Em um campo de teste aberto na Ucrânia rural, um drone carregado com uma bomba perdeu conexão com seu operador humano depois de ser atacado por mecanismos de interferência eletrônica; mas em vez de se espatifar no chão, o drone acelerou na direção de seu alvo e o destruiu.
O drone evitou o destino de milhares de outros veículos aéreos não tripulados (vants) nesta guerra graças a um novo software de inteligência artificial que responde às interferências eletrônicas comumente acionadas pela Rússia hoje estabilizando o drone e mirando-o para um alvo pré-selecionado. Capacidades de IA ajudam o drone a completar sua missão mesmo se o alvo se movimentar, o que representa uma melhoria significativa em relação a drones anteriores que perseguem coordenadas específicas.
Essa tecnologia de inteligência artificial, desenvolvidas por um número crescente de fabricantes de drones, é um dos vários saltos de inovação que transcorrem no mercado doméstico de vants de Kiev, acelerando e intensificando a letalidade das táticas de guerra automatizadas — especialmente cruciais para o Exército ucraniano, que, inferior em armas, combate um inimigo russo maior e mais bem equipado.
As melhorias em velocidade, alcance de voo, capacidade de carga e outros atributos estão surtindo efeito imediato no campo de batalha, permitindo à Ucrânia destruir veículos russos, postos de vigilância e até partes da Ponte da Crimeia, tão prezada pelo presidente russo, Vladimir Putin, em uma operação que envolveu drones navais carregados com explosivos, na semana passada.
As inovações de design e software, assim como a disseminação massiva de treinos de pilotagem, deverão influenciar também a maneira que drones são usados fora da guerra na Ucrânia, com sérias implicações para governos que confrontam milícias separatistas, cartéis de narcotráfico e grupos extremistas em busca de vantagem tecnológica.
“Com dezenas de milhares de pessoas passando por treinos de pilotagem de drone nos dois lados desta guerra, é muito provável que essa experiência esteja se disseminando amplamente, incluindo entre atores nefastos”, afirmou referindo-se à Rússia o especialista em drones Samuel Bendett, do instituto de análise CNA, de Washington.
Saiba mais
A Ucrânia, conhecida pela agricultura industrial e outras indústrias pesadas, não seria um cenário óbvio para a inovação em drones. As contingências da guerra, contudo, transformaram o país em um tipo de superlaboratório de invenções, atraindo investimentos de celebrados figurões do mundo empresarial, incluindo o ex-diretor-executivo do Google Eric Schmidt. Mais de 200 empresas ucranianas envolvidas na produção de drones estão hoje trabalhando proximamente com unidades militares na linha de frente para desenvolver e calibrar drones com mais capacidade de matar e espionar o inimigo.
“É uma corrida tecnológica ininterrupta”, afirmou o vice-primeiro-ministro ucraniano, Mikhailo Fedorov, durante entrevista concedida em seu gabinete em Kiev, a capital. “A dificuldade é que todos os produtos em todas as categorias têm de ser modificados diariamente para render vantagem.”
Programa
Fedorov, de 32 anos, é responsável pelo programa ucraniano “Exército de Drones”, um esforço para maximizar o uso de drones de reconhecimento por Kiev e ataques para compensar a grande vantagem da Rússia em poder aéreo e artilharia.
O programa ajudou empresas privadas a treinar mais de 10 mil pilotos de drones no ano passado e pretende treinar outros 10 mil ao longo dos próximos seis meses.
Estima-se que a Força Aérea russa seja 10 vezes maior que a ucraniana, mas Kiev manteve grande parte de suas aeronaves no chão depois de derrubar vários caças de combate nos primeiros dias do conflito. Drones têm permitido à Ucrânia vigiar e atacar alvos sensíveis muito atrás das linhas inimigas, além de melhorar precisão de seus sistemas convencionais de artilharia.
Drones, contudo, têm muito menos poder de fogo que caças de combate, por isso Kiev tem pedido jatos F-16 e outros itens caros, como os sistemas de mísseis de longo alcance ATACMS (acrônimo em inglês de Sistemas de Mísseis Táticos do Exército). Nesse meio-tempo, cultivar uma indústria doméstica de drones tem sido uma das prioridades ucranianas.
A equipe de Fedorov agiliza contratos de fornecimento de drones entre as empresas e o Ministério da Defesa, diminuindo a duração do processo “de dois anos para dois meses”, afirmou Dmitro Kovalchuk, cofundador da fabricante de drones Warbirds of Ukraine, sediada em Kiev, que se beneficiou da agilização no processo.
Informações
O Ministério da Defesa da Ucrânia, enquanto isso, tem compartilhado as tecnologias de embaralhamento de sinal russas com as fabricantes de drones, permitindo-lhes desenvolver seus produtos evitando alguns dos armamentos mais sofisticados de guerra eletrônica no mundo — um privilégio com o qual a vasta maioria das fabricantes internacionais de drones não conta.
“No Ocidente, você não pode acionar um dispositivo de embaralhamento e interferir em grandes áreas do espectro apenas para testar seu produto”, afirmou Andrei Liscovich, ex-executivo do Uber que deixou o Vale do Silício para colaborar com o esforço de guerra de Kiev. “Nós precisamos de uma licença especial e, mesmo quando a conseguimos, ela só se aplica a uma área bastante restrita.”
“Por isso esta é uma das áreas que a Ucrânia tem oportunidade bastante real de desenvolver soluções de nível mundial”, afirmou Liscovich.
Fabricantes de drones também estão recebendo informações das linhas de frente constantemente, o que lhes permite fazer ajustes imediatos para reduzir vulnerabilidades e incrementar letalidade. “Soluções para o cliente final estão entre os problemas mais desafiadores e importantes”, afirmou Liscovich.
Rússia
A Rússia, que demorou para perceber a importância dos drones de ataque no conflito, reagiu recentemente construindo sua própria frota de drones e introduzindo armas de interferência eletrônica no campo de batalha. Seu uso de drones kamikaze, incluindo os modelos ZALA Lancet e Shahed, de fabricação iraniana, tem ameaçado cidades ucranianas e dificultado a arrastada contraofensiva ucraniana.
A Ucrânia estima que a Rússia está destruindo cerca de mil drones ucranianos mensalmente, afirmou Fedorov. Outras estimativas colocam a taxa de perda em 10 mil drones ao mês, pressionando Kiev a encontrar maneiras de aumentar a produção vants no que tem se transformado rapidamente na maior guerra de drones da história.
Os tipos de drones em desenvolvimento na Ucrânia são variados.
Em um campo idílico de girassóis altos, nas proximidades de Kiev, funcionários da fabricante de vants UA Dynamics testavam o Punisher, um drone de ataque silencioso e de carenagem delgada, difícil de distinguir no céu. Durante o exercício, o drone soltou uma bomba falsa de 2,27 quilos a poucos metros de avaliadores do teste que não tinham sido avisados a respeito do momento exato do ataque e foram pegos de surpresa em razão do motor quase totalmente silencioso da aeronave. A empresa está construindo um novo drone de ataque que, segundo afirma, tem capacidade de carga quatro vezes maior, de aproximadamente 10 quilos, afirmou o porta-voz da empresa, Max Subbotin.
Na cidade de Lviv, no oeste ucraniano, engenheiros da Twist Robotics apresentaram vídeos teste de seu software de inteligência artificial, que poderia fornecer um grande aprimoramento à frota de drones Visão em Primeira Pessoa (FPV). Esses drones baratos, que a Ucrânia produz aos milhares mensalmente, são capazes de carregar bombas, mas são vulneráveis às interferências eletrônicas russas. O novo sistema de mira dotada de IA, porém, permite aos FPV permanecer com o a mixa fixada no alvo mesmo após a aeronave perder contato com o piloto em razão de interferências de sinal ou presença de um grande obstáculo físico, como uma colina, afirmou Rostislav Olenchin, cofundador da Twist Robotics.
“Depois que o alvo é definido, o drone é guiado pelo sistema”, afirmou Olenchin. Os sensores do drone reconhecem as características físicas do alvo e ajustam a trajetória da aeronave em função desse reconhecimento.
“É um Javelin de pobre”, afirmou um engenheiro da Twist Robotics, referindo-se ao sistema portátil de lançamento de mísseis de fabricação americana para ilustrar como os drones FPV são capazes de substituir armas convencionais que costumam ser recursos escassos nas forças ucranianas.
Schmidt, o ex-executivo do Google, é otimista em relação ao mercado ucraniano de drones e levantou US$ 10 milhões juntamente com outros investidores para a D3, uma aceleradora de startups ucraniana que investe em drones e outras tecnologias de defesa.
“A Ucrânia supera continuamente o inimigo em inovação”, escreveu Schmidt em um artigo publicado pelo Wall Street Journal anteriormente este mês, depois de retornar de uma viagem recente ao país.
