Agora em seu terceiro ano, a invasão russa à Ucrânia continua a reverberar por toda América Latina e Caribe (ALC), região que permanece em grande medida escanteada geopoliticamente em relação à guerra. Enquanto nações europeias ponderam sobre seus próximos passos em relação ao conflito, os objetivos estratégicos de Moscou no Hemisfério Ocidental seguem tão claros quanto sempre foram: garantir a continuidade da posição de “neutralidade” e “não alinhamento ativo”, conforme definida variadamente, da região.
Na doutrina estratégica da Rússia, o Hemisfério Ocidental é um palco a partir do qual Moscou pode constituir ameaças estratégicas para os EUA, quase da mesma forma que Washington e a Otan ameaçam estrategicamente os russos na Europa Oriental e na Eurásia. Como um relógio, as agressões russas na Europa e na Eurásia são frequentemente precedidas por importantes visitas diplomáticas e ocasionais escaladas militares na ALC, como quando Moscou enviou bombardeiros com capacidade nuclear à Venezuela para exercícios em 2008 (antes de invadir a Geórgia), em 2013 (antes de invadir a Península da Crimeia) e em 2018 (depois de envenenar o ex-espião russo Sergei Skripal no Reino Unido).
Ainda que tenham sido bem-sucedidos em garantir o apoio europeu à Ucrânia, os EUA encontraram uma resistência mais forte no Hemisfério Ocidental. Talvez no melhor exemplo de apoio aberto à Ucrânia na região, o acordo de vida curta do Equador para vender antigos equipamentos soviéticos em troca de um pacote de ajuda de US$ 200 milhões foi aniquilado em questão de semanas por uma campanha de pressão da Rússia, que cortou importações de banana avaliadas em US$ 800 milhões anualmente e inculcou temores de que essas ações poderiam atrelar a região a um conflito mais amplo.
A tradicional posição latino-americana de não intervenção instou governos regionais a adotarem posições de “neutralidade” e “não alinhamento” em relação à guerra na Ucrânia — que atendem às esperanças russas de garantir que uma das regiões mais democráticas do mundo permaneça marginal em seu apoio aos valores da democracia e da soberania. É verdade que muitos países latino-americanos e caribenhos votaram a favor de resoluções nas Nações Unidas condenando a invasão russa — mas a maioria não passou disso.
Alguns líderes também adotaram ações que parecem contrastar com seus votos na ONU — como o brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que atribuiu culpa à Ucrânia pela agressão russa, ou o mexicano Andrés Manuel López Obrador, que causou apreensão ao convidar soldados russos para marchar na parada do Dia da Independência do México, em setembro.
Antes da invasão russa, Moscou usava frequentes envolvimentos diplomáticos no Hemisfério Ocidental para mitigar seu isolamento. Dias antes da agressão não provocada, visitas do então vice-primeiro-ministro russo, Iuri Borisov, tiveram como foco colaborações militares com seus aliados autoritários Cuba e Venezuela. A diplomacia pareceu estabelecer os fundamentos do apoio explícito desses países, mas tão importante quanto, também uma reticência para envolver-se entre outros. Autoridades russas como o ministro de Relações Exteriores Sergei Lavrov frequentaram várias capitais desde a invasão, incluindo Brasília.
Pontos de pressão econômica
A Rússia também conseguiu desarmar parcialmente as sanções do Ocidente apelando para as maiores economias latino-americana enquanto fontes contínuas de divisas. Em dezembro, a Rússia exportou a maior quantidade de petróleo desde o início da guerra para países como China, Índia e Brasil — de fato, o Brasil aumentou suas compras ao longo de 2023 e se tornou o maior comprador global de diesel russo. Vários países na região, especialmente Argentina e Brasil, continuam importantes mercados de exportação para os fertilizantes russos, enquanto Colômbia, Equador, México e Peru seguem dependentes em menor medida.
O capital político da Rússia, conquistado por meio de envolvimento diplomático e nomeações de embaixadores russos experientes em todos os postos na região, demonstra a importância que o Kremlin dá aos vizinhos mais próximos dos EUA — e um nível de interesse que, em comparação, os americanos dificilmente demonstram. O ministro de Relações Exteriores russo, Sergei Lavrov, acaba de concluir uma visita à ALC preenchendo sua viagem com outra parada no Brasil para a reunião de chanceleres do G-20 — foi sua segunda visita ao país em menos de um ano.
Na visita de 2023, Lavrov agradeceu o Brasil por suas declarações sobre a suposta culpabilidade da Ucrânia pela guerra enfatizando os “enfoques similares” dos dois países em relação ao conflito e o desejo mútuo de construir “uma ordem mundial (…) mais democrática”. Lula até expressou seu desejo de receber o presidente russo, Vladimir Putin, na Cúpula do G-20, em novembro, apesar do mandado de prisão pendente contra ele emitido pelo Tribunal Penal Internacional. Lula também comparecerá animadamente à cúpula anual do Brics, em Moscou, quando Putin organizá-la em outubro deste ano.
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Marcando uma acentuada divergência em relação aos seus homólogos em Brasília, Bogotá e na Cidade do México, é importante notar a intenção do presidente argentino, Javier Milei, de organizar uma cúpula dos países da ALC que apoiam a Ucrânia e rejeitam a agressão russa. Resta ver quem realmente comparecerá à reunião planejada.
A presença das redes sociais
A Rússia buscou solidificar a posição de não alinhamento da região em relação à Ucrânia e fomentar o apoio regional a um mundo multipolar mais justo que suplante a hegemonia dos EUA. Impulsionando plataformas de redes sociais e meios de comunicação tradicionais — a conta em espanhol de sua agência de notícias RT na rede social X tem atualmente 3,5 milhões de seguidores — a Rússia busca justificar sua agressão como uma resposta natural ao que Moscou considera uma intervenção do Ocidente. Imediatamente após a invasão russa, hashtags referindo-se à necessidade de “abolir a Otan” popularizaram-se regionalmente, incluindo em grandes países não pertencentes à Otan, como Argentina e Brasil, e na Colômbia, o único parceiro global da Otan na região.
O apoio por posições de não alinhamento e até contrárias à Otan é antigo na América Latina. Mas a guerra na Ucrânia ocasionou uma explosão de desinformação que busca desacreditar os EUA e seus aliados. O baixo custo das campanhas de desinformação e a facilidade de sua disseminação pelas plataformas permitem à Rússia normalizar e amplificar o alcance da retórica anti-Ocidente e de teorias conspiratórias extremistas sobre a guerra na Ucrânia. Por exemplo, campanhas de desinformação que seguem os padrões da desinformação russa têm acusado Kiev de fazer atores se passar por mortos, argumentando que os EUA e a Otan “planejaram a guerra na Ucrânia” e mais recentemente sugerindo que a Ucrânia tem vendido armas para o Hamas.
Ainda que seja difícil aferir o nível de influência que exercem sobre os numerosos usuários de redes sociais, essas campanhas de desinformação semeiam ceticismo e ofuscam a claridade de princípios do direito internacional como soberania e integridade territorial, violados pela invasão russa. Conforme o conflito Rússia-Ucrânia entra em seu terceiro ano e um período de guerra de atrito convencional se inicia, a Rússia, com poucas exceções, tem América Latina e Caribe exatamente onde deseja.
Neste momento, os governos de Cuba, Nicarágua e Venezuela estão do lado da Rússia tanto retoricamente quanto em relações econômicas continuadas. Enquanto isso, a maioria dos demais países da região preferiria discutir outros desafios globais e percebe o foco incessante do Ocidente sobre a Ucrânia como egoísta e hipócrita. Resultou que uma das regiões mais democráticas do mundo decidiu não se esforçar para apoiar a Ucrânia e seus valores comuns. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO