Como a polícia do pensamento norte-coreana caça influências estrangeiras


Um novo relatório expõe violações dos Grupos Não Socialistas, que são encarregados de fazer valer a ideologia de Kim Jong-un sobre a sociedade

Por Michelle Ye Hee Lee e Min Joo Kim

SEUL — Lee Suk-jeong fazia um bom dinheiro como contrabandista através da fronteira entre Coreia do Norte e China, trazendo itens cobiçados nos mercados norte-coreanos clandestinos: ouro, cigarros e programas de TV, música e filmes e populares da Coreia do Sul.

Isso fazia dela alvo frequente de vigilância, e sua residência era revistada sem aviso prévio. Certa vez, Lee foi mantida em um centro de detenção por mais de um ano, afirmou a ex-contrabandista, de 49 anos, que fugiu para a Coreia do Sul em 2019.

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As pessoas que perseguiam Lee trabalhavam para uma sombria operação de vigilância que atua dentro da Coreia do Norte chamada Grupos Não Socialistas — que usam uma rede de informantes para reprimir uma ampla gama de comportamentos considerados “não socialistas” ou contrários aos princípios do país segundo o regime de Kim Jong-un.

Esta foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra o líder norte-coreano Kim Jong-un, centro, e sua filha, centro-esquerda, assistindo a jogos esportivos em 17 de fevereiro de 2023 Foto: KNCA via AP

Os operadores se valem de medo, chantagem e extorsão para ajudar Kim a manter a sociedade sob seu controle e podem ser mobilizados rapidamente para coibir atividades consideradas problemáticas, de acordo com um relatório da ONG Centro de Dados para Direitos Humanos na Coreia do Norte, com base em Seul, que foi obtido com exclusividade pelo Washington Post.

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As violações perseguidas pelos grupos incluem possuir ou consumir cultura midiática produzida na Coreia do Sul; cantar, dançar ou falar de maneira que não seja considerada norte-coreana; tentativa de defecção; ou criticar o regime. Os violadores pegos em flagrante podem ser mandados para campos de trabalho forçado ou, em casos extremos, são executados publicamente, segundo constataram os pesquisadores.

O relatório oferece um olhar raro e profundo sobre as operações internas dessa rede e salientam suas violações generalizadas contra os direitos humanos, que vão desde inspeções agressivas até abusos físicos e psicológicos. O relatório tem como base entrevistas a 32 ex-autoridades e vítimas, muitas das quais fugiram da Coreia do Norte entre 2018 e 2020, até o país fechar suas fronteiras em razão da pandemia de covid-19.

“Esse grupo esteve nas sombras, jamais foi divulgado oficialmente. (…) Tivemos de investigar a presença do grupo nas vidas cotidianas dos norte-coreanos por meio de depoimentos orais”, afirmou Su Bobae, do grupo de defesa de direitos humanos. “Por meio de depoimentos, identificamos como os Grupos Não Socialistas desempenham a função de inspetor dentro da sociedade de vigilância maior.”

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A Coreia do Norte começou a intensificar suas atividades de vigilância depois da mortífera crise de fome nos anos 90, que, estima-se, matou até 3 milhões de pessoas. Famílias sobreviveram importando itens ilegalmente da vizinha China, pavimentando o caminho para os mercados clandestinos, ou “jangmadang”, hoje centrais na economia norte-coreana.

Isso também levou a um afluxo de informação ao país, potencialmente ameaçando a sobrevivência do regime totalitário. Séries e filmes sul-coreanos mostraram que o Sul é um próspero país capitalista, em vez do país empobrecido, cheio de mendigos e criminosos retratado pela propaganda norte-coreana, disse Lee ao Washington Post.

“Ficamos estarrecidos. E nós passamos fome, trancados, escondidos em nossas casas, só maratonando, assistindo tudo”, afirmou ela. “Nós vimos a realidade e enlouquecemos. Ficamos vidrados.”

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Os Grupos Não Socialistas estiveram ativos no fim dos anos 90 e, eventualmente, se espalharam por todas as regiões, setores e comunidades locais para manter os cidadãos sob controle, afirma o relatório. Os agentes servem de seis meses a dois anos, para evitar que desenvolvam laços com o público, gerando simpatia entre operadores e cidadãos, segundo constataram os pesquisadores.

Uma tela de TV mostra uma imagem de arquivo do líder norte-coreano Kim Jong-un, à direita, e sua filha, Kim Ju-ae, sua possível sucessora Foto: Ahn Young-joon/AP

Kim, terceiro da dinastia que lidera a Coreia do Norte, chegou ao poder em dezembro de 2011, mais de uma década após a atividade do mercado clandestino começar a prosperar. Sob seu governo, pesquisadores constataram que os grupos redobraram seus esforços em reprimir a disseminação das produções sul-coreanas de mídia, que Kim qualificou como um “câncer pernicioso” que corrói a sociedade norte-coreana.

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“O regime de Kim Jong-un tenta evitar que informações de fora afetem a ideologia das pessoas. A ideologia é vista como um elemento crucial para manter o regime”, afirmou Su.

Ao contrário de seu pai e seu avô, Kim tem de lidar com os millennials de seu país, que cresceram com acesso a mercadorias e entretenimento contrabandeados — a chamada “Geração Jangmadang” — e que, em muitos casos, os inspiram a fugir do país.

Desde a década de 2010, um grande número de violações identificadas pelos Grupos Não Socialistas relacionou-se ao consumo dessas produções da mídia sul-coreana pelos millennials norte-coreanos, constatou o relatório. Autoridades também acusam seus pais, culpando-os por não disciplinar os filhos, de acordo com depoimentos de testemunhas.

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Os operadores com frequência possuem uma cota a cumprir e se esforçam para flagrar os violadores, afirmou Kim Eun-duk, ex-procurador norte-coreano que supervisionou seu trabalho.

Às vezes isso significou cortar a eletricidade de suas casas, afirmou aos pesquisadores uma ex-autoridade: “Se entramos depois de cortar a energia, eles não conseguem tirar as fitas dos aparelhos. Uma pessoa fica na porta da frente, para que ninguém saia, e outra ordena que a eletricidade seja cortada e entra na casa sem luz. Então acabou. Nós ligamos de volta a eletricidade e tiramos a fita. Então é registrado o flagrante.”

Os membros do grupo normalmente aceitam propinas — e certas vezes extorquem pessoas por mais dinheiro — em troca de permitir que os violadores saiam impunes, afirmou ele. Quem não tem o suficiente para pagar as propinas pode ser processado e punido. Os pesquisadores constataram que o grau da punição dependeu de quanto controle o regime precisou exercer sobre seu povo em momentos determinados, em vez da gravidade dos crimes.

“Mulheres foram revistadas, torturadas e espancadas. Lá (na Coreia do Norte) nós não sabemos o que são direitos humanos. Nós não temos esse conceito. Eu só aprendi esse conceito na Coreia do Sul”, disse Kim, o ex-procurador que escapou em 2019.

Lee, a ex-contrabandista que fugiu para o Sul, afirmou que os Grupos Não Socialistas normalmente miravam grandes negociantes de mercadorias clandestinas, como ela, que conseguiam pagar grandes quantias para ser libertados. “Dizem que se você se junta ao grupo por um tempo, é melhor do que ir para a Rússia (fazer dinheiro)”, afirmou ela.

A atividade não socialista — e antissocialista, mais séria e desafiadora ao regime — é onipresente na sociedade norte-coreana, afirmam fugitivos, estimando que a vasta maioria das pessoas adota comportamentos que o regime não tolera. A maioria das pessoas entrevistadas pelos pesquisadores afirmou que tal comportamento é necessário para ganhar a vida na Coreia do Norte, trocando diretamente ou vendendo itens contrabandeados para complementar seus baixos e insuficientes salários. Outros afirmam que ficaram curiosos a respeito das novidades e coisas desconhecidas que poderiam conhecer com a mídia ilegal, queriam se entreter e desejavam liberdade.

Todos os 32 fugitivos disseram aos pesquisadores que continuariam com suas atividades não socialistas mesmo após inspeções ou perseguições. “Todos que respiram na nossa sociedade fazem isso”, afirmou um fugitivo anônimo citado no relatório. “Primeiro, para ganhar a vida, segundo para comer melhor que outras pessoas e terceiro, para resolver problemas de trabalho e ser bem-sucedido. Porque você precisa de dinheiro para isso tudo.”/TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

SEUL — Lee Suk-jeong fazia um bom dinheiro como contrabandista através da fronteira entre Coreia do Norte e China, trazendo itens cobiçados nos mercados norte-coreanos clandestinos: ouro, cigarros e programas de TV, música e filmes e populares da Coreia do Sul.

Isso fazia dela alvo frequente de vigilância, e sua residência era revistada sem aviso prévio. Certa vez, Lee foi mantida em um centro de detenção por mais de um ano, afirmou a ex-contrabandista, de 49 anos, que fugiu para a Coreia do Sul em 2019.

As pessoas que perseguiam Lee trabalhavam para uma sombria operação de vigilância que atua dentro da Coreia do Norte chamada Grupos Não Socialistas — que usam uma rede de informantes para reprimir uma ampla gama de comportamentos considerados “não socialistas” ou contrários aos princípios do país segundo o regime de Kim Jong-un.

Esta foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra o líder norte-coreano Kim Jong-un, centro, e sua filha, centro-esquerda, assistindo a jogos esportivos em 17 de fevereiro de 2023 Foto: KNCA via AP

Os operadores se valem de medo, chantagem e extorsão para ajudar Kim a manter a sociedade sob seu controle e podem ser mobilizados rapidamente para coibir atividades consideradas problemáticas, de acordo com um relatório da ONG Centro de Dados para Direitos Humanos na Coreia do Norte, com base em Seul, que foi obtido com exclusividade pelo Washington Post.

As violações perseguidas pelos grupos incluem possuir ou consumir cultura midiática produzida na Coreia do Sul; cantar, dançar ou falar de maneira que não seja considerada norte-coreana; tentativa de defecção; ou criticar o regime. Os violadores pegos em flagrante podem ser mandados para campos de trabalho forçado ou, em casos extremos, são executados publicamente, segundo constataram os pesquisadores.

O relatório oferece um olhar raro e profundo sobre as operações internas dessa rede e salientam suas violações generalizadas contra os direitos humanos, que vão desde inspeções agressivas até abusos físicos e psicológicos. O relatório tem como base entrevistas a 32 ex-autoridades e vítimas, muitas das quais fugiram da Coreia do Norte entre 2018 e 2020, até o país fechar suas fronteiras em razão da pandemia de covid-19.

“Esse grupo esteve nas sombras, jamais foi divulgado oficialmente. (…) Tivemos de investigar a presença do grupo nas vidas cotidianas dos norte-coreanos por meio de depoimentos orais”, afirmou Su Bobae, do grupo de defesa de direitos humanos. “Por meio de depoimentos, identificamos como os Grupos Não Socialistas desempenham a função de inspetor dentro da sociedade de vigilância maior.”

A Coreia do Norte começou a intensificar suas atividades de vigilância depois da mortífera crise de fome nos anos 90, que, estima-se, matou até 3 milhões de pessoas. Famílias sobreviveram importando itens ilegalmente da vizinha China, pavimentando o caminho para os mercados clandestinos, ou “jangmadang”, hoje centrais na economia norte-coreana.

Isso também levou a um afluxo de informação ao país, potencialmente ameaçando a sobrevivência do regime totalitário. Séries e filmes sul-coreanos mostraram que o Sul é um próspero país capitalista, em vez do país empobrecido, cheio de mendigos e criminosos retratado pela propaganda norte-coreana, disse Lee ao Washington Post.

“Ficamos estarrecidos. E nós passamos fome, trancados, escondidos em nossas casas, só maratonando, assistindo tudo”, afirmou ela. “Nós vimos a realidade e enlouquecemos. Ficamos vidrados.”

Os Grupos Não Socialistas estiveram ativos no fim dos anos 90 e, eventualmente, se espalharam por todas as regiões, setores e comunidades locais para manter os cidadãos sob controle, afirma o relatório. Os agentes servem de seis meses a dois anos, para evitar que desenvolvam laços com o público, gerando simpatia entre operadores e cidadãos, segundo constataram os pesquisadores.

Uma tela de TV mostra uma imagem de arquivo do líder norte-coreano Kim Jong-un, à direita, e sua filha, Kim Ju-ae, sua possível sucessora Foto: Ahn Young-joon/AP

Kim, terceiro da dinastia que lidera a Coreia do Norte, chegou ao poder em dezembro de 2011, mais de uma década após a atividade do mercado clandestino começar a prosperar. Sob seu governo, pesquisadores constataram que os grupos redobraram seus esforços em reprimir a disseminação das produções sul-coreanas de mídia, que Kim qualificou como um “câncer pernicioso” que corrói a sociedade norte-coreana.

“O regime de Kim Jong-un tenta evitar que informações de fora afetem a ideologia das pessoas. A ideologia é vista como um elemento crucial para manter o regime”, afirmou Su.

Ao contrário de seu pai e seu avô, Kim tem de lidar com os millennials de seu país, que cresceram com acesso a mercadorias e entretenimento contrabandeados — a chamada “Geração Jangmadang” — e que, em muitos casos, os inspiram a fugir do país.

Desde a década de 2010, um grande número de violações identificadas pelos Grupos Não Socialistas relacionou-se ao consumo dessas produções da mídia sul-coreana pelos millennials norte-coreanos, constatou o relatório. Autoridades também acusam seus pais, culpando-os por não disciplinar os filhos, de acordo com depoimentos de testemunhas.

Os operadores com frequência possuem uma cota a cumprir e se esforçam para flagrar os violadores, afirmou Kim Eun-duk, ex-procurador norte-coreano que supervisionou seu trabalho.

Às vezes isso significou cortar a eletricidade de suas casas, afirmou aos pesquisadores uma ex-autoridade: “Se entramos depois de cortar a energia, eles não conseguem tirar as fitas dos aparelhos. Uma pessoa fica na porta da frente, para que ninguém saia, e outra ordena que a eletricidade seja cortada e entra na casa sem luz. Então acabou. Nós ligamos de volta a eletricidade e tiramos a fita. Então é registrado o flagrante.”

Os membros do grupo normalmente aceitam propinas — e certas vezes extorquem pessoas por mais dinheiro — em troca de permitir que os violadores saiam impunes, afirmou ele. Quem não tem o suficiente para pagar as propinas pode ser processado e punido. Os pesquisadores constataram que o grau da punição dependeu de quanto controle o regime precisou exercer sobre seu povo em momentos determinados, em vez da gravidade dos crimes.

“Mulheres foram revistadas, torturadas e espancadas. Lá (na Coreia do Norte) nós não sabemos o que são direitos humanos. Nós não temos esse conceito. Eu só aprendi esse conceito na Coreia do Sul”, disse Kim, o ex-procurador que escapou em 2019.

Lee, a ex-contrabandista que fugiu para o Sul, afirmou que os Grupos Não Socialistas normalmente miravam grandes negociantes de mercadorias clandestinas, como ela, que conseguiam pagar grandes quantias para ser libertados. “Dizem que se você se junta ao grupo por um tempo, é melhor do que ir para a Rússia (fazer dinheiro)”, afirmou ela.

A atividade não socialista — e antissocialista, mais séria e desafiadora ao regime — é onipresente na sociedade norte-coreana, afirmam fugitivos, estimando que a vasta maioria das pessoas adota comportamentos que o regime não tolera. A maioria das pessoas entrevistadas pelos pesquisadores afirmou que tal comportamento é necessário para ganhar a vida na Coreia do Norte, trocando diretamente ou vendendo itens contrabandeados para complementar seus baixos e insuficientes salários. Outros afirmam que ficaram curiosos a respeito das novidades e coisas desconhecidas que poderiam conhecer com a mídia ilegal, queriam se entreter e desejavam liberdade.

Todos os 32 fugitivos disseram aos pesquisadores que continuariam com suas atividades não socialistas mesmo após inspeções ou perseguições. “Todos que respiram na nossa sociedade fazem isso”, afirmou um fugitivo anônimo citado no relatório. “Primeiro, para ganhar a vida, segundo para comer melhor que outras pessoas e terceiro, para resolver problemas de trabalho e ser bem-sucedido. Porque você precisa de dinheiro para isso tudo.”/TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

SEUL — Lee Suk-jeong fazia um bom dinheiro como contrabandista através da fronteira entre Coreia do Norte e China, trazendo itens cobiçados nos mercados norte-coreanos clandestinos: ouro, cigarros e programas de TV, música e filmes e populares da Coreia do Sul.

Isso fazia dela alvo frequente de vigilância, e sua residência era revistada sem aviso prévio. Certa vez, Lee foi mantida em um centro de detenção por mais de um ano, afirmou a ex-contrabandista, de 49 anos, que fugiu para a Coreia do Sul em 2019.

As pessoas que perseguiam Lee trabalhavam para uma sombria operação de vigilância que atua dentro da Coreia do Norte chamada Grupos Não Socialistas — que usam uma rede de informantes para reprimir uma ampla gama de comportamentos considerados “não socialistas” ou contrários aos princípios do país segundo o regime de Kim Jong-un.

Esta foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra o líder norte-coreano Kim Jong-un, centro, e sua filha, centro-esquerda, assistindo a jogos esportivos em 17 de fevereiro de 2023 Foto: KNCA via AP

Os operadores se valem de medo, chantagem e extorsão para ajudar Kim a manter a sociedade sob seu controle e podem ser mobilizados rapidamente para coibir atividades consideradas problemáticas, de acordo com um relatório da ONG Centro de Dados para Direitos Humanos na Coreia do Norte, com base em Seul, que foi obtido com exclusividade pelo Washington Post.

As violações perseguidas pelos grupos incluem possuir ou consumir cultura midiática produzida na Coreia do Sul; cantar, dançar ou falar de maneira que não seja considerada norte-coreana; tentativa de defecção; ou criticar o regime. Os violadores pegos em flagrante podem ser mandados para campos de trabalho forçado ou, em casos extremos, são executados publicamente, segundo constataram os pesquisadores.

O relatório oferece um olhar raro e profundo sobre as operações internas dessa rede e salientam suas violações generalizadas contra os direitos humanos, que vão desde inspeções agressivas até abusos físicos e psicológicos. O relatório tem como base entrevistas a 32 ex-autoridades e vítimas, muitas das quais fugiram da Coreia do Norte entre 2018 e 2020, até o país fechar suas fronteiras em razão da pandemia de covid-19.

“Esse grupo esteve nas sombras, jamais foi divulgado oficialmente. (…) Tivemos de investigar a presença do grupo nas vidas cotidianas dos norte-coreanos por meio de depoimentos orais”, afirmou Su Bobae, do grupo de defesa de direitos humanos. “Por meio de depoimentos, identificamos como os Grupos Não Socialistas desempenham a função de inspetor dentro da sociedade de vigilância maior.”

A Coreia do Norte começou a intensificar suas atividades de vigilância depois da mortífera crise de fome nos anos 90, que, estima-se, matou até 3 milhões de pessoas. Famílias sobreviveram importando itens ilegalmente da vizinha China, pavimentando o caminho para os mercados clandestinos, ou “jangmadang”, hoje centrais na economia norte-coreana.

Isso também levou a um afluxo de informação ao país, potencialmente ameaçando a sobrevivência do regime totalitário. Séries e filmes sul-coreanos mostraram que o Sul é um próspero país capitalista, em vez do país empobrecido, cheio de mendigos e criminosos retratado pela propaganda norte-coreana, disse Lee ao Washington Post.

“Ficamos estarrecidos. E nós passamos fome, trancados, escondidos em nossas casas, só maratonando, assistindo tudo”, afirmou ela. “Nós vimos a realidade e enlouquecemos. Ficamos vidrados.”

Os Grupos Não Socialistas estiveram ativos no fim dos anos 90 e, eventualmente, se espalharam por todas as regiões, setores e comunidades locais para manter os cidadãos sob controle, afirma o relatório. Os agentes servem de seis meses a dois anos, para evitar que desenvolvam laços com o público, gerando simpatia entre operadores e cidadãos, segundo constataram os pesquisadores.

Uma tela de TV mostra uma imagem de arquivo do líder norte-coreano Kim Jong-un, à direita, e sua filha, Kim Ju-ae, sua possível sucessora Foto: Ahn Young-joon/AP

Kim, terceiro da dinastia que lidera a Coreia do Norte, chegou ao poder em dezembro de 2011, mais de uma década após a atividade do mercado clandestino começar a prosperar. Sob seu governo, pesquisadores constataram que os grupos redobraram seus esforços em reprimir a disseminação das produções sul-coreanas de mídia, que Kim qualificou como um “câncer pernicioso” que corrói a sociedade norte-coreana.

“O regime de Kim Jong-un tenta evitar que informações de fora afetem a ideologia das pessoas. A ideologia é vista como um elemento crucial para manter o regime”, afirmou Su.

Ao contrário de seu pai e seu avô, Kim tem de lidar com os millennials de seu país, que cresceram com acesso a mercadorias e entretenimento contrabandeados — a chamada “Geração Jangmadang” — e que, em muitos casos, os inspiram a fugir do país.

Desde a década de 2010, um grande número de violações identificadas pelos Grupos Não Socialistas relacionou-se ao consumo dessas produções da mídia sul-coreana pelos millennials norte-coreanos, constatou o relatório. Autoridades também acusam seus pais, culpando-os por não disciplinar os filhos, de acordo com depoimentos de testemunhas.

Os operadores com frequência possuem uma cota a cumprir e se esforçam para flagrar os violadores, afirmou Kim Eun-duk, ex-procurador norte-coreano que supervisionou seu trabalho.

Às vezes isso significou cortar a eletricidade de suas casas, afirmou aos pesquisadores uma ex-autoridade: “Se entramos depois de cortar a energia, eles não conseguem tirar as fitas dos aparelhos. Uma pessoa fica na porta da frente, para que ninguém saia, e outra ordena que a eletricidade seja cortada e entra na casa sem luz. Então acabou. Nós ligamos de volta a eletricidade e tiramos a fita. Então é registrado o flagrante.”

Os membros do grupo normalmente aceitam propinas — e certas vezes extorquem pessoas por mais dinheiro — em troca de permitir que os violadores saiam impunes, afirmou ele. Quem não tem o suficiente para pagar as propinas pode ser processado e punido. Os pesquisadores constataram que o grau da punição dependeu de quanto controle o regime precisou exercer sobre seu povo em momentos determinados, em vez da gravidade dos crimes.

“Mulheres foram revistadas, torturadas e espancadas. Lá (na Coreia do Norte) nós não sabemos o que são direitos humanos. Nós não temos esse conceito. Eu só aprendi esse conceito na Coreia do Sul”, disse Kim, o ex-procurador que escapou em 2019.

Lee, a ex-contrabandista que fugiu para o Sul, afirmou que os Grupos Não Socialistas normalmente miravam grandes negociantes de mercadorias clandestinas, como ela, que conseguiam pagar grandes quantias para ser libertados. “Dizem que se você se junta ao grupo por um tempo, é melhor do que ir para a Rússia (fazer dinheiro)”, afirmou ela.

A atividade não socialista — e antissocialista, mais séria e desafiadora ao regime — é onipresente na sociedade norte-coreana, afirmam fugitivos, estimando que a vasta maioria das pessoas adota comportamentos que o regime não tolera. A maioria das pessoas entrevistadas pelos pesquisadores afirmou que tal comportamento é necessário para ganhar a vida na Coreia do Norte, trocando diretamente ou vendendo itens contrabandeados para complementar seus baixos e insuficientes salários. Outros afirmam que ficaram curiosos a respeito das novidades e coisas desconhecidas que poderiam conhecer com a mídia ilegal, queriam se entreter e desejavam liberdade.

Todos os 32 fugitivos disseram aos pesquisadores que continuariam com suas atividades não socialistas mesmo após inspeções ou perseguições. “Todos que respiram na nossa sociedade fazem isso”, afirmou um fugitivo anônimo citado no relatório. “Primeiro, para ganhar a vida, segundo para comer melhor que outras pessoas e terceiro, para resolver problemas de trabalho e ser bem-sucedido. Porque você precisa de dinheiro para isso tudo.”/TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

SEUL — Lee Suk-jeong fazia um bom dinheiro como contrabandista através da fronteira entre Coreia do Norte e China, trazendo itens cobiçados nos mercados norte-coreanos clandestinos: ouro, cigarros e programas de TV, música e filmes e populares da Coreia do Sul.

Isso fazia dela alvo frequente de vigilância, e sua residência era revistada sem aviso prévio. Certa vez, Lee foi mantida em um centro de detenção por mais de um ano, afirmou a ex-contrabandista, de 49 anos, que fugiu para a Coreia do Sul em 2019.

As pessoas que perseguiam Lee trabalhavam para uma sombria operação de vigilância que atua dentro da Coreia do Norte chamada Grupos Não Socialistas — que usam uma rede de informantes para reprimir uma ampla gama de comportamentos considerados “não socialistas” ou contrários aos princípios do país segundo o regime de Kim Jong-un.

Esta foto fornecida pelo governo norte-coreano mostra o líder norte-coreano Kim Jong-un, centro, e sua filha, centro-esquerda, assistindo a jogos esportivos em 17 de fevereiro de 2023 Foto: KNCA via AP

Os operadores se valem de medo, chantagem e extorsão para ajudar Kim a manter a sociedade sob seu controle e podem ser mobilizados rapidamente para coibir atividades consideradas problemáticas, de acordo com um relatório da ONG Centro de Dados para Direitos Humanos na Coreia do Norte, com base em Seul, que foi obtido com exclusividade pelo Washington Post.

As violações perseguidas pelos grupos incluem possuir ou consumir cultura midiática produzida na Coreia do Sul; cantar, dançar ou falar de maneira que não seja considerada norte-coreana; tentativa de defecção; ou criticar o regime. Os violadores pegos em flagrante podem ser mandados para campos de trabalho forçado ou, em casos extremos, são executados publicamente, segundo constataram os pesquisadores.

O relatório oferece um olhar raro e profundo sobre as operações internas dessa rede e salientam suas violações generalizadas contra os direitos humanos, que vão desde inspeções agressivas até abusos físicos e psicológicos. O relatório tem como base entrevistas a 32 ex-autoridades e vítimas, muitas das quais fugiram da Coreia do Norte entre 2018 e 2020, até o país fechar suas fronteiras em razão da pandemia de covid-19.

“Esse grupo esteve nas sombras, jamais foi divulgado oficialmente. (…) Tivemos de investigar a presença do grupo nas vidas cotidianas dos norte-coreanos por meio de depoimentos orais”, afirmou Su Bobae, do grupo de defesa de direitos humanos. “Por meio de depoimentos, identificamos como os Grupos Não Socialistas desempenham a função de inspetor dentro da sociedade de vigilância maior.”

A Coreia do Norte começou a intensificar suas atividades de vigilância depois da mortífera crise de fome nos anos 90, que, estima-se, matou até 3 milhões de pessoas. Famílias sobreviveram importando itens ilegalmente da vizinha China, pavimentando o caminho para os mercados clandestinos, ou “jangmadang”, hoje centrais na economia norte-coreana.

Isso também levou a um afluxo de informação ao país, potencialmente ameaçando a sobrevivência do regime totalitário. Séries e filmes sul-coreanos mostraram que o Sul é um próspero país capitalista, em vez do país empobrecido, cheio de mendigos e criminosos retratado pela propaganda norte-coreana, disse Lee ao Washington Post.

“Ficamos estarrecidos. E nós passamos fome, trancados, escondidos em nossas casas, só maratonando, assistindo tudo”, afirmou ela. “Nós vimos a realidade e enlouquecemos. Ficamos vidrados.”

Os Grupos Não Socialistas estiveram ativos no fim dos anos 90 e, eventualmente, se espalharam por todas as regiões, setores e comunidades locais para manter os cidadãos sob controle, afirma o relatório. Os agentes servem de seis meses a dois anos, para evitar que desenvolvam laços com o público, gerando simpatia entre operadores e cidadãos, segundo constataram os pesquisadores.

Uma tela de TV mostra uma imagem de arquivo do líder norte-coreano Kim Jong-un, à direita, e sua filha, Kim Ju-ae, sua possível sucessora Foto: Ahn Young-joon/AP

Kim, terceiro da dinastia que lidera a Coreia do Norte, chegou ao poder em dezembro de 2011, mais de uma década após a atividade do mercado clandestino começar a prosperar. Sob seu governo, pesquisadores constataram que os grupos redobraram seus esforços em reprimir a disseminação das produções sul-coreanas de mídia, que Kim qualificou como um “câncer pernicioso” que corrói a sociedade norte-coreana.

“O regime de Kim Jong-un tenta evitar que informações de fora afetem a ideologia das pessoas. A ideologia é vista como um elemento crucial para manter o regime”, afirmou Su.

Ao contrário de seu pai e seu avô, Kim tem de lidar com os millennials de seu país, que cresceram com acesso a mercadorias e entretenimento contrabandeados — a chamada “Geração Jangmadang” — e que, em muitos casos, os inspiram a fugir do país.

Desde a década de 2010, um grande número de violações identificadas pelos Grupos Não Socialistas relacionou-se ao consumo dessas produções da mídia sul-coreana pelos millennials norte-coreanos, constatou o relatório. Autoridades também acusam seus pais, culpando-os por não disciplinar os filhos, de acordo com depoimentos de testemunhas.

Os operadores com frequência possuem uma cota a cumprir e se esforçam para flagrar os violadores, afirmou Kim Eun-duk, ex-procurador norte-coreano que supervisionou seu trabalho.

Às vezes isso significou cortar a eletricidade de suas casas, afirmou aos pesquisadores uma ex-autoridade: “Se entramos depois de cortar a energia, eles não conseguem tirar as fitas dos aparelhos. Uma pessoa fica na porta da frente, para que ninguém saia, e outra ordena que a eletricidade seja cortada e entra na casa sem luz. Então acabou. Nós ligamos de volta a eletricidade e tiramos a fita. Então é registrado o flagrante.”

Os membros do grupo normalmente aceitam propinas — e certas vezes extorquem pessoas por mais dinheiro — em troca de permitir que os violadores saiam impunes, afirmou ele. Quem não tem o suficiente para pagar as propinas pode ser processado e punido. Os pesquisadores constataram que o grau da punição dependeu de quanto controle o regime precisou exercer sobre seu povo em momentos determinados, em vez da gravidade dos crimes.

“Mulheres foram revistadas, torturadas e espancadas. Lá (na Coreia do Norte) nós não sabemos o que são direitos humanos. Nós não temos esse conceito. Eu só aprendi esse conceito na Coreia do Sul”, disse Kim, o ex-procurador que escapou em 2019.

Lee, a ex-contrabandista que fugiu para o Sul, afirmou que os Grupos Não Socialistas normalmente miravam grandes negociantes de mercadorias clandestinas, como ela, que conseguiam pagar grandes quantias para ser libertados. “Dizem que se você se junta ao grupo por um tempo, é melhor do que ir para a Rússia (fazer dinheiro)”, afirmou ela.

A atividade não socialista — e antissocialista, mais séria e desafiadora ao regime — é onipresente na sociedade norte-coreana, afirmam fugitivos, estimando que a vasta maioria das pessoas adota comportamentos que o regime não tolera. A maioria das pessoas entrevistadas pelos pesquisadores afirmou que tal comportamento é necessário para ganhar a vida na Coreia do Norte, trocando diretamente ou vendendo itens contrabandeados para complementar seus baixos e insuficientes salários. Outros afirmam que ficaram curiosos a respeito das novidades e coisas desconhecidas que poderiam conhecer com a mídia ilegal, queriam se entreter e desejavam liberdade.

Todos os 32 fugitivos disseram aos pesquisadores que continuariam com suas atividades não socialistas mesmo após inspeções ou perseguições. “Todos que respiram na nossa sociedade fazem isso”, afirmou um fugitivo anônimo citado no relatório. “Primeiro, para ganhar a vida, segundo para comer melhor que outras pessoas e terceiro, para resolver problemas de trabalho e ser bem-sucedido. Porque você precisa de dinheiro para isso tudo.”/TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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