Como a Trumpificação da política americana afeta todos os partidos e pessoas


Não importa quem vencerá em novembro: Donald Trump já redefiniu as agendas de ambos os partidos

Por The Economist

A escolha que os Estados Unidos enfrentarão em menos de um mês em suas eleições não será feita por eleitores avaliando políticas antagônicas. Os planos de Kamala Harris carecem de detalhes; os de Donald Trump às vezes estão desvinculados da realidade – e, de um jeito ou de outro, as divisões culturais motivam os eleitores muito mais do que a política tributária.

Ainda assim, a escolha será extremamente importante para os Estados Unidos e o resto do mundo. Esse aspecto da corrida presidencial vem recebendo menos atenção do que as fantasias sobre o que os imigrantes haitianos andam comendo em Ohio. Quando deixamos de fora assuntos em que o contraste entre os dois candidatos é gritante, mas que não têm relação direta com as políticas públicas – como o caráter dos candidatos e o que a eleição significaria para as instituições ou até mesmo para a democracia americana –, o resultado é surpreendente.

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Seja quem for que chegue aos 270 votos do colégio eleitoral em 5 de novembro, as ideias de Trump vencerão. Foi ele, e não Kamala, quem definiu os termos desta disputa. A política americana foi completamente “trumpificada”.

Tomemos, por exemplo, a plataforma doméstica de Kamala. Sua política de imigração consiste em adotar a proposta de reforma mais conservadora deste século, endossada por ambos os partidos. Entre suas disposições se encontra o encerramento dos pedidos de asilo quando o fluxo de migrantes irregulares estiver alto. Sua política comercial envolve manter, ainda que de forma modificada, a maioria das tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato.

O candidato presidencial republicano, o ex-presidente Donald Trump, participa de um comício em outubro, em Detroit: ele dita os rumos da política americana Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP
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Com relação aos impostos, Kamala manteria boa parte dos cortes que Trump assinou em 2017 (aumentando as taxas apenas para quem ganha mais de US$ 400.000). Quanto à energia, ela se converteu ao fracking e integrou um governo que viu os Estados Unidos bombearem mais petróleo e gás do que nunca. Como os americanos estão muito divididos e Trump é uma figura muito polarizadora, Kamala conseguiu tomar emprestadas partes da agenda do primeiro mandato de Trump sem que a maioria das pessoas percebesse.

Essa análise das políticas públicas é reveladora dos movimentos políticos no sentido mais amplo. Trump foi quem primeiro entrou no território dos democratas, seduzindo os sindicatos e descartando os planos republicanos de reduzir os gastos públicos com aposentadorias e assistência médica. Como a eleição será disputada em seis ou sete Estados-pêndulos, todos eles com alguns pontos porcentuais a mais de republicanos do que a média nacional em 2020, a adoção silenciosa de posições mais trumpistas pode ajudar a vitória de Kamala. No entanto, o resultado é que um candidato que perdeu a última eleição, cujo partido foi derrotado nas eleições de meio de mandato de 2018 – um candidato que nunca ganhou o voto popular e provavelmente nunca ganhará – refez a política americana à sua imagem e semelhança.

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O mesmo ocorre com a política externa. Os candidatos têm abordagens diferentes: uma se baseia em valores e alianças; o outro, em perguntar o que o mundo pode oferecer aos Estados Unidos. Se Trump vencer, a especulação nervosa sobre o compromisso dos Estados Unidos com a Otan voltará; com Kamala, não haverá dúvidas.

No entanto, há uma surpreendente sobreposição. Trump adotou uma abordagem mais conflituosa em relação à China do que qualquer outro presidente, mesmo que suas políticas tenham sido, na prática, menos assustadoras do que pareciam.

