Opinião|Como a leitura universitária explica o radicalismo de estudantes que protestam contra Israel nos EUA


Para aprender sobre o mundo contemporâneo, estudantes de Columbia leem textos importantes realmente apenas para entender a perspectiva da esquerda contemporânea

Por Ross Douthat

Quando fui aluno de graduação na faculdade, 25 anos atrás, a pomposa escola em que estudei oferecia o que a instituição definia como “currículo básico”, o que não tinha nada a ver com essa expressão. Em vez de ministrar aos estudantes um conjunto de cursos e matérias fundamentais, uma base comum de ideias e argumentos importantes, nossa base reunia uma miscelânea de cursos de diferentes disciplinas e nos convidava a escolher entre eles.

A ideia era que nós experimentássemos uma variedade de “enfoques do conhecimento”, não importava qual conhecimento específico escolhêssemos. Não havia diferença entre escolhermos a aula de pesquisa sobre o magistral “Poemas, Poetas, Poesia”, da finada Helen Vendler, ou, em vez disso, um curso sobre “Mulheres Escritoras na China Imperial: Como Escapar da Voz Feminina”.

Naquela época eu olhava com certa inveja para o sul, para a Universidade Columbia, onde o currículo básico ainda oferecia o que o termo prometia: um conjunto definido de trabalhos importantes que todo universitário deveria conhecer. Contrariando a convicção de que o multiculturalismo exige desconstrução de modelos, Columbia insistia que ainda era obrigatório expor os estudantes a alguma versão do melhor que já foi pensado e dito.

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Manifestantes se reúnem do lado de fora da entrada da Universidade de Columbia nesta segunda, 29 Foto: David Dee Delgado/Reuters

Essa abordagem sobrevive hoje: a Universidade Columbia, que se tornou o principal palco do drama político nos Estados Unidos, ainda exige que seus alunos se deparem com o que a instituição chama de “ideias e teorias fundamentais de toda literatura, filosofia, história, ciência e das artes”.

O objetivo é admirável, assim como útil, já que oferece um olhar transparente sobre que tipo de “ideias e teorias” o atual consenso da elite acadêmica considera importante na formação de cidadãos e futuros líderes — incluindo os futuros líderes que protestam atualmente em Columbia e outros campi de todo o país. Ajuda a definir claramente, em um programa de estudos específico, impulsos genéricos que qualquer pessoa lúcida notará em sistemas meritocráticos, das grandes Heras às faculdades de artes liberais, às escolas seletivas de ensino médio e fundamental.

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As exigências básicas de Columbia incluem a leitura de muitos dos “Grandes Livros” tradicionais — o Gênesis e Jó; Ésquilo e Shakespeare; Adam Smith e Alexis de Tocqueville — juntamente com estudos sobre as ciências e exposição à música e às belas artes. Assim como fontes obviamente destinadas a diversificar o currículo básico tradicional e atualizá-lo — algumas da era medieval e do passado moderno, muitas do século 20.

Quero olhar particularmente para o programa sobre “Civilização Contemporânea”, a porção do currículo básico que lida majoritariamente com a ciência política. As leituras pré-século 20 seguem padrões tradicionais (Platão, Aristóteles, Agostinho; Hobbes, Locke, Rousseau), com complementos específicos que diversificam a lista: mais escritores islâmicos da Idade Média, Christine De Pizan simultaneamente a Maquiavel, uma série de leituras sobre a conquista das Américas, a Declaração de Independência e a Constituição do Haiti e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA.

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Mas então chega o século 20, e de repente o escopo se estreita, restringindo-se a preocupações progressistas e somente a essas preocupações: anticolonialismo, sexo e gênero, antirracismo, meio ambiente. Frantz Fanon e Michel Foucault. Barbara Fields e o Coletivo Combahee River. Reflexões sobre o comércio escravagista transatlântico e como a mudança climática é um “déjà vu colonial”.

Muitas dessas leituras valem totalmente a pena. (Algumas delas eu até ministrei em meus limitados experimentos lecionando.) Mas elas ainda encarnam um conjunto de compromissos ideológicos muito específicos.

Para entender o mundo anterior a 1900, os estudantes de Columbia leem uma série de textos e autores importantes para entender os EUA e o Ocidente em sua totalidade — os gregos e os romanos, os religiosos e os seculares, os capitalistas e os marxistas.

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Para aprender sobre o mundo contemporâneo, o mundo que estão sendo preparados para influenciar e liderar, eles leem textos importantes realmente apenas para entender a perspectiva da esquerda contemporânea.

Evidentemente, essas listas de leituras podem mudar, e a maneira que são transmitidas varia segundo o professor. Mas as prioridades do programa acadêmico de Columbia encaixam-se numa tendência maior. Eu converso bastante frequentemente com estudantes universitários e do ensino médio, e é comum deparar-me com jovens cuja percepção total sobre os desafios políticos contemporâneos reduz-se a racismo e mudança climática. (Notem que se tratam normalmente de filhos da classe média alta; pessoas com idades entre 18 e 29 anos geralmente tendem mais a se preocupar com problemas econômicos.) Eles não abraçam essas causas necessariamente com entusiasmo; se conversam comigo, mais provavelmente estão desiludidos. Mas esse é o escopo de ideias que lhes está sendo transmitido a respeito do que uma pessoa escolarizada deveria considerar preocupante ou digno de atenção.

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O que surte dois efeitos, um geral e outro mais específico, sobre os atuais protestos em Columbia. O primeiro é um estreitamento intelectual e histórico dramático. Nas leituras do século 20 presentes no currículo de Columbia, a era do totalitarismo simplesmente se dissipa, deixando a descolonização como o único grande drama político do passado recente. Não há Orwell nem Solzhenitsyn; nem os ensaios de Hannah Arendt sobre a Guerra do Vietnã; e os protestos estudantis nos EUA estão no programa, mas não “As Origens do Totalitarismo” nem “Eichmann em Jerusalém”.

Também estão ausentes leituras que trariam à luz ideias que a esquerda contemporânea tem combatido: não há nada sobre neoconservadorismo, certamente nada sobre conservadorismo religioso e também não há nenhuma análise sobre o neoliberalismo em todas as suas variantes. Não há Francis Fukuyama, nenhum debate sobre o “fim da história”. Arautos da teoria crítica também ficam majoritariamente invisíveis, esquecidos no século 19 com Karl Marx. E nenhuma leitura coloca foco em aspectos tecnológicos ou espirituais do presente nem oferece críticos culturais com alguma perspectiva não progressista — nada de Philip Rieff, nem Neil Postman, nem Christopher Lasch.

Esse estreitamento, por sua vez, deixa aos estudantes uma lista igualmente estreita de respostas para a energia mundialmente transformadora que eles são constantemente exortados a aceitar. Conservadorismos de qualquer tipo estão naturalmente fora de questão. Manejos centro-esquerdistas também soam como vender a si mesmo. Não há nenhum caminho claro para lidar com muitos dos principais dramas do nosso tempo: a competição civilizatória renovada, as pressões da existência digital e a alienação existencial.

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A mudança climática é onipresente, mas o ativismo ambiental deve ser mesclado de algum modo com ação anticolonial e antirracista. Mas na verdade é bastante difícil traçar um mapa de preocupações anticolonialistas em um mundo no qual a Europa Ocidental envelhece e declina e populações colonizadas no passado agora vivem em suas maiores cidades, onde o lócus do poder mundial transferiu-se para a Ásia, em que os regimes mais tirânicos e imperialistas são não ocidentais e não brancos. Você tem inevitavelmente de mistificar um pouco as coisas, descobrindo perpetuamente a chave oculta para entender o século 21 nas relações de poder do passado distante.

Manifestantes pró-Palestina realizam manifestação depois de marchar ao redor do "Acampamento de Solidariedade de Gaza" na Universidade de Columbia em 29 de abril Foto: Michael M. Santiago/Getty Images via AFP

Mas se você estiver disposto a simplificar e aplainar a história — especificamente a história do século 20 — é mais fácil fazer essas preocupações caberem na questão Israel-Palestina. Com sua posição incomum no Oriente Médio, sua fundação relativamente recente, sua relação próxima com os EUA, seus assentamentos coloniais e sua ocupação, Israel acaba figurando como bode expiatório para pecados de finados impérios europeus e regimes supremacistas brancos.

Às vezes essa expiação parece inconsciente, mas com bastante frequência é inteiramente literal — como no vídeo que circulou na semana passada no qual um dos organizadores dos protestos em Columbia equipara explicitamente os “sionistas” contemporâneos aos proprietários de escravos no Haiti pré-revolucionário, que ele afirma terem sido assassinados merecidamente por seus escravos. (Posteriormente o estudante publicou um comunicado desculpando-se pelo excesso retórico.)

Reconhecer que isso está acontecendo — que Israel é um tipo de inimigo de conveniência para uma visão de esquerda que sem isso fica sem correspondências no mundo real para suas teorias — não exime o governo israelense de suas falhas, não legitima sua busca por uma estratégia de fim de jogo em Gaza e não justifica nenhum tipo de mau-trato aos estudantes em protesto.

Mas ajuda a explicar os dois principais elementos que parecem tão desproporcionais nessas manifestações e na cultura que as cerca. Primeiramente, explica por que esse conflito ocasiona tamanha atenção, ação e perturbação nas universidades, enquanto tantas outras guerras e crises (Sudão, Congo, Armênia, Mianmar, Iêmen…) mal são notadas ou acabam totalmente ignoradas.

Em segundo lugar, explica por que a atenção parece descambar tão rapidamente da crítica para a caricatura, da simpatia aos palestinos para narrativas favoráveis ao Hamas, da condenação às políticas de Israel para o antissemitismo.

A verdade é que esses aspectos da política dos protestos contemporâneos não são apenas uma recrudescência de sectarismos do passado. Em parte são isso, mas também são algo mais estranho: o reflexo de uma visão de mundo que despertou para tentações antissemitas por um caminho sinuoso.

Essa visão de mundo é ampla o suficiente para estabelecer currículos universitários mas estreita demais para encontrar aceitação plena no mundo real, empenhada em encontrar inimigos mas descobrindo-os mais no passado que no presente e agarrando-se a Israel com uma sensação entusiástica de vingança — um espírito que cede facilmente ao ódio, como a vingança virtuosa faz com frequência. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Quando fui aluno de graduação na faculdade, 25 anos atrás, a pomposa escola em que estudei oferecia o que a instituição definia como “currículo básico”, o que não tinha nada a ver com essa expressão. Em vez de ministrar aos estudantes um conjunto de cursos e matérias fundamentais, uma base comum de ideias e argumentos importantes, nossa base reunia uma miscelânea de cursos de diferentes disciplinas e nos convidava a escolher entre eles.

A ideia era que nós experimentássemos uma variedade de “enfoques do conhecimento”, não importava qual conhecimento específico escolhêssemos. Não havia diferença entre escolhermos a aula de pesquisa sobre o magistral “Poemas, Poetas, Poesia”, da finada Helen Vendler, ou, em vez disso, um curso sobre “Mulheres Escritoras na China Imperial: Como Escapar da Voz Feminina”.

Naquela época eu olhava com certa inveja para o sul, para a Universidade Columbia, onde o currículo básico ainda oferecia o que o termo prometia: um conjunto definido de trabalhos importantes que todo universitário deveria conhecer. Contrariando a convicção de que o multiculturalismo exige desconstrução de modelos, Columbia insistia que ainda era obrigatório expor os estudantes a alguma versão do melhor que já foi pensado e dito.

Manifestantes se reúnem do lado de fora da entrada da Universidade de Columbia nesta segunda, 29 Foto: David Dee Delgado/Reuters

Essa abordagem sobrevive hoje: a Universidade Columbia, que se tornou o principal palco do drama político nos Estados Unidos, ainda exige que seus alunos se deparem com o que a instituição chama de “ideias e teorias fundamentais de toda literatura, filosofia, história, ciência e das artes”.

O objetivo é admirável, assim como útil, já que oferece um olhar transparente sobre que tipo de “ideias e teorias” o atual consenso da elite acadêmica considera importante na formação de cidadãos e futuros líderes — incluindo os futuros líderes que protestam atualmente em Columbia e outros campi de todo o país. Ajuda a definir claramente, em um programa de estudos específico, impulsos genéricos que qualquer pessoa lúcida notará em sistemas meritocráticos, das grandes Heras às faculdades de artes liberais, às escolas seletivas de ensino médio e fundamental.

As exigências básicas de Columbia incluem a leitura de muitos dos “Grandes Livros” tradicionais — o Gênesis e Jó; Ésquilo e Shakespeare; Adam Smith e Alexis de Tocqueville — juntamente com estudos sobre as ciências e exposição à música e às belas artes. Assim como fontes obviamente destinadas a diversificar o currículo básico tradicional e atualizá-lo — algumas da era medieval e do passado moderno, muitas do século 20.

Quero olhar particularmente para o programa sobre “Civilização Contemporânea”, a porção do currículo básico que lida majoritariamente com a ciência política. As leituras pré-século 20 seguem padrões tradicionais (Platão, Aristóteles, Agostinho; Hobbes, Locke, Rousseau), com complementos específicos que diversificam a lista: mais escritores islâmicos da Idade Média, Christine De Pizan simultaneamente a Maquiavel, uma série de leituras sobre a conquista das Américas, a Declaração de Independência e a Constituição do Haiti e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA.

Mas então chega o século 20, e de repente o escopo se estreita, restringindo-se a preocupações progressistas e somente a essas preocupações: anticolonialismo, sexo e gênero, antirracismo, meio ambiente. Frantz Fanon e Michel Foucault. Barbara Fields e o Coletivo Combahee River. Reflexões sobre o comércio escravagista transatlântico e como a mudança climática é um “déjà vu colonial”.

Muitas dessas leituras valem totalmente a pena. (Algumas delas eu até ministrei em meus limitados experimentos lecionando.) Mas elas ainda encarnam um conjunto de compromissos ideológicos muito específicos.

Para entender o mundo anterior a 1900, os estudantes de Columbia leem uma série de textos e autores importantes para entender os EUA e o Ocidente em sua totalidade — os gregos e os romanos, os religiosos e os seculares, os capitalistas e os marxistas.

Para aprender sobre o mundo contemporâneo, o mundo que estão sendo preparados para influenciar e liderar, eles leem textos importantes realmente apenas para entender a perspectiva da esquerda contemporânea.

Evidentemente, essas listas de leituras podem mudar, e a maneira que são transmitidas varia segundo o professor. Mas as prioridades do programa acadêmico de Columbia encaixam-se numa tendência maior. Eu converso bastante frequentemente com estudantes universitários e do ensino médio, e é comum deparar-me com jovens cuja percepção total sobre os desafios políticos contemporâneos reduz-se a racismo e mudança climática. (Notem que se tratam normalmente de filhos da classe média alta; pessoas com idades entre 18 e 29 anos geralmente tendem mais a se preocupar com problemas econômicos.) Eles não abraçam essas causas necessariamente com entusiasmo; se conversam comigo, mais provavelmente estão desiludidos. Mas esse é o escopo de ideias que lhes está sendo transmitido a respeito do que uma pessoa escolarizada deveria considerar preocupante ou digno de atenção.

O que surte dois efeitos, um geral e outro mais específico, sobre os atuais protestos em Columbia. O primeiro é um estreitamento intelectual e histórico dramático. Nas leituras do século 20 presentes no currículo de Columbia, a era do totalitarismo simplesmente se dissipa, deixando a descolonização como o único grande drama político do passado recente. Não há Orwell nem Solzhenitsyn; nem os ensaios de Hannah Arendt sobre a Guerra do Vietnã; e os protestos estudantis nos EUA estão no programa, mas não “As Origens do Totalitarismo” nem “Eichmann em Jerusalém”.

Também estão ausentes leituras que trariam à luz ideias que a esquerda contemporânea tem combatido: não há nada sobre neoconservadorismo, certamente nada sobre conservadorismo religioso e também não há nenhuma análise sobre o neoliberalismo em todas as suas variantes. Não há Francis Fukuyama, nenhum debate sobre o “fim da história”. Arautos da teoria crítica também ficam majoritariamente invisíveis, esquecidos no século 19 com Karl Marx. E nenhuma leitura coloca foco em aspectos tecnológicos ou espirituais do presente nem oferece críticos culturais com alguma perspectiva não progressista — nada de Philip Rieff, nem Neil Postman, nem Christopher Lasch.

Esse estreitamento, por sua vez, deixa aos estudantes uma lista igualmente estreita de respostas para a energia mundialmente transformadora que eles são constantemente exortados a aceitar. Conservadorismos de qualquer tipo estão naturalmente fora de questão. Manejos centro-esquerdistas também soam como vender a si mesmo. Não há nenhum caminho claro para lidar com muitos dos principais dramas do nosso tempo: a competição civilizatória renovada, as pressões da existência digital e a alienação existencial.

A mudança climática é onipresente, mas o ativismo ambiental deve ser mesclado de algum modo com ação anticolonial e antirracista. Mas na verdade é bastante difícil traçar um mapa de preocupações anticolonialistas em um mundo no qual a Europa Ocidental envelhece e declina e populações colonizadas no passado agora vivem em suas maiores cidades, onde o lócus do poder mundial transferiu-se para a Ásia, em que os regimes mais tirânicos e imperialistas são não ocidentais e não brancos. Você tem inevitavelmente de mistificar um pouco as coisas, descobrindo perpetuamente a chave oculta para entender o século 21 nas relações de poder do passado distante.

Manifestantes pró-Palestina realizam manifestação depois de marchar ao redor do "Acampamento de Solidariedade de Gaza" na Universidade de Columbia em 29 de abril Foto: Michael M. Santiago/Getty Images via AFP

Mas se você estiver disposto a simplificar e aplainar a história — especificamente a história do século 20 — é mais fácil fazer essas preocupações caberem na questão Israel-Palestina. Com sua posição incomum no Oriente Médio, sua fundação relativamente recente, sua relação próxima com os EUA, seus assentamentos coloniais e sua ocupação, Israel acaba figurando como bode expiatório para pecados de finados impérios europeus e regimes supremacistas brancos.

Às vezes essa expiação parece inconsciente, mas com bastante frequência é inteiramente literal — como no vídeo que circulou na semana passada no qual um dos organizadores dos protestos em Columbia equipara explicitamente os “sionistas” contemporâneos aos proprietários de escravos no Haiti pré-revolucionário, que ele afirma terem sido assassinados merecidamente por seus escravos. (Posteriormente o estudante publicou um comunicado desculpando-se pelo excesso retórico.)

Reconhecer que isso está acontecendo — que Israel é um tipo de inimigo de conveniência para uma visão de esquerda que sem isso fica sem correspondências no mundo real para suas teorias — não exime o governo israelense de suas falhas, não legitima sua busca por uma estratégia de fim de jogo em Gaza e não justifica nenhum tipo de mau-trato aos estudantes em protesto.

Mas ajuda a explicar os dois principais elementos que parecem tão desproporcionais nessas manifestações e na cultura que as cerca. Primeiramente, explica por que esse conflito ocasiona tamanha atenção, ação e perturbação nas universidades, enquanto tantas outras guerras e crises (Sudão, Congo, Armênia, Mianmar, Iêmen…) mal são notadas ou acabam totalmente ignoradas.

Em segundo lugar, explica por que a atenção parece descambar tão rapidamente da crítica para a caricatura, da simpatia aos palestinos para narrativas favoráveis ao Hamas, da condenação às políticas de Israel para o antissemitismo.

A verdade é que esses aspectos da política dos protestos contemporâneos não são apenas uma recrudescência de sectarismos do passado. Em parte são isso, mas também são algo mais estranho: o reflexo de uma visão de mundo que despertou para tentações antissemitas por um caminho sinuoso.

Essa visão de mundo é ampla o suficiente para estabelecer currículos universitários mas estreita demais para encontrar aceitação plena no mundo real, empenhada em encontrar inimigos mas descobrindo-os mais no passado que no presente e agarrando-se a Israel com uma sensação entusiástica de vingança — um espírito que cede facilmente ao ódio, como a vingança virtuosa faz com frequência. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Quando fui aluno de graduação na faculdade, 25 anos atrás, a pomposa escola em que estudei oferecia o que a instituição definia como “currículo básico”, o que não tinha nada a ver com essa expressão. Em vez de ministrar aos estudantes um conjunto de cursos e matérias fundamentais, uma base comum de ideias e argumentos importantes, nossa base reunia uma miscelânea de cursos de diferentes disciplinas e nos convidava a escolher entre eles.

A ideia era que nós experimentássemos uma variedade de “enfoques do conhecimento”, não importava qual conhecimento específico escolhêssemos. Não havia diferença entre escolhermos a aula de pesquisa sobre o magistral “Poemas, Poetas, Poesia”, da finada Helen Vendler, ou, em vez disso, um curso sobre “Mulheres Escritoras na China Imperial: Como Escapar da Voz Feminina”.

Naquela época eu olhava com certa inveja para o sul, para a Universidade Columbia, onde o currículo básico ainda oferecia o que o termo prometia: um conjunto definido de trabalhos importantes que todo universitário deveria conhecer. Contrariando a convicção de que o multiculturalismo exige desconstrução de modelos, Columbia insistia que ainda era obrigatório expor os estudantes a alguma versão do melhor que já foi pensado e dito.

Manifestantes se reúnem do lado de fora da entrada da Universidade de Columbia nesta segunda, 29 Foto: David Dee Delgado/Reuters

Essa abordagem sobrevive hoje: a Universidade Columbia, que se tornou o principal palco do drama político nos Estados Unidos, ainda exige que seus alunos se deparem com o que a instituição chama de “ideias e teorias fundamentais de toda literatura, filosofia, história, ciência e das artes”.

O objetivo é admirável, assim como útil, já que oferece um olhar transparente sobre que tipo de “ideias e teorias” o atual consenso da elite acadêmica considera importante na formação de cidadãos e futuros líderes — incluindo os futuros líderes que protestam atualmente em Columbia e outros campi de todo o país. Ajuda a definir claramente, em um programa de estudos específico, impulsos genéricos que qualquer pessoa lúcida notará em sistemas meritocráticos, das grandes Heras às faculdades de artes liberais, às escolas seletivas de ensino médio e fundamental.

As exigências básicas de Columbia incluem a leitura de muitos dos “Grandes Livros” tradicionais — o Gênesis e Jó; Ésquilo e Shakespeare; Adam Smith e Alexis de Tocqueville — juntamente com estudos sobre as ciências e exposição à música e às belas artes. Assim como fontes obviamente destinadas a diversificar o currículo básico tradicional e atualizá-lo — algumas da era medieval e do passado moderno, muitas do século 20.

Quero olhar particularmente para o programa sobre “Civilização Contemporânea”, a porção do currículo básico que lida majoritariamente com a ciência política. As leituras pré-século 20 seguem padrões tradicionais (Platão, Aristóteles, Agostinho; Hobbes, Locke, Rousseau), com complementos específicos que diversificam a lista: mais escritores islâmicos da Idade Média, Christine De Pizan simultaneamente a Maquiavel, uma série de leituras sobre a conquista das Américas, a Declaração de Independência e a Constituição do Haiti e a Declaração dos Direitos dos Cidadãos dos EUA.

Mas então chega o século 20, e de repente o escopo se estreita, restringindo-se a preocupações progressistas e somente a essas preocupações: anticolonialismo, sexo e gênero, antirracismo, meio ambiente. Frantz Fanon e Michel Foucault. Barbara Fields e o Coletivo Combahee River. Reflexões sobre o comércio escravagista transatlântico e como a mudança climática é um “déjà vu colonial”.

Muitas dessas leituras valem totalmente a pena. (Algumas delas eu até ministrei em meus limitados experimentos lecionando.) Mas elas ainda encarnam um conjunto de compromissos ideológicos muito específicos.

Para entender o mundo anterior a 1900, os estudantes de Columbia leem uma série de textos e autores importantes para entender os EUA e o Ocidente em sua totalidade — os gregos e os romanos, os religiosos e os seculares, os capitalistas e os marxistas.

Para aprender sobre o mundo contemporâneo, o mundo que estão sendo preparados para influenciar e liderar, eles leem textos importantes realmente apenas para entender a perspectiva da esquerda contemporânea.

Evidentemente, essas listas de leituras podem mudar, e a maneira que são transmitidas varia segundo o professor. Mas as prioridades do programa acadêmico de Columbia encaixam-se numa tendência maior. Eu converso bastante frequentemente com estudantes universitários e do ensino médio, e é comum deparar-me com jovens cuja percepção total sobre os desafios políticos contemporâneos reduz-se a racismo e mudança climática. (Notem que se tratam normalmente de filhos da classe média alta; pessoas com idades entre 18 e 29 anos geralmente tendem mais a se preocupar com problemas econômicos.) Eles não abraçam essas causas necessariamente com entusiasmo; se conversam comigo, mais provavelmente estão desiludidos. Mas esse é o escopo de ideias que lhes está sendo transmitido a respeito do que uma pessoa escolarizada deveria considerar preocupante ou digno de atenção.

O que surte dois efeitos, um geral e outro mais específico, sobre os atuais protestos em Columbia. O primeiro é um estreitamento intelectual e histórico dramático. Nas leituras do século 20 presentes no currículo de Columbia, a era do totalitarismo simplesmente se dissipa, deixando a descolonização como o único grande drama político do passado recente. Não há Orwell nem Solzhenitsyn; nem os ensaios de Hannah Arendt sobre a Guerra do Vietnã; e os protestos estudantis nos EUA estão no programa, mas não “As Origens do Totalitarismo” nem “Eichmann em Jerusalém”.

Também estão ausentes leituras que trariam à luz ideias que a esquerda contemporânea tem combatido: não há nada sobre neoconservadorismo, certamente nada sobre conservadorismo religioso e também não há nenhuma análise sobre o neoliberalismo em todas as suas variantes. Não há Francis Fukuyama, nenhum debate sobre o “fim da história”. Arautos da teoria crítica também ficam majoritariamente invisíveis, esquecidos no século 19 com Karl Marx. E nenhuma leitura coloca foco em aspectos tecnológicos ou espirituais do presente nem oferece críticos culturais com alguma perspectiva não progressista — nada de Philip Rieff, nem Neil Postman, nem Christopher Lasch.

Esse estreitamento, por sua vez, deixa aos estudantes uma lista igualmente estreita de respostas para a energia mundialmente transformadora que eles são constantemente exortados a aceitar. Conservadorismos de qualquer tipo estão naturalmente fora de questão. Manejos centro-esquerdistas também soam como vender a si mesmo. Não há nenhum caminho claro para lidar com muitos dos principais dramas do nosso tempo: a competição civilizatória renovada, as pressões da existência digital e a alienação existencial.

A mudança climática é onipresente, mas o ativismo ambiental deve ser mesclado de algum modo com ação anticolonial e antirracista. Mas na verdade é bastante difícil traçar um mapa de preocupações anticolonialistas em um mundo no qual a Europa Ocidental envelhece e declina e populações colonizadas no passado agora vivem em suas maiores cidades, onde o lócus do poder mundial transferiu-se para a Ásia, em que os regimes mais tirânicos e imperialistas são não ocidentais e não brancos. Você tem inevitavelmente de mistificar um pouco as coisas, descobrindo perpetuamente a chave oculta para entender o século 21 nas relações de poder do passado distante.

Manifestantes pró-Palestina realizam manifestação depois de marchar ao redor do "Acampamento de Solidariedade de Gaza" na Universidade de Columbia em 29 de abril Foto: Michael M. Santiago/Getty Images via AFP

Mas se você estiver disposto a simplificar e aplainar a história — especificamente a história do século 20 — é mais fácil fazer essas preocupações caberem na questão Israel-Palestina. Com sua posição incomum no Oriente Médio, sua fundação relativamente recente, sua relação próxima com os EUA, seus assentamentos coloniais e sua ocupação, Israel acaba figurando como bode expiatório para pecados de finados impérios europeus e regimes supremacistas brancos.

Às vezes essa expiação parece inconsciente, mas com bastante frequência é inteiramente literal — como no vídeo que circulou na semana passada no qual um dos organizadores dos protestos em Columbia equipara explicitamente os “sionistas” contemporâneos aos proprietários de escravos no Haiti pré-revolucionário, que ele afirma terem sido assassinados merecidamente por seus escravos. (Posteriormente o estudante publicou um comunicado desculpando-se pelo excesso retórico.)

Reconhecer que isso está acontecendo — que Israel é um tipo de inimigo de conveniência para uma visão de esquerda que sem isso fica sem correspondências no mundo real para suas teorias — não exime o governo israelense de suas falhas, não legitima sua busca por uma estratégia de fim de jogo em Gaza e não justifica nenhum tipo de mau-trato aos estudantes em protesto.

Mas ajuda a explicar os dois principais elementos que parecem tão desproporcionais nessas manifestações e na cultura que as cerca. Primeiramente, explica por que esse conflito ocasiona tamanha atenção, ação e perturbação nas universidades, enquanto tantas outras guerras e crises (Sudão, Congo, Armênia, Mianmar, Iêmen…) mal são notadas ou acabam totalmente ignoradas.

Em segundo lugar, explica por que a atenção parece descambar tão rapidamente da crítica para a caricatura, da simpatia aos palestinos para narrativas favoráveis ao Hamas, da condenação às políticas de Israel para o antissemitismo.

A verdade é que esses aspectos da política dos protestos contemporâneos não são apenas uma recrudescência de sectarismos do passado. Em parte são isso, mas também são algo mais estranho: o reflexo de uma visão de mundo que despertou para tentações antissemitas por um caminho sinuoso.

Essa visão de mundo é ampla o suficiente para estabelecer currículos universitários mas estreita demais para encontrar aceitação plena no mundo real, empenhada em encontrar inimigos mas descobrindo-os mais no passado que no presente e agarrando-se a Israel com uma sensação entusiástica de vingança — um espírito que cede facilmente ao ódio, como a vingança virtuosa faz com frequência. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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