A intensidade dos protestos que se espalharam pelo Irã no mês passado, pedindo a derrubada da República Islâmica, abalou o Estado. Mas os governantes clérigos e autoritários que controlam o país têm se preparado, de uma maneira ou de outra, para este momento desde a Revolução Islâmica, de 1979, que ungiu ao poder a teocracia conservadora que se mantém firme até hoje.
O fundador da revolução, aiatolá Ruhollah Khomeini, ordenou a criação da Guarda Revolucionária naquele mesmo ano, para se defender de golpes de Estado ou deserções no Exército regular.
Hoje com centenas de milhares de integrantes, a Guarda Revolucionária é a força militar mais poderosa do Irã, assim como um dos principais jogadores na economia iraniana. Muitos analistas afirmam que o Irã deixou de ser uma teocracia controlada por clérigos xiitas e se transformou em um Estado militar controlado pela Guarda.
Juntamente com as forças policiais, uma milícia que trabalha à paisana conhecida como Basij — de paramilitares sob o guarda-chuva da Guarda Revolucionária — tem atuado nas linhas de frente há semanas usando táticas brutais para tentar esmagar os protestos, como fez em revoltas anteriores.
Mas seu esforço fracassou, e na semana passada uma outra estirpe de defensores começou a dar as caras nas ruas de Teerã, a capital, e outras cidades — homens brutos, trajando uniformes estampados com camuflagem caqui, que testemunhas identificaram como membros de uma unidade de elite da Guarda Revolucionária conhecida como Saberin.
Além da atuação da milícia Basij, a Guarda Revolucionária intervém em policiamento doméstico apenas em episódios de crises extremas. E o regime de fato apelou para seus soldados mais leais para retomar o controle das ruas.
O destino do atual movimento de protestos — o maior desafio ao sistema de governo do Irã desde 2009 — depende muito da coesão e da lealdade da Guarda Revolucionária e do restante das multifacetadas forças de segurança do país. Essas corporações têm atuado como um impedimento descomunal para a derrubada do clérigos linha-dura que controlam o país.
Para Entender
A Guarda Revolucionária é uma força à parte e paralela ao Exército nacional — encarregada de proteger as fronteiras do Irã, o líder-supremo e outras graduadas autoridades. Analistas afirmam que seus membros se inseriram tão profundamente na economia e na estrutura do poder no Irã que têm tudo a perder se o sistema colapsar.
“Enquanto organização, eles realmente não se importam com apoio popular ou turbulências ocasionais”, afirmou sobre a Guarda Revolucionária Afshon Ostovar, professor-associado de história do Oriente Médio e assuntos de segurança nacional da Escola de Pós-Graduação Naval. “Eles só se importam em preservar o sistema, não em preservar o Irã.”
As forças armadas do Irã consistem de camadas paralelas que incluem o Exército, as forças de segurança encarregadas do policiamento doméstico e a Guarda Revolucionária — com sua milícia Basij à paisana.
Até agora, quase não houve relatos de deserções entre as forças de segurança. Mas têm emergido sinais de que alguns dos agentes que enfrentam manifestantes estão cansados em razão das semanas nas ruas e da insatisfação com o nível de violência, especialmente contra mulheres jovens, de acordo com uma fonte familiarizada com discussões de segurança.
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Para evitar deserções, comandantes militares e policiais têm afirmado para suas fileiras que, se o sistema colapsar, a oposição os executará, de acordo com essa fonte, que falou sob condição de anonimato porque não está autorizada a falar publicamente.
Mas mesmo que algumas autoridades e oficiais desertem, a Guarda Revolucionária e a força paramilitar Basij provavelmente manterão a luta para preservar o sistema de governo. Neste mês, milicianos Basij abriram fogo contra estudantes e espancaram professores durante uma operação de repressão na Universidade Sharif de Tecnologia, uma prestigiosa instituição de Teerã, de acordo com testemunhas e registros em vídeo. A milícia também foi acionada na notória penitenciária de Evin, na capital iraniana, no sábado, quando um enorme incêndio irrompeu durante confrontos em uma das alas. Centenas de dissidentes e presos políticos cumprem pena no local. O governo iraniano afirmou na segunda-feira que oito pessoas morreram no incêndio.
A Guarda Revolucionária conta com um arsenal formidável, que inclui mísseis balísticos e sistemas de drones. Seus mais graduados comandantes acumulam posições políticas, incluindo a presidência do Parlamento, ocupada por Mohammad Baqer Ghalibaf. Seu temido braço de inteligência prende e intimida dissidentes e ativistas políticos de oposição. Seu braço no exterior, a Força Quds, recrutou, treinou e armou uma rede de milícias — incluindo no Líbano, na Síria e no Iêmen — que poderiam acudir em seu favor.
Guardas revolucionários são donos de fábricas, corporações e empresas subsidiárias nos setores bancário, de infraestrutura, habitação, turismo e linhas aéreas, entre outros. Eles ajudam o Irã a contornar as sanções por meio de uma rede de operações de contrabando. Eles não respondem ao governo nem quando negócios ilícitos são revelados publicamente. Apesar do líder-supremo do Irã, aiatolá Ali Khamenei, ser o comandante-chefe de todas as forças armadas do país, a Guarda Revolucionária opera em grande parte como uma força militar regular, com hierarquia de comando própria.
“Não há nenhuma supervisão a respeito as origens de seu dinheiro ou sobre onde eles gastam, e estamos falando de uma grande porção do Estado iraniano”, afirmou Roham Alvandi, professor-associado de história internacional da London School of Economics.