O governo do qual Kamala faz parte tem sido menos antagônico verbalmente, mas mais duro na prática, proibindo as exportações de tecnologia para a China e impondo enormes tarifas sobre as importações de veículos elétricos chineses. Quanto ao Oriente Médio, Kamala não permitiu que Trump a ultrapassasse pela direita, apesar da pressão do partido Democrata para cortar o fornecimento de armas a Israel. Ela também não parece estar com pressa para reativar o acordo com o Irã que Trump rasgou: nesta semana, ela chamou o regime islâmico de o maior adversário dos Estados Unidos. Também neste caso Trump estabeleceu os termos.

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O apoio à Ucrânia é onde a diferença parece ser maior. Kamala fez parte de uma administração que liderou o esforço ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa. Ela continuaria a fornecer armas e dinheiro à Ucrânia, desde que o Congresso permitisse. A política de Trump é extraordinariamente vaga: ele diz apenas que a guerra não teria eclodido sob seu mandato e que ele a encerrará de imediato. Ele não explica como – e sua recusa em dizer que lado que gostaria de ver vitorioso aumenta os temores de que ele forçaria a Ucrânia a aceitar os termos da Rússia. Mas não é certeza que haverá uma traição tão catastrófica. Até mesmo Trump teme que deixar os tanques russos invadirem ainda mais a Ucrânia faria com que ele parecesse fraco.

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Conhecido como 'Nostradamus das eleições americanas', o historiador Allan Lichtman faz sua aposta para o resultado

Uma escolha e um eco

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A segunda coisa que fica clara é que, enquanto Kamala se aproximou do Donald Trump do primeiro mandato, Trump ficou ainda mais extremista, mesmo em comparação com o que era antes. No que diz respeito ao comércio, ele disse no início deste ano que era a favor de uma tarifa universal de 10% sobre as importações e, agora, aumentou essa tarifa para 20%. Ele quer uma tarifa de 60% sobre todas as importações chinesas.

Quanto aos impostos, ele agora quer cortar tudo o que estiver à vista, tornando permanentes todos os cortes de 2017 e reduzindo ainda mais os impostos corporativos. O Comitê para um Orçamento Federal Responsável calcula que seus planos aumentariam a dívida nacional duas vezes mais do que os planos de Kamala (e os dela não são nada contidos).

Quanto à imigração, o Trump de 2024 é mais radical que o de 2016. Ele sempre precisa de uma nova grande promessa e, desta vez, não se trata apenas de um muro, mas de deportação em massa. Algumas de suas políticas são extremas por omissão: ele não tem um plano discernível para reduzir as emissões de carbono ou para ajudar o país a se adaptar às mudanças climáticas.

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Apesar de todas as alegações de Trump de que Joe Biden “destruiu a economia dos EUA”, ela hoje é invejada no mundo todo. Ainda assim, é impressionante a pouca fé que os dois candidatos depositam nos aspectos que a tornaram grande, como a abertura ao comércio, ao talento e à concorrência. Está claro que Kamala não tentaria fechar os Estados Unidos tão vigorosamente quanto Trump. Mas seja quem for o vencedor em novembro, parece que a trumpificação da política americana continuará. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

A escolha que os Estados Unidos enfrentarão em menos de um mês em suas eleições não será feita por eleitores avaliando políticas antagônicas. Os planos de Kamala Harris carecem de detalhes; os de Donald Trump às vezes estão desvinculados da realidade – e, de um jeito ou de outro, as divisões culturais motivam os eleitores muito mais do que a política tributária.

Ainda assim, a escolha será extremamente importante para os Estados Unidos e o resto do mundo. Esse aspecto da corrida presidencial vem recebendo menos atenção do que as fantasias sobre o que os imigrantes haitianos andam comendo em Ohio. Quando deixamos de fora assuntos em que o contraste entre os dois candidatos é gritante, mas que não têm relação direta com as políticas públicas – como o caráter dos candidatos e o que a eleição significaria para as instituições ou até mesmo para a democracia americana –, o resultado é surpreendente.