Schmidt, que aconselhou o Pentágono a respeito de inteligência artificial, elogiou os avanços ucranianos em tecnologia de drones, incluindo sobre softwares de IA e vants que funcionam sem coordenadas de GPS. Ele expressou a convicção de que a tecnologia de drones desempenhará um papel decisivo na guerra terrestre, aérea e naval, neutralizando campos minados e formando “enxames inexoráveis de drones kamikaze dotados de inteligência artificial”.
“A guerra do futuro será ditada e travada por drones”, concluiu Schmidt.
Acredita-se que Schmidt, que se encontrou com o ministro da Defesa ucraniano em outra visita ao país, no outono passado, esteja interessado em investir milhões de dólares na Ucrânia para ampliar a fabricação de drones no país, afirmam fontes familiarizadas com o assunto. Uma porta-voz de Schmidt recusou-se a comentar o assunto.
A aceleração da tecnologia de drones tem preocupado especialistas em segurança em razão do crescente número de atores não estatais que têm usado vants com propósitos letais, incluindo o Hezbollah, no Líbano; os houthis, no Iêmen; o Estado Islâmico, no Iraque e na Síria; e cartéis de narcotráfico no México.
Mas o custo de construção de drones do tamanho de aviões, como um MQ-9 Reaper, é superior à capacidade dessas empresas, e obter e utilizar drones assistidos por softwares de IA está no seu alcance.
“Uma vez que o software é desenvolvido, não há realmente nenhum custo em replicá-lo e reutilizá-lo em outras partes”, afirmou o especialista em drones Paul Scharre, do Center for a New American Security, autor de “Four Battlegrounds: Power in the Age of Artificial Intelligence” (Quatro campos de batalha: O poder na era da inteligência artificial). “É bem fácil para atores não estatais se conectar à internet, obter o software e lhe dar novo propósito.”
Ética
Grandes potências militares debatem há muito a ética de permitir que máquinas usem força letal em combate. O general Mark Milley, principal conselheiro militar do presidente Joe Biden, afirmou que os EUA exigem que “humanos” permaneçam “à frente da tomada de decisão” e recentemente conclamou outras grandes Forças Armadas estrangeiras a adotar o mesmo padrão.
A nova tecnologia de mira ainda requer que um operador humano selecione o alvo, afirmou Kovalchuk, cuja empresa de drones utiliza tecnologia de inteligência artificial. Mas uma vez que a seleção ocorre, é o drone que persegue o alvo e desfere a munição — o que ocasiona um lapso entre a decisão humana e o ato letal.
Ucranianos que testaram o novo software insistem que o papel da máquina é limitado e “aceitável”, afirmou Kovalchuk. “Nós não estamos mirando civis”, afirmou ele. “E consideramos aceitáveis imprecisões de 5 a 10 metros.”
Fedorov reconheceu que a disseminação da tecnologia de inteligência artificial representa uma “ameaça futura”, mas enfatizou que Kiev deve priorizar sua luta imediata por sobrevivência.
O conflito na Ucrânia também tem produzido métodos muito menos sofisticados de transformar drones em armas.
Cada brigada ucraniana, por exemplo, é equipada com uma impressora 3D que os soldados usam para fabricar um mecanismo instalado em drones comerciais que prende e solta bombas. O processo é facilmente replicável, afirmam especialistas.
“Manuais de pilotagem de drones que ensinam a operar quadricópteros e evitar detecção estão sendo publicados em língua russa e ucraniana”, afirmou Bendett. “Atores nefastos espalhados pelo mundo são capazes de usar essa experiência e tecnologia? Certamente.”
Mas enquanto criadores de tecnologias se maravilham com a inovação que sucede no campo dos drones na Ucrânia, alguns alertam que a inteligência artificial não é uma solução milagrosa para os terríveis desafios militares de Kiev.
Liscovich, o ex-executivo do Uber, afirmou que os ataques de drones da Ucrânia dificilmente representarão uma vantagem decisiva na contraofensiva ucraniana em razão de sua limitação em alcance e capacidade de carga e do terreno acidentado que abrange vários quilômetros quadrados de densos campos minados e trincheiras da Rússia.
Em vez disso, afirmou ele, drones espiões ucranianos são mais promissores no sentido de dar uma vantagem a Kiev. “Drones de reconhecimento atuam domo multiplicadores diretos da eficácia de quase todas armas do arsenal ucraniano, especialmente a artilharia, fornecendo a maior vantagem imediata neste momento no campo de batalha”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL