Como a memória coletiva do nazismo na França ajudou a derrotar a direita radical


A chamada ‘maré republicana’ ganhou força antes do segundo turno e deu uma vitória pequena e inesperada à esquerda, abrindo negociações complicadas para formação do governo

Por Adam Nossiter

Até a última urna chegar de um subúrbio próximo, Fabrice Barusseau roía as unhas: seria ele ou o seu adversário de extrema direita quem teria um assento no Parlamento francês em Paris?

As perspectivas não pareciam boas. Este distrito ensolarado de pedras brancas e vinhas no sudoeste da França, o lar histórico dos eleitores centristas, parecia estar oscilando acentuadamente para a direita, tal como o resto do país. No primeiro turno das eleições legislativas francesas, em 30 de junho, o candidato do Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen recebeu mais de 40% dos votos. Barusseau, 54 anos, candidato socialista, obteve pouco mais de 28%.

Na votação do segundo turno, apenas uma semana depois, em 7 de julho, ainda ao anoitecer, “foi extremamente tenso”, disse a prefeita Françoise Mesnard de Saint-Jean-d’Angély. “Parecia o fim.”

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Mas, já tarde na noite de domingo, algo notável tinha ocorrido. Uma onda de eleitores de última hora se uniu no que é chamado na França de “maré republicana”, para votar contra a extrema direita e defender os valores que, para muitos franceses, a direita radical ameaça. Ela varreu o Terceiro Distrito do departamento de Charente-Maritime, assim como ocorreu em outras partes da França, levando Barusseau à vitória no terceiro resultado mais disputado do país.

Ruas em Saintes, onde muitas pessoas disseram ter dificuldade para decidir em quem votar. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Fabrice Barusseau (centro), prefeito de Villars-les-Bois e eleito pela frente de esquerda Nova Frente Popular para o Parlamento.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Essa onda deu uma vitória pequena e inesperada à esquerda, embora não o suficiente para formar um governo, e levou a negociações complicadas a respeito de quem governará a França. Mas também reforçou a ideia da França de que, no momento decisivo, os eleitores acabarão mantendo a extrema direita fora do poder. A revista semanal “Nouvel Obs” colocou a palavra “Onda” em sua capa esta semana em letras garrafais.

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O sentimento de incerteza na França aumentou na terça feira, quando o presidente Emmanuel Macron aceitou a renúncia do governo, incluindo a do primeiro-ministro Gabriel Attal, de acordo com um comunicado do Palácio do Eliseu. A declaração acrescentava que o antigo governo continuaria a “lidar com os assuntos atuais até que um novo governo fosse nomeado”. Quando isso acontecerá, porém, ninguém sabe, já que as facções da esquerda permanecem profundamente divididas. Macron instou as “forças republicanas” a chegarem a um acordo “o mais rápido possível”.

Eleitores e autoridades dizem que a Onda republicana é um fenômeno exclusivamente francês, ditado pela história nacional, juntamente com uma devoção digna de um culto às instituições da República, que muitos franceses acusam o Reagrupamento Nacional de querer minar.

A onda ganhou impulso antes do segundo turno das eleições, simplificando a escolha dos eleitores, quando autoridades, incluindo o primeiro-ministro Attal, pediram que os terceiros colocados no primeiro turno se retirassem, permitindo que os adversários do Reagrupamento Nacional somassem forças.

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Cartazes de candidatos nas eleições parlamentares da França.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“O Reagrupamento Nacional não venceu porque as pessoas ficaram com medo”, disse Patrick Pineau, funcionário de um laboratório de exames médicos, tomando uma taça à tarde em um café no centro de Saint-Jean-d’Angély, uma subprefeitura do distrito.

Stéphane Morin, o candidato do Reagrupamento Nacional, disse ao jornal local Sud-Ouest, após a divulgação dos resultados, que os eleitores compartilharam sua decepção. “Eles esperavam uma grande mudança”, disse ele. “Eles estavam altamente motivados porque os riscos eram muito altos, e o que viram foi um monte de disparates, um assalto eleitoral.”

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Por trás desta onda está uma memória coletiva do trauma nacional da ocupação nazista da França há 80 anos, que foi moldada pelo sistema educativo nacional centralizado da França e pelo que os pais e avós transmitiram às gerações mais jovens. As autoridades eleitas entrevistadas disseram que não foram apenas as memórias distantes da 2ª Guerra Mundial, mas a experiência de ter vivido sob o regime colaboracionista de Vichy que ajudaram a moldar as percepções dos eleitores nas eleições nacionais.

“Felizmente, na França temos essa memória”, disse Barusseau. “E acho que foi a memória que nos salvou. Veja, nós já conhecemos isso”, uma referência ao governo de direita radical. “Tínhamos aquele regime colaboracionista. E também, felizmente, temos uma educação pública que ainda é vigorosa. Não se pode realmente entender até ter travado uma guerra em seu próprio solo.”

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Françoise Mesnard, prefeita de Saint-Jean-d’Angély, no seu escritório.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Alain Chuteau atrás do balcão em café de Saint-Jean-d’Angély, disse que votou em branco como forma de protesto.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

O moderno Reagrupamento Nacional de Le Pen negou as ligações que o fundador do partido, Jean Marie Le Pen, pai dela, mantinha com colaboradores durante a guerra. Alguns deles ajudaram-no a iniciar o antecessor imediato do Reagrupamento Nacional, a Frente Nacional, em 1972. Apesar dos esforços de Le Pen para melhorar a imagem do partido, a associação da extrema direita com a colaboração nazista não é algo que os franceses possam esquecer.

Isso se traduz em uma adesão fervorosa aos valores da atual República. A sala de reuniões caiada de branco da pequena prefeitura de Barusseau aqui contém uma única decoração, presidindo a partir de uma plataforma elevada: um busto do símbolo da República Francesa, Marianne, usando uma faixa tricolor.

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Em sua prefeitura em Saint-Jean-d’Angély (6.700 habitantes), uma relíquia perfeita da Terceira República da França, no século XIX, com suas tapeçarias de tecido escuro e estampado, concordou Mesnard, que substituiria Barusseau no Parlamento caso ele estivesse ausente, doente ou incapaz de servir, concordou. A memória foi fundamental para a Onda republicana.

“Meus pais, meus avós, todos conheceram a guerra”, disse ela. “E os franceses ainda estão muito marcados por isso. Os alemães estiveram bem aqui. Então, vimos a guerra de perto. E essa memória permanece.”

“E, a propósito, a obra de Hannah Arendt, ‘A Banalidade do Mal’, é muito ensinada e apreciada”, disse Mesnard, referindo-se à cientista política germano-americana e à sua doutrina mais famosa a respeito do nazismo.

Ela tem memórias vívidas das histórias do seu avô, que era agente da polícia durante a guerra, e foi forçado pelos alemães a caçar membros da Resistência, que se recusou silenciosamente a fazer. “Deliberadamente, ele não encontrou nenhum”, disse ela.

A guerra “ainda está relativamente próxima”, disse Maurice Perrier, prefeito de direita da vizinha Loulay (760 habitantes), que também passou para o lado de Barusseau. “Algo permanece daquele período sombrio. São as memórias, as lembranças dos meus pais. Eles conversaram comigo a respeito de tudo isso. Tive muito medo de chegar a uma situação de autoritarismo”, disse. “Então, votar no Reagrupamento Nacional estava fora de questão. Estes são extremistas.”

Prefeito Bruno Drapron no seu escritório em Saintes. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Café em Saint-Jean-d’Angély.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Até a última semana de votação, o eleitorado de tendência direitista no sudoeste da França, confrontado com a escolha entre o candidato de Le Pen e um homem de esquerda, estava permeado pela indecisão.

“As pessoas me perguntavam em quem deveriam votar”, disse Bruno Drapron, prefeito de Saintes, em seu escritório sob o imponente campanário da catedral do século XV. “Elas finalmente disseram: ‘Estamos brincando com fogo”’.

No fim, cerca de 75% dos defensores do Presidente Macron, cujo candidato desistiu da disputa para ajudar Barusseau no segundo turno, viraram para a esquerda. As duas principais cidades do distrito deram cerca de 60% dos seus votos a Barusseau.

“Por enquanto, somos um país onde as pessoas ainda vivem juntas”, disse Mathieu Ancelle, atrás do bar do Rum Runners, um café no centro de Saint-Jean-d’Angély. Ancelle votou na esquerda. “A escolha foi simples”, disse ele. “E, no fim, os eleitores mais jovens acordaram e perceberam que tinham que votar no segundo turno.”

Alguns o fizeram com relutância. Maud Trolliet, uma vendedora de uma loja de chocolates próxima, votou contra o Reagrupamento Nacional. “Aliviada, sim. Feliz, não”, disse ela.

Nas vilarejos menores, porém, onde o eleitorado estava fortemente no campo da extrema direita, ressoa o descontentamento com o resultado apertado.

Maryline Menard (direita), dona do único café em Burie.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Cartaz de campanha rasgado em Villars-les-Bois. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“Fiquei doente por causa disso”, disse Maryline Menard, 60 anos, proprietária do único café em Burie, que votou fortemente a favor do Reagrupamento Nacional. Ela era totalmente a favor da direita radical, “300 por cento”, disse ela. “Não é racismo. Eu defendo a todos. Mas temos que parar de ajudar toda essa gente que não faz nada. E há muitos estrangeiros que vêm aqui para trabalhar, enquanto os franceses estão apenas dormindo.”

Nas ruas tranquilas da pequena cidade não se via um único estrangeiro, ou qualquer outra pessoa. Mais adiante, Barusseau estava preocupado com as raízes que a extrema direita estava plantando naqueles lugares onde o serviço de ônibus, os médicos, as lojas e os cafés haviam desaparecido.

“O resultado não foi tão claro”, disse ele. “Não ouvimos as pessoas. Precisamos garantir que suas preocupações diárias sejam atendidas. Quem estiver no modo de sobrevivência vai se preocupar muito menos com seu vizinho.”

Por enquanto, porém, foi “o que o Reagrupamento Nacional representa na nossa história” que afastou os eleitores dele, disse. “É por isso que a Frente Republicana persiste.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ciclista pela por ruas vazias em Saint-Jean-d’Angély. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Até a última urna chegar de um subúrbio próximo, Fabrice Barusseau roía as unhas: seria ele ou o seu adversário de extrema direita quem teria um assento no Parlamento francês em Paris?

As perspectivas não pareciam boas. Este distrito ensolarado de pedras brancas e vinhas no sudoeste da França, o lar histórico dos eleitores centristas, parecia estar oscilando acentuadamente para a direita, tal como o resto do país. No primeiro turno das eleições legislativas francesas, em 30 de junho, o candidato do Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen recebeu mais de 40% dos votos. Barusseau, 54 anos, candidato socialista, obteve pouco mais de 28%.

Na votação do segundo turno, apenas uma semana depois, em 7 de julho, ainda ao anoitecer, “foi extremamente tenso”, disse a prefeita Françoise Mesnard de Saint-Jean-d’Angély. “Parecia o fim.”

Mas, já tarde na noite de domingo, algo notável tinha ocorrido. Uma onda de eleitores de última hora se uniu no que é chamado na França de “maré republicana”, para votar contra a extrema direita e defender os valores que, para muitos franceses, a direita radical ameaça. Ela varreu o Terceiro Distrito do departamento de Charente-Maritime, assim como ocorreu em outras partes da França, levando Barusseau à vitória no terceiro resultado mais disputado do país.

Ruas em Saintes, onde muitas pessoas disseram ter dificuldade para decidir em quem votar. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Fabrice Barusseau (centro), prefeito de Villars-les-Bois e eleito pela frente de esquerda Nova Frente Popular para o Parlamento.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Essa onda deu uma vitória pequena e inesperada à esquerda, embora não o suficiente para formar um governo, e levou a negociações complicadas a respeito de quem governará a França. Mas também reforçou a ideia da França de que, no momento decisivo, os eleitores acabarão mantendo a extrema direita fora do poder. A revista semanal “Nouvel Obs” colocou a palavra “Onda” em sua capa esta semana em letras garrafais.

O sentimento de incerteza na França aumentou na terça feira, quando o presidente Emmanuel Macron aceitou a renúncia do governo, incluindo a do primeiro-ministro Gabriel Attal, de acordo com um comunicado do Palácio do Eliseu. A declaração acrescentava que o antigo governo continuaria a “lidar com os assuntos atuais até que um novo governo fosse nomeado”. Quando isso acontecerá, porém, ninguém sabe, já que as facções da esquerda permanecem profundamente divididas. Macron instou as “forças republicanas” a chegarem a um acordo “o mais rápido possível”.

Eleitores e autoridades dizem que a Onda republicana é um fenômeno exclusivamente francês, ditado pela história nacional, juntamente com uma devoção digna de um culto às instituições da República, que muitos franceses acusam o Reagrupamento Nacional de querer minar.

A onda ganhou impulso antes do segundo turno das eleições, simplificando a escolha dos eleitores, quando autoridades, incluindo o primeiro-ministro Attal, pediram que os terceiros colocados no primeiro turno se retirassem, permitindo que os adversários do Reagrupamento Nacional somassem forças.

Cartazes de candidatos nas eleições parlamentares da França.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“O Reagrupamento Nacional não venceu porque as pessoas ficaram com medo”, disse Patrick Pineau, funcionário de um laboratório de exames médicos, tomando uma taça à tarde em um café no centro de Saint-Jean-d’Angély, uma subprefeitura do distrito.

Stéphane Morin, o candidato do Reagrupamento Nacional, disse ao jornal local Sud-Ouest, após a divulgação dos resultados, que os eleitores compartilharam sua decepção. “Eles esperavam uma grande mudança”, disse ele. “Eles estavam altamente motivados porque os riscos eram muito altos, e o que viram foi um monte de disparates, um assalto eleitoral.”

Por trás desta onda está uma memória coletiva do trauma nacional da ocupação nazista da França há 80 anos, que foi moldada pelo sistema educativo nacional centralizado da França e pelo que os pais e avós transmitiram às gerações mais jovens. As autoridades eleitas entrevistadas disseram que não foram apenas as memórias distantes da 2ª Guerra Mundial, mas a experiência de ter vivido sob o regime colaboracionista de Vichy que ajudaram a moldar as percepções dos eleitores nas eleições nacionais.

“Felizmente, na França temos essa memória”, disse Barusseau. “E acho que foi a memória que nos salvou. Veja, nós já conhecemos isso”, uma referência ao governo de direita radical. “Tínhamos aquele regime colaboracionista. E também, felizmente, temos uma educação pública que ainda é vigorosa. Não se pode realmente entender até ter travado uma guerra em seu próprio solo.”

Françoise Mesnard, prefeita de Saint-Jean-d’Angély, no seu escritório.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Alain Chuteau atrás do balcão em café de Saint-Jean-d’Angély, disse que votou em branco como forma de protesto.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

O moderno Reagrupamento Nacional de Le Pen negou as ligações que o fundador do partido, Jean Marie Le Pen, pai dela, mantinha com colaboradores durante a guerra. Alguns deles ajudaram-no a iniciar o antecessor imediato do Reagrupamento Nacional, a Frente Nacional, em 1972. Apesar dos esforços de Le Pen para melhorar a imagem do partido, a associação da extrema direita com a colaboração nazista não é algo que os franceses possam esquecer.

Isso se traduz em uma adesão fervorosa aos valores da atual República. A sala de reuniões caiada de branco da pequena prefeitura de Barusseau aqui contém uma única decoração, presidindo a partir de uma plataforma elevada: um busto do símbolo da República Francesa, Marianne, usando uma faixa tricolor.

Em sua prefeitura em Saint-Jean-d’Angély (6.700 habitantes), uma relíquia perfeita da Terceira República da França, no século XIX, com suas tapeçarias de tecido escuro e estampado, concordou Mesnard, que substituiria Barusseau no Parlamento caso ele estivesse ausente, doente ou incapaz de servir, concordou. A memória foi fundamental para a Onda republicana.

“Meus pais, meus avós, todos conheceram a guerra”, disse ela. “E os franceses ainda estão muito marcados por isso. Os alemães estiveram bem aqui. Então, vimos a guerra de perto. E essa memória permanece.”

“E, a propósito, a obra de Hannah Arendt, ‘A Banalidade do Mal’, é muito ensinada e apreciada”, disse Mesnard, referindo-se à cientista política germano-americana e à sua doutrina mais famosa a respeito do nazismo.

Ela tem memórias vívidas das histórias do seu avô, que era agente da polícia durante a guerra, e foi forçado pelos alemães a caçar membros da Resistência, que se recusou silenciosamente a fazer. “Deliberadamente, ele não encontrou nenhum”, disse ela.

A guerra “ainda está relativamente próxima”, disse Maurice Perrier, prefeito de direita da vizinha Loulay (760 habitantes), que também passou para o lado de Barusseau. “Algo permanece daquele período sombrio. São as memórias, as lembranças dos meus pais. Eles conversaram comigo a respeito de tudo isso. Tive muito medo de chegar a uma situação de autoritarismo”, disse. “Então, votar no Reagrupamento Nacional estava fora de questão. Estes são extremistas.”

Prefeito Bruno Drapron no seu escritório em Saintes. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Café em Saint-Jean-d’Angély.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Até a última semana de votação, o eleitorado de tendência direitista no sudoeste da França, confrontado com a escolha entre o candidato de Le Pen e um homem de esquerda, estava permeado pela indecisão.

“As pessoas me perguntavam em quem deveriam votar”, disse Bruno Drapron, prefeito de Saintes, em seu escritório sob o imponente campanário da catedral do século XV. “Elas finalmente disseram: ‘Estamos brincando com fogo”’.

No fim, cerca de 75% dos defensores do Presidente Macron, cujo candidato desistiu da disputa para ajudar Barusseau no segundo turno, viraram para a esquerda. As duas principais cidades do distrito deram cerca de 60% dos seus votos a Barusseau.

“Por enquanto, somos um país onde as pessoas ainda vivem juntas”, disse Mathieu Ancelle, atrás do bar do Rum Runners, um café no centro de Saint-Jean-d’Angély. Ancelle votou na esquerda. “A escolha foi simples”, disse ele. “E, no fim, os eleitores mais jovens acordaram e perceberam que tinham que votar no segundo turno.”

Alguns o fizeram com relutância. Maud Trolliet, uma vendedora de uma loja de chocolates próxima, votou contra o Reagrupamento Nacional. “Aliviada, sim. Feliz, não”, disse ela.

Nas vilarejos menores, porém, onde o eleitorado estava fortemente no campo da extrema direita, ressoa o descontentamento com o resultado apertado.

Maryline Menard (direita), dona do único café em Burie.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Cartaz de campanha rasgado em Villars-les-Bois. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“Fiquei doente por causa disso”, disse Maryline Menard, 60 anos, proprietária do único café em Burie, que votou fortemente a favor do Reagrupamento Nacional. Ela era totalmente a favor da direita radical, “300 por cento”, disse ela. “Não é racismo. Eu defendo a todos. Mas temos que parar de ajudar toda essa gente que não faz nada. E há muitos estrangeiros que vêm aqui para trabalhar, enquanto os franceses estão apenas dormindo.”

Nas ruas tranquilas da pequena cidade não se via um único estrangeiro, ou qualquer outra pessoa. Mais adiante, Barusseau estava preocupado com as raízes que a extrema direita estava plantando naqueles lugares onde o serviço de ônibus, os médicos, as lojas e os cafés haviam desaparecido.

“O resultado não foi tão claro”, disse ele. “Não ouvimos as pessoas. Precisamos garantir que suas preocupações diárias sejam atendidas. Quem estiver no modo de sobrevivência vai se preocupar muito menos com seu vizinho.”

Por enquanto, porém, foi “o que o Reagrupamento Nacional representa na nossa história” que afastou os eleitores dele, disse. “É por isso que a Frente Republicana persiste.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ciclista pela por ruas vazias em Saint-Jean-d’Angély. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Até a última urna chegar de um subúrbio próximo, Fabrice Barusseau roía as unhas: seria ele ou o seu adversário de extrema direita quem teria um assento no Parlamento francês em Paris?

As perspectivas não pareciam boas. Este distrito ensolarado de pedras brancas e vinhas no sudoeste da França, o lar histórico dos eleitores centristas, parecia estar oscilando acentuadamente para a direita, tal como o resto do país. No primeiro turno das eleições legislativas francesas, em 30 de junho, o candidato do Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen recebeu mais de 40% dos votos. Barusseau, 54 anos, candidato socialista, obteve pouco mais de 28%.

Na votação do segundo turno, apenas uma semana depois, em 7 de julho, ainda ao anoitecer, “foi extremamente tenso”, disse a prefeita Françoise Mesnard de Saint-Jean-d’Angély. “Parecia o fim.”

Mas, já tarde na noite de domingo, algo notável tinha ocorrido. Uma onda de eleitores de última hora se uniu no que é chamado na França de “maré republicana”, para votar contra a extrema direita e defender os valores que, para muitos franceses, a direita radical ameaça. Ela varreu o Terceiro Distrito do departamento de Charente-Maritime, assim como ocorreu em outras partes da França, levando Barusseau à vitória no terceiro resultado mais disputado do país.

Ruas em Saintes, onde muitas pessoas disseram ter dificuldade para decidir em quem votar. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Fabrice Barusseau (centro), prefeito de Villars-les-Bois e eleito pela frente de esquerda Nova Frente Popular para o Parlamento.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Essa onda deu uma vitória pequena e inesperada à esquerda, embora não o suficiente para formar um governo, e levou a negociações complicadas a respeito de quem governará a França. Mas também reforçou a ideia da França de que, no momento decisivo, os eleitores acabarão mantendo a extrema direita fora do poder. A revista semanal “Nouvel Obs” colocou a palavra “Onda” em sua capa esta semana em letras garrafais.

O sentimento de incerteza na França aumentou na terça feira, quando o presidente Emmanuel Macron aceitou a renúncia do governo, incluindo a do primeiro-ministro Gabriel Attal, de acordo com um comunicado do Palácio do Eliseu. A declaração acrescentava que o antigo governo continuaria a “lidar com os assuntos atuais até que um novo governo fosse nomeado”. Quando isso acontecerá, porém, ninguém sabe, já que as facções da esquerda permanecem profundamente divididas. Macron instou as “forças republicanas” a chegarem a um acordo “o mais rápido possível”.

Eleitores e autoridades dizem que a Onda republicana é um fenômeno exclusivamente francês, ditado pela história nacional, juntamente com uma devoção digna de um culto às instituições da República, que muitos franceses acusam o Reagrupamento Nacional de querer minar.

A onda ganhou impulso antes do segundo turno das eleições, simplificando a escolha dos eleitores, quando autoridades, incluindo o primeiro-ministro Attal, pediram que os terceiros colocados no primeiro turno se retirassem, permitindo que os adversários do Reagrupamento Nacional somassem forças.

Cartazes de candidatos nas eleições parlamentares da França.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“O Reagrupamento Nacional não venceu porque as pessoas ficaram com medo”, disse Patrick Pineau, funcionário de um laboratório de exames médicos, tomando uma taça à tarde em um café no centro de Saint-Jean-d’Angély, uma subprefeitura do distrito.

Stéphane Morin, o candidato do Reagrupamento Nacional, disse ao jornal local Sud-Ouest, após a divulgação dos resultados, que os eleitores compartilharam sua decepção. “Eles esperavam uma grande mudança”, disse ele. “Eles estavam altamente motivados porque os riscos eram muito altos, e o que viram foi um monte de disparates, um assalto eleitoral.”

Por trás desta onda está uma memória coletiva do trauma nacional da ocupação nazista da França há 80 anos, que foi moldada pelo sistema educativo nacional centralizado da França e pelo que os pais e avós transmitiram às gerações mais jovens. As autoridades eleitas entrevistadas disseram que não foram apenas as memórias distantes da 2ª Guerra Mundial, mas a experiência de ter vivido sob o regime colaboracionista de Vichy que ajudaram a moldar as percepções dos eleitores nas eleições nacionais.

“Felizmente, na França temos essa memória”, disse Barusseau. “E acho que foi a memória que nos salvou. Veja, nós já conhecemos isso”, uma referência ao governo de direita radical. “Tínhamos aquele regime colaboracionista. E também, felizmente, temos uma educação pública que ainda é vigorosa. Não se pode realmente entender até ter travado uma guerra em seu próprio solo.”

Françoise Mesnard, prefeita de Saint-Jean-d’Angély, no seu escritório.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Alain Chuteau atrás do balcão em café de Saint-Jean-d’Angély, disse que votou em branco como forma de protesto.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

O moderno Reagrupamento Nacional de Le Pen negou as ligações que o fundador do partido, Jean Marie Le Pen, pai dela, mantinha com colaboradores durante a guerra. Alguns deles ajudaram-no a iniciar o antecessor imediato do Reagrupamento Nacional, a Frente Nacional, em 1972. Apesar dos esforços de Le Pen para melhorar a imagem do partido, a associação da extrema direita com a colaboração nazista não é algo que os franceses possam esquecer.

Isso se traduz em uma adesão fervorosa aos valores da atual República. A sala de reuniões caiada de branco da pequena prefeitura de Barusseau aqui contém uma única decoração, presidindo a partir de uma plataforma elevada: um busto do símbolo da República Francesa, Marianne, usando uma faixa tricolor.

Em sua prefeitura em Saint-Jean-d’Angély (6.700 habitantes), uma relíquia perfeita da Terceira República da França, no século XIX, com suas tapeçarias de tecido escuro e estampado, concordou Mesnard, que substituiria Barusseau no Parlamento caso ele estivesse ausente, doente ou incapaz de servir, concordou. A memória foi fundamental para a Onda republicana.