Seja quem for que chegue aos 270 votos do colégio eleitoral em 5 de novembro, as ideias de Trump vencerão. Foi ele, e não Kamala, quem definiu os termos desta disputa. A política americana foi completamente “trumpificada”.

Tomemos, por exemplo, a plataforma doméstica de Kamala. Sua política de imigração consiste em adotar a proposta de reforma mais conservadora deste século, endossada por ambos os partidos. Entre suas disposições se encontra o encerramento dos pedidos de asilo quando o fluxo de migrantes irregulares estiver alto. Sua política comercial envolve manter, ainda que de forma modificada, a maioria das tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato.

O candidato presidencial republicano, o ex-presidente Donald Trump, participa de um comício em outubro, em Detroit: ele dita os rumos da política americana Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Com relação aos impostos, Kamala manteria boa parte dos cortes que Trump assinou em 2017 (aumentando as taxas apenas para quem ganha mais de US$ 400.000). Quanto à energia, ela se converteu ao fracking e integrou um governo que viu os Estados Unidos bombearem mais petróleo e gás do que nunca. Como os americanos estão muito divididos e Trump é uma figura muito polarizadora, Kamala conseguiu tomar emprestadas partes da agenda do primeiro mandato de Trump sem que a maioria das pessoas percebesse.

Essa análise das políticas públicas é reveladora dos movimentos políticos no sentido mais amplo. Trump foi quem primeiro entrou no território dos democratas, seduzindo os sindicatos e descartando os planos republicanos de reduzir os gastos públicos com aposentadorias e assistência médica. Como a eleição será disputada em seis ou sete Estados-pêndulos, todos eles com alguns pontos porcentuais a mais de republicanos do que a média nacional em 2020, a adoção silenciosa de posições mais trumpistas pode ajudar a vitória de Kamala. No entanto, o resultado é que um candidato que perdeu a última eleição, cujo partido foi derrotado nas eleições de meio de mandato de 2018 – um candidato que nunca ganhou o voto popular e provavelmente nunca ganhará – refez a política americana à sua imagem e semelhança.

O mesmo ocorre com a política externa. Os candidatos têm abordagens diferentes: uma se baseia em valores e alianças; o outro, em perguntar o que o mundo pode oferecer aos Estados Unidos. Se Trump vencer, a especulação nervosa sobre o compromisso dos Estados Unidos com a Otan voltará; com Kamala, não haverá dúvidas.

No entanto, há uma surpreendente sobreposição. Trump adotou uma abordagem mais conflituosa em relação à China do que qualquer outro presidente, mesmo que suas políticas tenham sido, na prática, menos assustadoras do que pareciam.

O governo do qual Kamala faz parte tem sido menos antagônico verbalmente, mas mais duro na prática, proibindo as exportações de tecnologia para a China e impondo enormes tarifas sobre as importações de veículos elétricos chineses. Quanto ao Oriente Médio, Kamala não permitiu que Trump a ultrapassasse pela direita, apesar da pressão do partido Democrata para cortar o fornecimento de armas a Israel. Ela também não parece estar com pressa para reativar o acordo com o Irã que Trump rasgou: nesta semana, ela chamou o regime islâmico de o maior adversário dos Estados Unidos. Também neste caso Trump estabeleceu os termos.

O apoio à Ucrânia é onde a diferença parece ser maior. Kamala fez parte de uma administração que liderou o esforço ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa. Ela continuaria a fornecer armas e dinheiro à Ucrânia, desde que o Congresso permitisse. A política de Trump é extraordinariamente vaga: ele diz apenas que a guerra não teria eclodido sob seu mandato e que ele a encerrará de imediato. Ele não explica como – e sua recusa em dizer que lado que gostaria de ver vitorioso aumenta os temores de que ele forçaria a Ucrânia a aceitar os termos da Rússia. Mas não é certeza que haverá uma traição tão catastrófica. Até mesmo Trump teme que deixar os tanques russos invadirem ainda mais a Ucrânia faria com que ele parecesse fraco.

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Uma escolha e um eco

A segunda coisa que fica clara é que, enquanto Kamala se aproximou do Donald Trump do primeiro mandato, Trump ficou ainda mais extremista, mesmo em comparação com o que era antes. No que diz respeito ao comércio, ele disse no início deste ano que era a favor de uma tarifa universal de 10% sobre as importações e, agora, aumentou essa tarifa para 20%. Ele quer uma tarifa de 60% sobre todas as importações chinesas.

Quanto aos impostos, ele agora quer cortar tudo o que estiver à vista, tornando permanentes todos os cortes de 2017 e reduzindo ainda mais os impostos corporativos. O Comitê para um Orçamento Federal Responsável calcula que seus planos aumentariam a dívida nacional duas vezes mais do que os planos de Kamala (e os dela não são nada contidos).

Quanto à imigração, o Trump de 2024 é mais radical que o de 2016. Ele sempre precisa de uma nova grande promessa e, desta vez, não se trata apenas de um muro, mas de deportação em massa. Algumas de suas políticas são extremas por omissão: ele não tem um plano discernível para reduzir as emissões de carbono ou para ajudar o país a se adaptar às mudanças climáticas.

Apesar de todas as alegações de Trump de que Joe Biden “destruiu a economia dos EUA”, ela hoje é invejada no mundo todo. Ainda assim, é impressionante a pouca fé que os dois candidatos depositam nos aspectos que a tornaram grande, como a abertura ao comércio, ao talento e à concorrência. Está claro que Kamala não tentaria fechar os Estados Unidos tão vigorosamente quanto Trump. Mas seja quem for o vencedor em novembro, parece que a trumpificação da política americana continuará. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

A escolha que os Estados Unidos enfrentarão em menos de um mês em suas eleições não será feita por eleitores avaliando políticas antagônicas. Os planos de Kamala Harris carecem de detalhes; os de Donald Trump às vezes estão desvinculados da realidade – e, de um jeito ou de outro, as divisões culturais motivam os eleitores muito mais do que a política tributária.

Ainda assim, a escolha será extremamente importante para os Estados Unidos e o resto do mundo. Esse aspecto da corrida presidencial vem recebendo menos atenção do que as fantasias sobre o que os imigrantes haitianos andam comendo em Ohio. Quando deixamos de fora assuntos em que o contraste entre os dois candidatos é gritante, mas que não têm relação direta com as políticas públicas – como o caráter dos candidatos e o que a eleição significaria para as instituições ou até mesmo para a democracia americana –, o resultado é surpreendente.

Seja quem for que chegue aos 270 votos do colégio eleitoral em 5 de novembro, as ideias de Trump vencerão. Foi ele, e não Kamala, quem definiu os termos desta disputa. A política americana foi completamente “trumpificada”.

Tomemos, por exemplo, a plataforma doméstica de Kamala. Sua política de imigração consiste em adotar a proposta de reforma mais conservadora deste século, endossada por ambos os partidos. Entre suas disposições se encontra o encerramento dos pedidos de asilo quando o fluxo de migrantes irregulares estiver alto. Sua política comercial envolve manter, ainda que de forma modificada, a maioria das tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato.

O candidato presidencial republicano, o ex-presidente Donald Trump, participa de um comício em outubro, em Detroit: ele dita os rumos da política americana Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Com relação aos impostos, Kamala manteria boa parte dos cortes que Trump assinou em 2017 (aumentando as taxas apenas para quem ganha mais de US$ 400.000). Quanto à energia, ela se converteu ao fracking e integrou um governo que viu os Estados Unidos bombearem mais petróleo e gás do que nunca. Como os americanos estão muito divididos e Trump é uma figura muito polarizadora, Kamala conseguiu tomar emprestadas partes da agenda do primeiro mandato de Trump sem que a maioria das pessoas percebesse.

Essa análise das políticas públicas é reveladora dos movimentos políticos no sentido mais amplo. Trump foi quem primeiro entrou no território dos democratas, seduzindo os sindicatos e descartando os planos republicanos de reduzir os gastos públicos com aposentadorias e assistência médica. Como a eleição será disputada em seis ou sete Estados-pêndulos, todos eles com alguns pontos porcentuais a mais de republicanos do que a média nacional em 2020, a adoção silenciosa de posições mais trumpistas pode ajudar a vitória de Kamala. No entanto, o resultado é que um candidato que perdeu a última eleição, cujo partido foi derrotado nas eleições de meio de mandato de 2018 – um candidato que nunca ganhou o voto popular e provavelmente nunca ganhará – refez a política americana à sua imagem e semelhança.

O mesmo ocorre com a política externa. Os candidatos têm abordagens diferentes: uma se baseia em valores e alianças; o outro, em perguntar o que o mundo pode oferecer aos Estados Unidos. Se Trump vencer, a especulação nervosa sobre o compromisso dos Estados Unidos com a Otan voltará; com Kamala, não haverá dúvidas.

No entanto, há uma surpreendente sobreposição. Trump adotou uma abordagem mais conflituosa em relação à China do que qualquer outro presidente, mesmo que suas políticas tenham sido, na prática, menos assustadoras do que pareciam.

O governo do qual Kamala faz parte tem sido menos antagônico verbalmente, mas mais duro na prática, proibindo as exportações de tecnologia para a China e impondo enormes tarifas sobre as importações de veículos elétricos chineses. Quanto ao Oriente Médio, Kamala não permitiu que Trump a ultrapassasse pela direita, apesar da pressão do partido Democrata para cortar o fornecimento de armas a Israel. Ela também não parece estar com pressa para reativar o acordo com o Irã que Trump rasgou: nesta semana, ela chamou o regime islâmico de o maior adversário dos Estados Unidos. Também neste caso Trump estabeleceu os termos.

O apoio à Ucrânia é onde a diferença parece ser maior. Kamala fez parte de uma administração que liderou o esforço ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa. Ela continuaria a fornecer armas e dinheiro à Ucrânia, desde que o Congresso permitisse. A política de Trump é extraordinariamente vaga: ele diz apenas que a guerra não teria eclodido sob seu mandato e que ele a encerrará de imediato. Ele não explica como – e sua recusa em dizer que lado que gostaria de ver vitorioso aumenta os temores de que ele forçaria a Ucrânia a aceitar os termos da Rússia. Mas não é certeza que haverá uma traição tão catastrófica. Até mesmo Trump teme que deixar os tanques russos invadirem ainda mais a Ucrânia faria com que ele parecesse fraco.

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Conhecido como 'Nostradamus das eleições americanas', o historiador Allan Lichtman faz sua aposta para o resultado

Uma escolha e um eco

A segunda coisa que fica clara é que, enquanto Kamala se aproximou do Donald Trump do primeiro mandato, Trump ficou ainda mais extremista, mesmo em comparação com o que era antes. No que diz respeito ao comércio, ele disse no início deste ano que era a favor de uma tarifa universal de 10% sobre as importações e, agora, aumentou essa tarifa para 20%. Ele quer uma tarifa de 60% sobre todas as importações chinesas.

Quanto aos impostos, ele agora quer cortar tudo o que estiver à vista, tornando permanentes todos os cortes de 2017 e reduzindo ainda mais os impostos corporativos. O Comitê para um Orçamento Federal Responsável calcula que seus planos aumentariam a dívida nacional duas vezes mais do que os planos de Kamala (e os dela não são nada contidos).

