THE NEW YORK TIMES - Andrii Shapovalov, de 51 anos, e Tetiana Shapovalova, de 50, tiveram uma vida conjugal fantástica. Ficaram quase 30 anos casados, criaram dois filhos e percorreram carreiras significativas — ele como psicoterapeuta trabalhando com dependentes de drogas, ela como executiva em uma grande fábrica de sorvete. Até o ano passado, eles estavam entrando em um novo estágio da vida, após os filhos saírem de casa, em Dnipro, uma promissora cidade da Ucrânia central. Mas a invasão russa à Ucrânia, em fevereiro de 2022, desencadeou uma sequência de eventos à qual seu casamento não sobreviveu.
Andrii e Tetiana se separaram no primeiro dia guerra, conforme mísseis explodiam em Dnipro sacudindo as janelas. Ela iniciou uma jornada como refugiada. Ele ficou perambulando pelos cômodos vazios de seu apartamento.
Como tantos outros ucranianos e ucranianas, eles experimentariam a guerra de maneiras muito diferentes. Tetiana foi arremessada a um mundo completamente novo, descobrindo um novo país, uma nova língua e, para a comoção de Andrii, um novo namorado. Andrii acabou nas linhas de frente tratando soldados deprimidos, pela primeira vez desde sua adolescência vivendo sozinho. E efetivamente proibido pela lei de visitar sua família.
Ambos acreditam que ainda estariam juntos não fosse a guerra. Eles têm sido incomumente abertos a respeito do que aconteceu com sua relação. (Suas entrevistas foram resumidas e editadas para dar clareza ao texto.)
Andrii e Tetiana são apenas um dos dezenas de milhares, ou talvez até centenas de milhares de casais que se separaram enquanto seu país, nas palavras da psicoterapeuta ucraniana Anna Trofimenko, de Kremenchuk, é acometido por uma “epidemia de divórcio”. Esta pode ser uma das mais abrangentes consequências sociais da guerra, potencialmente moldando padrões de namoro, estruturas familiares, maneiras como as crianças ucranianas serão criadas e trajetórias futuras dos habitantes do país.
Todos os grandes conflitos ocasionam fugas de cidadãos. Mas na Ucrânia foi diferente. Uma das primeiras ações do presidente Volodmir Zelenski após a invasão foi emitir um decreto proibindo homens com idades entre 18 e 60 anos de deixar o país, com poucas exceções. O objetivo foi preservar a capacidade de combate do país. O que também criou um êxodo unilateral.
Noventa por cento dos 8 milhões de refugiados ucranianos são mulheres e crianças — e muitas mulheres, casadas ou não, não planejam voltar. Elas estão seguindo adiante, fincando novas raízes. Algumas escaparam de relacionamentos abusivos na Ucrânia, e a lei que obriga os homens a permanecer no país criou um espaço seguro para ucranianas que passaram a viver na Polônia, na Alemanha e em outros países buscarem concretizar o que já estava em sua mente havia algum tempo: o divórcio.
Mas a mesma lei também impinge muita dor em homens com filhos refugiados. Suas mulheres ou ex-mulheres podem ter deixado a Ucrânia com as crianças e, neste momento, não há maneira possível para os pais visitá-las no exterior.
Após mais de uma semana dirigindo dia e noite através de 10 países, Tetiana e o filho primogênito do casal finalmente chegaram a Turku, na Finlândia, onde já vivia seu filho mais novo, jogador semiprofissional de hóquei. Quando chegou à cidade, Tetiana se deu conta de que não queria mais voltar.
Tetiana
Andrii
O número de casamentos que acabaram na Ucrânia no ano passado foi duas ou até três vezes maior do que antes da guerra, segundo estimativas de profissionais de saúde mental, advogados especializados em divórcios, conselheiros maritais, escreventes de tribunais e juízes ucranianos. Os especialistas afirmam que o motivador principal do aumento no número de divórcios, que sempre foi alto em comparação a outros países, não é tanto o estresse relacionado à guerra, apesar disso incidir muito, mas a escala enorme da separação.
Trofimenko afirmou que quando as pessoas se desconectam de suas comunidades, começam a reavaliar suas vidas. “Elas começam a se perguntar: ‘essa pessoa com que passei tantos anos de minha vida ainda é a pessoa certa para mim, se eu nem sei mais quem eu sou?”, afirmou ela.
Tetiana relatou ter passado por uma experiência similar. Ela afirmou que seu casamento nunca lhe pareceu ruim, mas que, conforme passaram-se os anos, ela começou a sentir “um vazio”. Tetiana e Andrii tentaram de tudo para ressuscitar a relação: reformaram sua primeira casa, compraram um apartamento novo, arrumaram outro cachorro. Mas nada funcionou, afirmou ela, e a relação começou a lhe parecer “um livro que você já leu”.
A lealdade a manteve casada. Mas fugir para um novo país colocou as coisas em perspectiva.
Poucas semanas depois do início da vida de refugiada, Tetiana conheceu um finlandês. Ela disse que foi muito difícil conversar sobre isso com Andrii. Tetiana telefonou para ele e disse: “Não quero que nosso relacionamento continue. Eu quero um lugar novo, uma nova relação, tudo novo. Quero uma vida nova.”
Andrii
Tetiana
Na Ucrânia é possível divorciar-se a milhares de quilômetros de distância do país. As pessoas enviam certidões de casamento, de nascimento, cópias do passaporte e comprovantes tributários. Por seus filhos serem adultos, Andrii e Tetiana não tiveram nenhuma disputa de custódia. E não discordaram em relação à divisão dos bens que compartilhavam após concordarem em se divorciar.
Mas para muitos casais ucranianos, a questão da custódia dos filhos é complicada neste momento. Quando um país não está em guerra, costuma ser difícil para uma mulher viajar para o exterior com um filho sem o consentimento do pai. Mas a Ucrânia está em guerra.
O que os juízes fazem se uma mulher deixou o país com um filho, o casal se divorcia e o homem está preso na Ucrânia mas quer ver a criança?
“Eu não posso ordenar que a mulher volte com a criança” sob ataques diários de mísseis, explicou a juíza Ivanna Yerosova, de Kiev. A magistrada afirmou que não tem poder para prover autorização para homens atravessarem a fronteira ucraniana para visitar filhos no exterior.
Portanto isso a deixa — e ainda mais, os casais cujos casos ela julga — em um ponto distante do ideal neste momento. Juízes podem ordenar mães a permitir que seus filhos comuniquem-se com os pais por videochamada. Quando a guerra acabar, afirmou Yerosova, ela prevê novas leis de divórcio que definam o direito do pai de ver a criança onde quer que ela esteja.
Para Andrii, tem sido doloroso não ver os filhos.
Andrii
Tetiana
De acordo com o Ministério da Justiça da Ucrânia, o número de divórcios caiu para 17.893 em 2022, de 29.587 em 2021. Mas especialistas afirmam que os dados não retratam a realidade. A guerra tem atrapalhado todos os aspectos do sistema Judiciário ucraniano, e juízes, psicólogos e advogados especializados em divórcio afirmam que o número de casais separados em processo de divorciar-se cresce acentuadamente.
As consequências de tantas separações em um país tendem a ser profundas. Demógrafos ucranianos já começam a simular, juntamente com os fluxos de refugiados e baixas da guerra, seus efeitos.
“Nós projetamos que a população continuará a cair”, afirmou o demógrafo Oleksandr Hladun, da Academia Nacional de Ciências da Ucrânia. A Ucrânia tem perdido população constantemente desde os anos 90 — em 1991, o país tinha 52 milhões de habitantes, hoje tem 38 milhões. Especialistas projetam que, nos próximos 15 anos, a população ucraniana terá caído para 30 milhões.
Andrii e Tetiana concluíram seu divórcio em dezembro. Eles não se veem desde o primeiro dia da guerra. Tetiana estuda língua finlandesa e se prepara para virar cidadã da Finlândia. Andrii mora sozinho — e passa a maior parte do tempo trabalhando com soldados acometidos por dependência de drogas e alcoolismo, problemas que ele afirmou ter piorado desde o início da guerra na Ucrânia.
Outro dia, Andrii passeava com o último cachorro do casal, Tori, um shar-pei extremamente leal, num parque de Dnipro. Olhando para o cãozinho, que lhe encarava constantemente, ele arriscou uma piada: “Você é tudo o que sobrou da minha família”.
O que Andrii e Tetiana acham que teria acontecido se seu país não tivesse sido invadido?
Tetiana
Andrii
/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL