A Rússia tem apostado em uma nova estratégia de ataques contra a Ucrânia em um momento desfavorável para Kiev no campo de batalha e com a ajuda econômica americana travada em disputas internas no Congresso. Em meio a um inverno rigoroso no Leste Europeu, a Rússia aumentou ataques contra a infraestrutura civil ucraniana. Esse movimento ampliou a angústia da população ucraniana com a guerra, que completa dois anos neste sábado, 24.
A onda de ataques começou ainda no ano passado. No dia 29 de dezembro, as forças russas conduziram a maior série de bombardeios com mísseis e drones contra grandes cidades desde o início da invasão. Os ucranianos relataram que as forças de Moscou lançaram 36 drones Shahed e 120 mísseis de vários tipos e tamanhos em várias cidades ucranianas como Kiev, Kharkiv, Lviv e Odessa. Os ataques no final do ano deixaram mais de 30 mortos e 120 feridos.
Especialistas entrevistados pelo Estadão destacam que o objetivo da Rússia é enfraquecer o apoio do público ucraniano à guerra e levar Kiev para a mesa de negociação.
“A Rússia espera levar a Ucrânia a rendição com este tipo de ataque”, avalia Raphael Cohen, analista especializado em assuntos políticos e militares, da Rand Corporation, think tank americano com base em Washington. Cohen aponta que a estratégia russa, de combinar diferentes tipos de mísseis e bombas em uma ofensiva militar, já foi realizada por outros atores em diversos momentos da história, como na 2ª Guerra Mundial e na Guerra do Vietnã.
Moscou também quer testar o aparato de defesa ucraniano, em um contexto de redução no fornecimento de armas necessárias para Kiev se defender dos ataques russos. “O ataque lançado pelas forças russas no dia 29 de dezembro parece ser o reflexo de vários meses de experimentação com combinações diferentes de drones e mísseis para testar as defesas aéreas ucranianas”, segundo um relatório do Instituto para o Estudo da Guerra, um think tank americano.
Estratégia russa
Os ataques russos estão sendo feitos com bombas planadoras, menos sofisticadas, baratas e difíceis de interceptar, mísseis balísticos de curto alcance e drones como estratégia para a destruição de infraestrutura civil e industrial ucraniana. O aparato militar é de curto alcance, fica pouco tempo no ar e passa pelas defesas ucranianas.
A combinação russa de bombas, mísseis e drones expôs a clara vulnerabilidade do sistema de defesa antiaéreo ucraniano. A falta de aparato de defesa já foi reconhecida por oficiais ucranianos. “Está claro que há uma escassez de mísseis guiados antiaéreos, ninguém esconde isso”, disse o porta-voz da Força Aérea Ucraniana, Yuri Ignat, em entrevista nos primeiros dias de janeiro.
O relatório do Instituto para o Estudo da Guerra ressalta o uso dos drones iranianos Shahed e dos mísseis balísticos russos Kinzhal e Iskander que viajam em alta velocidade, ficam pouco tempo no ar e podem se tornar imunes a guerra eletrônica que poderia interferir na orientação do GPS militar porque transportam sistemas de orientação inercial que navegam por cálculo morto.
“Os russos usaram os drones Shahed para contornar as defesas ucranianas e utilizaram mísseis balísticos para infligir danos máximos aos alvos pretendidos. As forças ucranianas notavelmente não interceptaram nenhum dos mísseis balísticos que as forças russas lançaram no dia 29 de dezembro”, completa o relatório.
A nova onda de ataques de Moscou reforça o cálculo de analistas de que a Rússia armazenou uma grande quantidade de mísseis para usar em sua nova campanha de ataques de inverno. Moscou também aumentou a sua produção de mísseis como parte de uma transição para que a economia do país se tornasse uma economia de guerra.
A agência de notícias estatal TASS apontou em janeiro que a Rússia iria produzir um novo tipo de bomba planadora. A Rússia também anunciou um investimento de US$ 7,7 bilhões para sua produção doméstica de drones. O vice-primeiro-ministro da Rússia, Andrei Belousov, apontou que o novo montante irá triplicar a produção doméstica de drones até 2030.
A economia russa se mobilizou para a guerra, opina Cohen. “Eles conseguem continuar com esses ataques por muito tempo”.
Ataques no inverno
Ataques russos na época mais fria do ano já ocorreram anteriormente. No inverno passado, Moscou atacou a infraestrutura energética ucraniana com o intuito de levar Kiev a uma possível rendição. Apesar de inúmeros momentos em que os ucranianos ficaram sem energia, isso não aconteceu.
A estratégia deste ano parece ser mais abrangente, com alvos militares e industriais, além de civis, como shoppings, hospitais e edifícios que levaram a dezenas de mortes. Especialistas entrevistados pela reportagem concordam que a Ucrânia não vai se render e o apoio da população ucraniana à defesa do território também não será reduzido.
A Rússia intensificou os ataques porque é uma tentativa de enfraquecer o apoio popular ucraniano à continuidade da guerra, destaca Vitelio Brustolin, pesquisador da Universidade de Harvard e professor da Universidade Federal Fluminense (UFF). “A estratégia não funcionou no inverno passado e não vai funcionar agora”.
Para Constanze Stelzenmüller, analista política alemã e diretora do Centro de Estados Unidos e Europa do Instituto Brookings, think tank americana com enfoque em política externa, os ataques russos tiveram o efeito oposto do esperado por Moscou, aumentando o nível de apoio ucraniano. “A estratégia de ataques da Rússia dá um fôlego maior para a sociedade ucraniana e relembra os países ocidentais de porque eles estão apoiando Kiev”.
Saiba mais
O que a Ucrânia precisa
O aparato de defesa ucraniano depende da contribuição de parceiros do Ocidente. Sem os repasses, a capacidade de Kiev de se defender deve diminuir consideravelmente.
“Kiev precisa de munições, defesas anti-drones e anti-mísseis”, avalia Constanze Stelzenmüller. Segundo a analista, o Ocidente tem sido lento em seu envio de ajuda econômica e militar a Ucrânia.
Cohen, da Rand Corporation, destaca a necessidade de enviar mais interceptadores para Kiev. “Isso é uma questão de capacidade industrial do Ocidente, de força de vontade coletiva para enviar o que a Ucrânia necessita”, aponta o especialista.
Já Brustolin, pesquisador da Universidade de Harvard, aponta que a Ucrânia precisa melhorar os seus sistemas de guerra eletrônica. Com uma melhora neste sistema, é possível bloquear o GPS russo e prevenir mais ataques.
De acordo com uma reportagem publicada pela Associated Press (AP) isso já está acontecendo. Soldados ucranianos estão interceptando comunicações inimigas, aprendendo códigos e salvando vidas. Com o país em uma posição defensiva e falta de munição, as forças de Kiev estão atirando somente quando identificam alvos precisos, fazendo com que melhorias na vigilância e interceptação se tornem mais criticas.
Dificuldades ucranianas
A dificuldade ucraniana em angariar o mesmo tipo de apoio de antes passa por disputas travadas em Washington e Bruxelas. No começo de fevereiro, após dificuldades impostas pelo primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán, que é considerado um aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, a União Europeia (UE) conseguiu aprovar um pacote de ajuda de 50 bilhões de euros para Kiev.
Em Washington, a situação é diferente. Apesar do apoio do governo Biden desde o início da guerra, com suporte bipartidário para a aprovação dos pacotes econômicos, uma parcela do Partido Republicano, que é mais próxima do ex-presidente Donald Trump, vem questionando as cifras enviadas a Kiev. Com a Câmara dos Deputados sob controle republicano e o Senado com maioria democrata, os políticos americanos ainda não conseguiram chegar a um acordo para a aprovação de um pacote econômico.
Trump, que deve ser o candidato do partido nas eleições americanas, já afirmou que poderia cortar o apoio americano à Ucrânia. O republicano já elogiou Putin publicamente, e destacou que poderia resolver a guerra entre Kiev e Moscou “em 24 horas”.
“Nos EUA, a direita MAGA (Make America Great Again, slogan de campanha de Donald Trump) está tentando impedir o apoio a Kiev, mas não podemos deixar a Ucrânia perder. Acredito que não o faremos”, completa Constanze Stelzenmüller.