“Meus pais, meus avós, todos conheceram a guerra”, disse ela. “E os franceses ainda estão muito marcados por isso. Os alemães estiveram bem aqui. Então, vimos a guerra de perto. E essa memória permanece.”

“E, a propósito, a obra de Hannah Arendt, ‘A Banalidade do Mal’, é muito ensinada e apreciada”, disse Mesnard, referindo-se à cientista política germano-americana e à sua doutrina mais famosa a respeito do nazismo.

Ela tem memórias vívidas das histórias do seu avô, que era agente da polícia durante a guerra, e foi forçado pelos alemães a caçar membros da Resistência, que se recusou silenciosamente a fazer. “Deliberadamente, ele não encontrou nenhum”, disse ela.

A guerra “ainda está relativamente próxima”, disse Maurice Perrier, prefeito de direita da vizinha Loulay (760 habitantes), que também passou para o lado de Barusseau. “Algo permanece daquele período sombrio. São as memórias, as lembranças dos meus pais. Eles conversaram comigo a respeito de tudo isso. Tive muito medo de chegar a uma situação de autoritarismo”, disse. “Então, votar no Reagrupamento Nacional estava fora de questão. Estes são extremistas.”

Prefeito Bruno Drapron no seu escritório em Saintes. Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Café em Saint-Jean-d’Angély.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Até a última semana de votação, o eleitorado de tendência direitista no sudoeste da França, confrontado com a escolha entre o candidato de Le Pen e um homem de esquerda, estava permeado pela indecisão.

“As pessoas me perguntavam em quem deveriam votar”, disse Bruno Drapron, prefeito de Saintes, em seu escritório sob o imponente campanário da catedral do século XV. “Elas finalmente disseram: ‘Estamos brincando com fogo”’.

No fim, cerca de 75% dos defensores do Presidente Macron, cujo candidato desistiu da disputa para ajudar Barusseau no segundo turno, viraram para a esquerda. As duas principais cidades do distrito deram cerca de 60% dos seus votos a Barusseau.

“Por enquanto, somos um país onde as pessoas ainda vivem juntas”, disse Mathieu Ancelle, atrás do bar do Rum Runners, um café no centro de Saint-Jean-d’Angély. Ancelle votou na esquerda. “A escolha foi simples”, disse ele. “E, no fim, os eleitores mais jovens acordaram e perceberam que tinham que votar no segundo turno.”

Alguns o fizeram com relutância. Maud Trolliet, uma vendedora de uma loja de chocolates próxima, votou contra o Reagrupamento Nacional. “Aliviada, sim. Feliz, não”, disse ela.

Nas vilarejos menores, porém, onde o eleitorado estava fortemente no campo da extrema direita, ressoa o descontentamento com o resultado apertado.

Maryline Menard (direita), dona do único café em Burie.  Foto: Mauricio Lima/The New York Times
Cartaz de campanha rasgado em Villars-les-Bois. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

“Fiquei doente por causa disso”, disse Maryline Menard, 60 anos, proprietária do único café em Burie, que votou fortemente a favor do Reagrupamento Nacional. Ela era totalmente a favor da direita radical, “300 por cento”, disse ela. “Não é racismo. Eu defendo a todos. Mas temos que parar de ajudar toda essa gente que não faz nada. E há muitos estrangeiros que vêm aqui para trabalhar, enquanto os franceses estão apenas dormindo.”

Nas ruas tranquilas da pequena cidade não se via um único estrangeiro, ou qualquer outra pessoa. Mais adiante, Barusseau estava preocupado com as raízes que a extrema direita estava plantando naqueles lugares onde o serviço de ônibus, os médicos, as lojas e os cafés haviam desaparecido.

“O resultado não foi tão claro”, disse ele. “Não ouvimos as pessoas. Precisamos garantir que suas preocupações diárias sejam atendidas. Quem estiver no modo de sobrevivência vai se preocupar muito menos com seu vizinho.”

Por enquanto, porém, foi “o que o Reagrupamento Nacional representa na nossa história” que afastou os eleitores dele, disse. “É por isso que a Frente Republicana persiste.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Ciclista pela por ruas vazias em Saint-Jean-d’Angély. Foto: Mauricio Lima/The New York Times

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