O poder e a riqueza dos guardas revolucionários dependem da sobrevivência do sistema, e por isso eles consideram os protestos tão ameaçadores. “No topo, essas pessoas têm muito a perder se a situação ficar violenta e isso se voltar contra eles”, Alvandi.
Os protestos do mês passado foram provocados pela morte de Mahsa Amini, de 22 anos, que morreu sob custódia da polícia da moralidade. Policiais a prenderam por considerarem que ela não estava cobrindo o cabelo de maneira apropriada. Sua família disse que ela morreu em razão de golpes que sofreu na cabeça, mas o governo iraniano afirmou que ela teve um ataque cardíaco súbito enquanto estava detida.
Grupos de defesa de direitos estimam que pelo menos 240 pessoas foram mortas durante o mês de protestos, incluindo 28 crianças. Autoridades iranianas afirmaram que 24 membros de forças de segurança também foram mortos.
As manifestações que varreram o Irã foram lideradas por mulheres, que queimavam os véus que são obrigadas por lei a usar e entoavam: “Morte ao ditador” e “Mulheres, vida, liberdade”. Elas expressaram seu ultraje contra as décadas de opressão praticada pelos líderes iranianos, contra o mau governo e a corrupção — e exigiram mais liberdades sociais, melhores perspectivas econômicas e a derrubada total do sistema de governo. Mas até agora os líderes não cederam nem um milímetro.
O líder-supremo, que detém a palavra final a respeito de todos os assuntos de Estado, disse para as autoridades ignorarem os protestos e buscarem uma normalização em políticas tanto domésticas quanto exteriores. Em um discurso, na sexta-feira, o aiatolá Khamenei repetiu que a Revolução Islâmica fez nascer um Estado inabalável.
“Essa semente hoje se tornou uma árvore poderosa, e ninguém deveria ousar pensar que é capaz de arrancá-la”, afirmou ele.
Não obstante, o acionamento da Guarda Revolucionária para pôr fim aos protestos foi visto como uma indicação de que a ventania pode estar fazendo a árvore se curvar.
“A composição das forças nas ruas mudou visivelmente”, afirmou Javad Mogouei, documentarista próximo à Guarda Revolucionária, sexta-feira, no Instagram. Ele afirmou que a corporação acionou comandos da unidade de elite Saberin.
Mogouei, cujo pai e irmão são membros graduados da guarda, criticou a violência contra manifestantes: policiais antidistúrbios disparando contra multidões; um agente de forças de segurança que arrastou uma mulher pelo cabelo e golpeou sua cabeça com um cassetete; uma atriz que saiu de um interrogatório com um hematoma no rosto.
Em muitas ocasiões, manifestantes têm reagido arremessando pedras contras as forças de segurança, incendiando seus veículos e espancando agentes, de acordo com testemunhas e vídeos postados em redes sociais.
Mogouei afirmou que, em 2 de outubro, em Teerã, milicianos à paisana dispararam balas de borracha contra ele e golpearam com tanta força sua cabeça que ele desmaiou, porque tentou proteger uma jovem manifestante. Até aqui, manifestantes têm encontrado maneiras de confundir os serviços de segurança.
Os protestos reúnem pequenas multidões, em manifestações esparsas, mas ocorrem por toda o país, o que dificulta para as autoridades montar uma reposta grande e definitiva. Isso tem mantido o movimento vivo, mas ele poderá ter dificuldades em perseverar se não desenvolver uma liderança clara e objetivos claros e unificados, afirmou Sanam Vakil, vice-diretora do programa para Oriente Médio e Norte da África do instituto Chatham House.
A história recente do Oriente Médio fornece vários exemplos de movimentos populares parecidos que acabaram esmagados por Estados repressores. Insurreições pró-democracia bem-sucedidas na Tunísia e no Egito foram subvertidas por presidentes autoritários, o Iêmen descambou para uma guerra civil, e a Síria deu exemplo da enormidade da carnificina de que um regime é capaz de infligir sobre seu próprio povo para garantir sua sobrevivência no poder.
As forças de segurança do Irã também poderão apelar para um uso de força muito maior se sentirem que sua existência está ameaçada. Mas essas perspectiva inquieta alguns membros do regime.
“Estamos dizendo para autoridades em reuniões que, se vocês não mudarem o curso e se derem conta de que a legitimidade do sistema está em jogo, a única maneira para a República Islâmica se manter no poder será matando várias centenas de pessoas a cada poucos meses”, afirmou ao The New York Times o analista Gheis Ghoreishi, que aconselhou o governo.
“Está ficando muito difícil, até impossível, defender as políticas domésticas”, acrescentou ele.
Na última grande onda de protestos que varreu o Irã, em novembro de 2019, as forças de segurança mataram mais de 400 pessoas, de acordo com grupos de defesa de direitos, segundo os quais o número verdadeiro de mortos provavelmente foi muito mais elevado. A maioria dos mortos foi baleada a curta distância, na cabeça e no pescoço, em um período de menos de uma semana, de acordo com esses grupos.
Mas desta vez, mulheres jovens lideram os protestos, e as cenas de violência — por vezes letal — contra elas ocasionaram chamados para que as forças armadas deponham as armas e parem a matança. “Não acho que os membros das forças militares e de segurança do Irã, por mais brutais que possam ser, estejam prontos para passar a ser conhecidos como assassinos das filhas do Irã”, afirmou Ostovar, o professor de história. “Eles terão de matar muitas mulheres para extinguir este movimento — e não podem matar elas todas.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO