar do Exército da Índia e cerca de 4% de sua Marinha e Força Aérea, afirmou Lalwani. Entre 2018 e 2022, de acordo com o SIPRI, o valor estimado dos armamentos russos vendidos para a Índia foi quatro vezes maior que o das compras indianas de armas americanas.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala durante uma visita à National Science Foundation com a primeira-dama dos EUA, Jill Biden (não retratada), em Alexandria, Virgínia, EUA, em 21 de junho de 2023. Foto: Evelyn Hockstein / REUTERS

As autoridades dos EUA podem não estar felizes a respeito da predominância russa no arsenal militar indiano. Mas reconhecem ser importante que essas armas permaneçam eficazes dada a continuidade das tensões entre Índia e China, que representa a maior preocupação na Ásia, afirmou Rossow.

Compartilhamento de tecnologia

Analistas de defesa na Índia concordam que a tecnologia russa está ficando obsoleta em relação a outros fornecedores, o que torna os contratos com os EUA mais desejáveis. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia causou atrasos no fornecimento de peças de reposição da Rússia, assim como problemas para os pagamentos. O professor de política internacional Rajesh Rajagopalan, da Universidade Jawaharlal, em Nova Délhi, disse suspeitar que os líderes indianos agora estão se “arrependendo de sua dependência excessiva” em relação à Rússia.

O domínio russo do mercado indiano tem raízes profundas. “A Rússia esteve historicamente disposta a fornecer tecnologias para a Índia que, sinceramente, os EUA evitaram compartilhar”, afirmou Lisa Curtis, diretora de segurança no Indo-Pacífico do Centro para uma Nova Segurança Americana, que anteriormente foi diretora de políticas para o sul da Ásia no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Quando a União Soviética fez sua primeira grande venda de caças de combate MiG-21 para a Índia, nos anos 60, Moscou ofereceu atrativos que Washington não equiparou, incluindo permitir aos indianos pagar em rúpias e produzir as aeronaves domesticamente. Nas décadas que se seguiram, os russos mantiveram monopólio quase completo sobre o mercado militar da Índia, cobrando preços menores que os competidores e oferecendo algumas transferências de tecnologia. Os russos começaram a ampliar abertamente o compartilhamento de tecnologia nuclear nos anos 80, vendendo para a Índia um submarino atômico e apoiando a produção de energia nuclear no país.

Muitas autoridades militares e estrategistas indianos, especialmente os que amadureceram durante a Guerra Fria, ficaram marcados pela decisão dos EUA, de 1971, de se alinhar com o Paquistão em sua guerra com a Índia. “Três décadas de relação Índia-EUA se perderam porque os americanos sentiram que nós éramos pró-soviéticos”, afirmou o ex-embaixador indiano na Rússia D.B. Venkatesh Verma. “Nós nos voltamos para os soviéticos porque nada nos foi oferecido.”

Soldados indianos desembarcam de um avião de transporte militar em uma base aérea avançada em Leh, na região de Ladakh, em 15 de setembro de 2020. Foto: DANISH SIDDIQUI / REUTERS

Após o colapso da União Soviética, quando a Índia esteve ávida para construir novas relações comerciais, os EUA continuaram relutantes em fornecer equipamentos militares aos indianos em razão de suas ambições de desenvolver capacidade nuclear militar, afirmou Verma.

O pacto nuclear alcançado em 2008, que estabeleceu coordenação entre Índia e EUA em relação a capacidades atômicas, marcou uma grande inflexão nas relações entre Nova Délhi e Washington.

“O sentimento em relação aos EUA se tornou muito mais caloroso ao longo dos 15 anos recentes, mas ainda não alcançou o nível de empatia estratégica que a Índia compartilhou com União Soviética e Rússia”, afirmou Rajagopalan.

Após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia, em 2014, e a interferência russa nas eleições americanas, em 2016, os EUA têm se oposto cada vez mais a que países comprem equipamentos da Rússia, adotando sanções, em 2017, que restringiram o compartilhamento de tecnologias americanas com nações que adquiriram determinados equipamentos russos. Apesar do risco de sanções, a Índia fechou um acordo para comprar mísseis de longo alcance dos russos conhecidos como S-400, que provavelmente durarão outras duas décadas.

A relação Índia-Rússia “lança uma sombra bastante longa sobre o futuro”, afirmou Verma. “Espera-se que haja entendimento dos EUA de que esta é uma transição que deve-se permitir à Índia fazer em seu próprio ritmo, porque a Índia é grande demais e sua relação com a Rússia é profunda demais para reviravoltas”.

Alguns especialistas na Índia já percebem o país se afastando da Rússia. Happymon Jacob, professor de estudos sobre desarmamento da Universidade Jawaharlal Nehru, afirma que os indianos pensam na relação da Rússia em “termos passados” e na relação com os EUA em “termos futuros”.

Autoridades de defesa graduadas dos EUA afirmam que a Índia começou a reduzir sua dependência em relação à Rússia antes da guerra na Ucrânia, notando que a Lockheed Martin já está produzindo asas de F-16 e caudas de C-130J em fábricas indianas. “Ainda existe uma realidade com a qual eles têm de lidar em relação à Rússia? Sim. Mas as tendências rumam para o sentido correto”, afirmou uma autoridade, falando sob condição de anonimato para não violar regras básicas estabelecidas pelo Pentágono. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE WASHINGTON POST, NOVA DÉLHI — Um dos armamentos mais proeminentes da Índia é um míssil supersônico que pode ser lançado de mar, terra e ar. Seu nome, BrahMos, vem de uma combinação entre os Rios Brahmaputra, indiano, e Moscou, russo, pois Índia e Rússia começaram a desenvolver o míssil conjuntamente após a queda da União Soviética. Autoridades de defesa indianas o chamam de “Brahmastra” — uma arma da mitologia hindu capaz de destruir o universo inteiro.

A Índia considera o BrahMos parte essencial de uma capacidade militar com força para sobreviver a um ataque nuclear e o acionou em sua tensa fronteira com a China. O míssil foi fornecido às Filipinas, e possíveis vendas ao Vietnã e à Indonésia estão em andamento.

Conforme o presidente Joe Biden recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na Casa Branca, esta semana, o míssil BrahMos ilustra como a antiga dependência da Índia em relação a equipamento e tecnologia militar da Rússia restringe a capacidade de Nova Délhi alinhar-se com o Ocidente para confrontar os russos por sua guerra na Ucrânia. Para a decepção de Washington, a Índia não condenou a invasão.

O míssil supersônico indiano BrahMos é exibido em uma parada militar em Nova Dle´lhi, na Índia: parceria próxima com a Rússia  Foto: Kamal Kishore/Reuters

Relação armamentista

A relação armamentista é um “impulsionador crucial” da relutância indiana em expressar oposição à invasão russa à Ucrânia, afirmou Richard Rossow, chefe de pesquisas em políticas EUA-Índia no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

O comércio militar robusto entre os países remonta aos anos 60, e equipamentos russos atualmente constituem cerca de 85% do arsenal indiano, de acordo com uma equipe liderada por Sameer Lalwani, especialista sênior do Instituto dos Estados Unidos para a Paz. A Rússia forneceu caças de combate, submarinos nucleares, mísseis de cruzeiro, tanques, fuzis Kalashnikov e muito mais. Parte disso, como as aeronaves de combate, pode permanecer no arsenal indiano até 2065. A Índia continuará dependente de Moscou para obter peças de reposição e fazer manutenção dos equipamentos nas próximas décadas.

Outras formas de influência russa — incluindo apoio à Índia nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais e, desde do início da guerra na Ucrânia, vendas de petróleo com desconto — mantiveram a Índia próxima da Rússia. Mas especialistas como Lalwani afirmam que a dependência militar é o laço “mais forte” e “mais durável” entre os dois países.

“O número de países realmente importantes para os EUA que têm bastante equipamento russo é pequeno, e a Índia está no topo dessa lista”, afirmou Chris Clary, ex-diretor para assuntos sul-asiáticos no gabinete do secretário da Defesa dos EUA, que atualmente leciona na Universidade do Estado de Nova York, em Albany. “O quadro maior é que não se acaba com uma relação de seis décadas rapidamente. Não será fácil nem mesmo para uma liderança nacional determinada superar isso, e para mim não está totalmente claro que a atual incumbência em Nova Délhi seja determinada.”

Durante a visita de Modi a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar indiana com discussões em andamento a respeito de acordos para a venda de 31 drones armados e fabricação conjunta de motores de caças de combate envolvendo a General Electric e uma nova iniciativa para aprofundar cooperação em pesquisa militar.

Maior importador de armas do planeta

Os EUA buscaram expandir seu papel na década recente conforme as importações indianas da Rússia diminuíram gradualmente. A Índia, país que mais importa armas no planeta, obteve 45% de seu equipamento militar da Rússia entre 2018 e 2022, uma queda significativa em relação aos dois terços do quinquênio anterior, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Os fornecimentos dos americanos ainda representam apenas 1% do equipamento militar do Exército da Índia e cerca de 4% de sua Marinha e Força Aérea, afirmou Lalwani. Entre 2018 e 2022, de acordo com o SIPRI, o valor estimado dos armamentos russos vendidos para a Índia foi quatro vezes maior que o das compras indianas de armas americanas.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala durante uma visita à National Science Foundation com a primeira-dama dos EUA, Jill Biden (não retratada), em Alexandria, Virgínia, EUA, em 21 de junho de 2023. Foto: Evelyn Hockstein / REUTERS

As autoridades dos EUA podem não estar felizes a respeito da predominância russa no arsenal militar indiano. Mas reconhecem ser importante que essas armas permaneçam eficazes dada a continuidade das tensões entre Índia e China, que representa a maior preocupação na Ásia, afirmou Rossow.

Compartilhamento de tecnologia

Analistas de defesa na Índia concordam que a tecnologia russa está ficando obsoleta em relação a outros fornecedores, o que torna os contratos com os EUA mais desejáveis. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia causou atrasos no fornecimento de peças de reposição da Rússia, assim como problemas para os pagamentos. O professor de política internacional Rajesh Rajagopalan, da Universidade Jawaharlal, em Nova Délhi, disse suspeitar que os líderes indianos agora estão se “arrependendo de sua dependência excessiva” em relação à Rússia.

O domínio russo do mercado indiano tem raízes profundas. “A Rússia esteve historicamente disposta a fornecer tecnologias para a Índia que, sinceramente, os EUA evitaram compartilhar”, afirmou Lisa Curtis, diretora de segurança no Indo-Pacífico do Centro para uma Nova Segurança Americana, que anteriormente foi diretora de políticas para o sul da Ásia no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Quando a União Soviética fez sua primeira grande venda de caças de combate MiG-21 para a Índia, nos anos 60, Moscou ofereceu atrativos que Washington não equiparou, incluindo permitir aos indianos pagar em rúpias e produzir as aeronaves domesticamente. Nas décadas que se seguiram, os russos mantiveram monopólio quase completo sobre o mercado militar da Índia, cobrando preços menores que os competidores e oferecendo algumas transferências de tecnologia. Os russos começaram a ampliar abertamente o compartilhamento de tecnologia nuclear nos anos 80, vendendo para a Índia um submarino atômico e apoiando a produção de energia nuclear no país.

Muitas autoridades militares e estrategistas indianos, especialmente os que amadureceram durante a Guerra Fria, ficaram marcados pela decisão dos EUA, de 1971, de se alinhar com o Paquistão em sua guerra com a Índia. “Três décadas de relação Índia-EUA se perderam porque os americanos sentiram que nós éramos pró-soviéticos”, afirmou o ex-embaixador indiano na Rússia D.B. Venkatesh Verma. “Nós nos voltamos para os soviéticos porque nada nos foi oferecido.”

Soldados indianos desembarcam de um avião de transporte militar em uma base aérea avançada em Leh, na região de Ladakh, em 15 de setembro de 2020. Foto: DANISH SIDDIQUI / REUTERS

Após o colapso da União Soviética, quando a Índia esteve ávida para construir novas relações comerciais, os EUA continuaram relutantes em fornecer equipamentos militares aos indianos em razão de suas ambições de desenvolver capacidade nuclear militar, afirmou Verma.

O pacto nuclear alcançado em 2008, que estabeleceu coordenação entre Índia e EUA em relação a capacidades atômicas, marcou uma grande inflexão nas relações entre Nova Délhi e Washington.

“O sentimento em relação aos EUA se tornou muito mais caloroso ao longo dos 15 anos recentes, mas ainda não alcançou o nível de empatia estratégica que a Índia compartilhou com União Soviética e Rússia”, afirmou Rajagopalan.

Após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia, em 2014, e a interferência russa nas eleições americanas, em 2016, os EUA têm se oposto cada vez mais a que países comprem equipamentos da Rússia, adotando sanções, em 2017, que restringiram o compartilhamento de tecnologias americanas com nações que adquiriram determinados equipamentos russos. Apesar do risco de sanções, a Índia fechou um acordo para comprar mísseis de longo alcance dos russos conhecidos como S-400, que provavelmente durarão outras duas décadas.

A relação Índia-Rússia “lança uma sombra bastante longa sobre o futuro”, afirmou Verma. “Espera-se que haja entendimento dos EUA de que esta é uma transição que deve-se permitir à Índia fazer em seu próprio ritmo, porque a Índia é grande demais e sua relação com a Rússia é profunda demais para reviravoltas”.

Alguns especialistas na Índia já percebem o país se afastando da Rússia. Happymon Jacob, professor de estudos sobre desarmamento da Universidade Jawaharlal Nehru, afirma que os indianos pensam na relação da Rússia em “termos passados” e na relação com os EUA em “termos futuros”.

Autoridades de defesa graduadas dos EUA afirmam que a Índia começou a reduzir sua dependência em relação à Rússia antes da guerra na Ucrânia, notando que a Lockheed Martin já está produzindo asas de F-16 e caudas de C-130J em fábricas indianas. “Ainda existe uma realidade com a qual eles têm de lidar em relação à Rússia? Sim. Mas as tendências rumam para o sentido correto”, afirmou uma autoridade, falando sob condição de anonimato para não violar regras básicas estabelecidas pelo Pentágono. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE WASHINGTON POST, NOVA DÉLHI — Um dos armamentos mais proeminentes da Índia é um míssil supersônico que pode ser lançado de mar, terra e ar. Seu nome, BrahMos, vem de uma combinação entre os Rios Brahmaputra, indiano, e Moscou, russo, pois Índia e Rússia começaram a desenvolver o míssil conjuntamente após a queda da União Soviética. Autoridades de defesa indianas o chamam de “Brahmastra” — uma arma da mitologia hindu capaz de destruir o universo inteiro.

A Índia considera o BrahMos parte essencial de uma capacidade militar com força para sobreviver a um ataque nuclear e o acionou em sua tensa fronteira com a China. O míssil foi fornecido às Filipinas, e possíveis vendas ao Vietnã e à Indonésia estão em andamento.

Conforme o presidente Joe Biden recebe o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, na Casa Branca, esta semana, o míssil BrahMos ilustra como a antiga dependência da Índia em relação a equipamento e tecnologia militar da Rússia restringe a capacidade de Nova Délhi alinhar-se com o Ocidente para confrontar os russos por sua guerra na Ucrânia. Para a decepção de Washington, a Índia não condenou a invasão.

O míssil supersônico indiano BrahMos é exibido em uma parada militar em Nova Dle´lhi, na Índia: parceria próxima com a Rússia  Foto: Kamal Kishore/Reuters

Relação armamentista

A relação armamentista é um “impulsionador crucial” da relutância indiana em expressar oposição à invasão russa à Ucrânia, afirmou Richard Rossow, chefe de pesquisas em políticas EUA-Índia no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.

O comércio militar robusto entre os países remonta aos anos 60, e equipamentos russos atualmente constituem cerca de 85% do arsenal indiano, de acordo com uma equipe liderada por Sameer Lalwani, especialista sênior do Instituto dos Estados Unidos para a Paz. A Rússia forneceu caças de combate, submarinos nucleares, mísseis de cruzeiro, tanques, fuzis Kalashnikov e muito mais. Parte disso, como as aeronaves de combate, pode permanecer no arsenal indiano até 2065. A Índia continuará dependente de Moscou para obter peças de reposição e fazer manutenção dos equipamentos nas próximas décadas.

Outras formas de influência russa — incluindo apoio à Índia nas Nações Unidas e em outros fóruns internacionais e, desde do início da guerra na Ucrânia, vendas de petróleo com desconto — mantiveram a Índia próxima da Rússia. Mas especialistas como Lalwani afirmam que a dependência militar é o laço “mais forte” e “mais durável” entre os dois países.

“O número de países realmente importantes para os EUA que têm bastante equipamento russo é pequeno, e a Índia está no topo dessa lista”, afirmou Chris Clary, ex-diretor para assuntos sul-asiáticos no gabinete do secretário da Defesa dos EUA, que atualmente leciona na Universidade do Estado de Nova York, em Albany. “O quadro maior é que não se acaba com uma relação de seis décadas rapidamente. Não será fácil nem mesmo para uma liderança nacional determinada superar isso, e para mim não está totalmente claro que a atual incumbência em Nova Délhi seja determinada.”

Durante a visita de Modi a Washington, nesta semana, as autoridades americanas buscarão cortar o domínio russo sobre a demanda militar indiana com discussões em andamento a respeito de acordos para a venda de 31 drones armados e fabricação conjunta de motores de caças de combate envolvendo a General Electric e uma nova iniciativa para aprofundar cooperação em pesquisa militar.

Maior importador de armas do planeta

Os EUA buscaram expandir seu papel na década recente conforme as importações indianas da Rússia diminuíram gradualmente. A Índia, país que mais importa armas no planeta, obteve 45% de seu equipamento militar da Rússia entre 2018 e 2022, uma queda significativa em relação aos dois terços do quinquênio anterior, de acordo com o Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo (SIPRI).

Os fornecimentos dos americanos ainda representam apenas 1% do equipamento militar do Exército da Índia e cerca de 4% de sua Marinha e Força Aérea, afirmou Lalwani. Entre 2018 e 2022, de acordo com o SIPRI, o valor estimado dos armamentos russos vendidos para a Índia foi quatro vezes maior que o das compras indianas de armas americanas.

O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, fala durante uma visita à National Science Foundation com a primeira-dama dos EUA, Jill Biden (não retratada), em Alexandria, Virgínia, EUA, em 21 de junho de 2023. Foto: Evelyn Hockstein / REUTERS

As autoridades dos EUA podem não estar felizes a respeito da predominância russa no arsenal militar indiano. Mas reconhecem ser importante que essas armas permaneçam eficazes dada a continuidade das tensões entre Índia e China, que representa a maior preocupação na Ásia, afirmou Rossow.

Compartilhamento de tecnologia

Analistas de defesa na Índia concordam que a tecnologia russa está ficando obsoleta em relação a outros fornecedores, o que torna os contratos com os EUA mais desejáveis. Ao mesmo tempo, a guerra na Ucrânia causou atrasos no fornecimento de peças de reposição da Rússia, assim como problemas para os pagamentos. O professor de política internacional Rajesh Rajagopalan, da Universidade Jawaharlal, em Nova Délhi, disse suspeitar que os líderes indianos agora estão se “arrependendo de sua dependência excessiva” em relação à Rússia.

O domínio russo do mercado indiano tem raízes profundas. “A Rússia esteve historicamente disposta a fornecer tecnologias para a Índia que, sinceramente, os EUA evitaram compartilhar”, afirmou Lisa Curtis, diretora de segurança no Indo-Pacífico do Centro para uma Nova Segurança Americana, que anteriormente foi diretora de políticas para o sul da Ásia no Conselho de Segurança Nacional dos EUA.

Quando a União Soviética fez sua primeira grande venda de caças de combate MiG-21 para a Índia, nos anos 60, Moscou ofereceu atrativos que Washington não equiparou, incluindo permitir aos indianos pagar em rúpias e produzir as aeronaves domesticamente. Nas décadas que se seguiram, os russos mantiveram monopólio quase completo sobre o mercado militar da Índia, cobrando preços menores que os competidores e oferecendo algumas transferências de tecnologia. Os russos começaram a ampliar abertamente o compartilhamento de tecnologia nuclear nos anos 80, vendendo para a Índia um submarino atômico e apoiando a produção de energia nuclear no país.

Muitas autoridades militares e estrategistas indianos, especialmente os que amadureceram durante a Guerra Fria, ficaram marcados pela decisão dos EUA, de 1971, de se alinhar com o Paquistão em sua guerra com a Índia. “Três décadas de relação Índia-EUA se perderam porque os americanos sentiram que nós éramos pró-soviéticos”, afirmou o ex-embaixador indiano na Rússia D.B. Venkatesh Verma. “Nós nos voltamos para os soviéticos porque nada nos foi oferecido.”

Soldados indianos desembarcam de um avião de transporte militar em uma base aérea avançada em Leh, na região de Ladakh, em 15 de setembro de 2020. Foto: DANISH SIDDIQUI / REUTERS

Após o colapso da União Soviética, quando a Índia esteve ávida para construir novas relações comerciais, os EUA continuaram relutantes em fornecer equipamentos militares aos indianos em razão de suas ambições de desenvolver capacidade nuclear militar, afirmou Verma.

O pacto nuclear alcançado em 2008, que estabeleceu coordenação entre Índia e EUA em relação a capacidades atômicas, marcou uma grande inflexão nas relações entre Nova Délhi e Washington.

“O sentimento em relação aos EUA se tornou muito mais caloroso ao longo dos 15 anos recentes, mas ainda não alcançou o nível de empatia estratégica que a Índia compartilhou com União Soviética e Rússia”, afirmou Rajagopalan.

Após a anexação russa da península ucraniana da Crimeia, em 2014, e a interferência russa nas eleições americanas, em 2016, os EUA têm se oposto cada vez mais a que países comprem equipamentos da Rússia, adotando sanções, em 2017, que restringiram o compartilhamento de tecnologias americanas com nações que adquiriram determinados equipamentos russos. Apesar do risco de sanções, a Índia fechou um acordo para comprar mísseis de longo alcance dos russos conhecidos como S-400, que provavelmente durarão outras duas décadas.

A relação Índia-Rússia “lança uma sombra bastante longa sobre o futuro”, afirmou Verma. “Espera-se que haja entendimento dos EUA de que esta é uma transição que deve-se permitir à Índia fazer em seu próprio ritmo, porque a Índia é grande demais e sua relação com a Rússia é profunda demais para reviravoltas”.

Alguns especialistas na Índia já percebem o país se afastando da Rússia. Happymon Jacob, professor de estudos sobre desarmamento da Universidade Jawaharlal Nehru, afirma que os indianos pensam na relação da Rússia em “termos passados” e na relação com os EUA em “termos futuros”.

Autoridades de defesa graduadas dos EUA afirmam que a Índia começou a reduzir sua dependência em relação à Rússia antes da guerra na Ucrânia, notando que a Lockheed Martin já está produzindo asas de F-16 e caudas de C-130J em fábricas indianas. “Ainda existe uma realidade com a qual eles têm de lidar em relação à Rússia? Sim. Mas as tendências rumam para o sentido correto”, afirmou uma autoridade, falando sob condição de anonimato para não violar regras básicas estabelecidas pelo Pentágono. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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