Quanto à imigração, o Trump de 2024 é mais radical que o de 2016. Ele sempre precisa de uma nova grande promessa e, desta vez, não se trata apenas de um muro, mas de deportação em massa. Algumas de suas políticas são extremas por omissão: ele não tem um plano discernível para reduzir as emissões de carbono ou para ajudar o país a se adaptar às mudanças climáticas.

Apesar de todas as alegações de Trump de que Joe Biden “destruiu a economia dos EUA”, ela hoje é invejada no mundo todo. Ainda assim, é impressionante a pouca fé que os dois candidatos depositam nos aspectos que a tornaram grande, como a abertura ao comércio, ao talento e à concorrência. Está claro que Kamala não tentaria fechar os Estados Unidos tão vigorosamente quanto Trump. Mas seja quem for o vencedor em novembro, parece que a trumpificação da política americana continuará. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

A escolha que os Estados Unidos enfrentarão em menos de um mês em suas eleições não será feita por eleitores avaliando políticas antagônicas. Os planos de Kamala Harris carecem de detalhes; os de Donald Trump às vezes estão desvinculados da realidade – e, de um jeito ou de outro, as divisões culturais motivam os eleitores muito mais do que a política tributária.

Ainda assim, a escolha será extremamente importante para os Estados Unidos e o resto do mundo. Esse aspecto da corrida presidencial vem recebendo menos atenção do que as fantasias sobre o que os imigrantes haitianos andam comendo em Ohio. Quando deixamos de fora assuntos em que o contraste entre os dois candidatos é gritante, mas que não têm relação direta com as políticas públicas – como o caráter dos candidatos e o que a eleição significaria para as instituições ou até mesmo para a democracia americana –, o resultado é surpreendente.

Seja quem for que chegue aos 270 votos do colégio eleitoral em 5 de novembro, as ideias de Trump vencerão. Foi ele, e não Kamala, quem definiu os termos desta disputa. A política americana foi completamente “trumpificada”.

Tomemos, por exemplo, a plataforma doméstica de Kamala. Sua política de imigração consiste em adotar a proposta de reforma mais conservadora deste século, endossada por ambos os partidos. Entre suas disposições se encontra o encerramento dos pedidos de asilo quando o fluxo de migrantes irregulares estiver alto. Sua política comercial envolve manter, ainda que de forma modificada, a maioria das tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato.

O candidato presidencial republicano, o ex-presidente Donald Trump, participa de um comício em outubro, em Detroit: ele dita os rumos da política americana Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Com relação aos impostos, Kamala manteria boa parte dos cortes que Trump assinou em 2017 (aumentando as taxas apenas para quem ganha mais de US$ 400.000). Quanto à energia, ela se converteu ao fracking e integrou um governo que viu os Estados Unidos bombearem mais petróleo e gás do que nunca. Como os americanos estão muito divididos e Trump é uma figura muito polarizadora, Kamala conseguiu tomar emprestadas partes da agenda do primeiro mandato de Trump sem que a maioria das pessoas percebesse.

Essa análise das políticas públicas é reveladora dos movimentos políticos no sentido mais amplo. Trump foi quem primeiro entrou no território dos democratas, seduzindo os sindicatos e descartando os planos republicanos de reduzir os gastos públicos com aposentadorias e assistência médica. Como a eleição será disputada em seis ou sete Estados-pêndulos, todos eles com alguns pontos porcentuais a mais de republicanos do que a média nacional em 2020, a adoção silenciosa de posições mais trumpistas pode ajudar a vitória de Kamala. No entanto, o resultado é que um candidato que perdeu a última eleição, cujo partido foi derrotado nas eleições de meio de mandato de 2018 – um candidato que nunca ganhou o voto popular e provavelmente nunca ganhará – refez a política americana à sua imagem e semelhança.

O mesmo ocorre com a política externa. Os candidatos têm abordagens diferentes: uma se baseia em valores e alianças; o outro, em perguntar o que o mundo pode oferecer aos Estados Unidos. Se Trump vencer, a especulação nervosa sobre o compromisso dos Estados Unidos com a Otan voltará; com Kamala, não haverá dúvidas.

No entanto, há uma surpreendente sobreposição. Trump adotou uma abordagem mais conflituosa em relação à China do que qualquer outro presidente, mesmo que suas políticas tenham sido, na prática, menos assustadoras do que pareciam.

O governo do qual Kamala faz parte tem sido menos antagônico verbalmente, mas mais duro na prática, proibindo as exportações de tecnologia para a China e impondo enormes tarifas sobre as importações de veículos elétricos chineses. Quanto ao Oriente Médio, Kamala não permitiu que Trump a ultrapassasse pela direita, apesar da pressão do partido Democrata para cortar o fornecimento de armas a Israel. Ela também não parece estar com pressa para reativar o acordo com o Irã que Trump rasgou: nesta semana, ela chamou o regime islâmico de o maior adversário dos Estados Unidos. Também neste caso Trump estabeleceu os termos.

O apoio à Ucrânia é onde a diferença parece ser maior. Kamala fez parte de uma administração que liderou o esforço ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa. Ela continuaria a fornecer armas e dinheiro à Ucrânia, desde que o Congresso permitisse. A política de Trump é extraordinariamente vaga: ele diz apenas que a guerra não teria eclodido sob seu mandato e que ele a encerrará de imediato. Ele não explica como – e sua recusa em dizer que lado que gostaria de ver vitorioso aumenta os temores de que ele forçaria a Ucrânia a aceitar os termos da Rússia. Mas não é certeza que haverá uma traição tão catastrófica. Até mesmo Trump teme que deixar os tanques russos invadirem ainda mais a Ucrânia faria com que ele parecesse fraco.

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Conhecido como 'Nostradamus das eleições americanas', o historiador Allan Lichtman faz sua aposta para o resultado

Uma escolha e um eco

A segunda coisa que fica clara é que, enquanto Kamala se aproximou do Donald Trump do primeiro mandato, Trump ficou ainda mais extremista, mesmo em comparação com o que era antes. No que diz respeito ao comércio, ele disse no início deste ano que era a favor de uma tarifa universal de 10% sobre as importações e, agora, aumentou essa tarifa para 20%. Ele quer uma tarifa de 60% sobre todas as importações chinesas.

Quanto aos impostos, ele agora quer cortar tudo o que estiver à vista, tornando permanentes todos os cortes de 2017 e reduzindo ainda mais os impostos corporativos. O Comitê para um Orçamento Federal Responsável calcula que seus planos aumentariam a dívida nacional duas vezes mais do que os planos de Kamala (e os dela não são nada contidos).

Quanto à imigração, o Trump de 2024 é mais radical que o de 2016. Ele sempre precisa de uma nova grande promessa e, desta vez, não se trata apenas de um muro, mas de deportação em massa. Algumas de suas políticas são extremas por omissão: ele não tem um plano discernível para reduzir as emissões de carbono ou para ajudar o país a se adaptar às mudanças climáticas.

Apesar de todas as alegações de Trump de que Joe Biden “destruiu a economia dos EUA”, ela hoje é invejada no mundo todo. Ainda assim, é impressionante a pouca fé que os dois candidatos depositam nos aspectos que a tornaram grande, como a abertura ao comércio, ao talento e à concorrência. Está claro que Kamala não tentaria fechar os Estados Unidos tão vigorosamente quanto Trump. Mas seja quem for o vencedor em novembro, parece que a trumpificação da política americana continuará. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

A escolha que os Estados Unidos enfrentarão em menos de um mês em suas eleições não será feita por eleitores avaliando políticas antagônicas. Os planos de Kamala Harris carecem de detalhes; os de Donald Trump às vezes estão desvinculados da realidade – e, de um jeito ou de outro, as divisões culturais motivam os eleitores muito mais do que a política tributária.

Ainda assim, a escolha será extremamente importante para os Estados Unidos e o resto do mundo. Esse aspecto da corrida presidencial vem recebendo menos atenção do que as fantasias sobre o que os imigrantes haitianos andam comendo em Ohio. Quando deixamos de fora assuntos em que o contraste entre os dois candidatos é gritante, mas que não têm relação direta com as políticas públicas – como o caráter dos candidatos e o que a eleição significaria para as instituições ou até mesmo para a democracia americana –, o resultado é surpreendente.

Seja quem for que chegue aos 270 votos do colégio eleitoral em 5 de novembro, as ideias de Trump vencerão. Foi ele, e não Kamala, quem definiu os termos desta disputa. A política americana foi completamente “trumpificada”.

Tomemos, por exemplo, a plataforma doméstica de Kamala. Sua política de imigração consiste em adotar a proposta de reforma mais conservadora deste século, endossada por ambos os partidos. Entre suas disposições se encontra o encerramento dos pedidos de asilo quando o fluxo de migrantes irregulares estiver alto. Sua política comercial envolve manter, ainda que de forma modificada, a maioria das tarifas impostas por Trump em seu primeiro mandato.

O candidato presidencial republicano, o ex-presidente Donald Trump, participa de um comício em outubro, em Detroit: ele dita os rumos da política americana Foto: Julia Demaree Nikhinson/AP

Com relação aos impostos, Kamala manteria boa parte dos cortes que Trump assinou em 2017 (aumentando as taxas apenas para quem ganha mais de US$ 400.000). Quanto à energia, ela se converteu ao fracking e integrou um governo que viu os Estados Unidos bombearem mais petróleo e gás do que nunca. Como os americanos estão muito divididos e Trump é uma figura muito polarizadora, Kamala conseguiu tomar emprestadas partes da agenda do primeiro mandato de Trump sem que a maioria das pessoas percebesse.

Essa análise das políticas públicas é reveladora dos movimentos políticos no sentido mais amplo. Trump foi quem primeiro entrou no território dos democratas, seduzindo os sindicatos e descartando os planos republicanos de reduzir os gastos públicos com aposentadorias e assistência médica. Como a eleição será disputada em seis ou sete Estados-pêndulos, todos eles com alguns pontos porcentuais a mais de republicanos do que a média nacional em 2020, a adoção silenciosa de posições mais trumpistas pode ajudar a vitória de Kamala. No entanto, o resultado é que um candidato que perdeu a última eleição, cujo partido foi derrotado nas eleições de meio de mandato de 2018 – um candidato que nunca ganhou o voto popular e provavelmente nunca ganhará – refez a política americana à sua imagem e semelhança.

O mesmo ocorre com a política externa. Os candidatos têm abordagens diferentes: uma se baseia em valores e alianças; o outro, em perguntar o que o mundo pode oferecer aos Estados Unidos. Se Trump vencer, a especulação nervosa sobre o compromisso dos Estados Unidos com a Otan voltará; com Kamala, não haverá dúvidas.

No entanto, há uma surpreendente sobreposição. Trump adotou uma abordagem mais conflituosa em relação à China do que qualquer outro presidente, mesmo que suas políticas tenham sido, na prática, menos assustadoras do que pareciam.

O governo do qual Kamala faz parte tem sido menos antagônico verbalmente, mas mais duro na prática, proibindo as exportações de tecnologia para a China e impondo enormes tarifas sobre as importações de veículos elétricos chineses. Quanto ao Oriente Médio, Kamala não permitiu que Trump a ultrapassasse pela direita, apesar da pressão do partido Democrata para cortar o fornecimento de armas a Israel. Ela também não parece estar com pressa para reativar o acordo com o Irã que Trump rasgou: nesta semana, ela chamou o regime islâmico de o maior adversário dos Estados Unidos. Também neste caso Trump estabeleceu os termos.

O apoio à Ucrânia é onde a diferença parece ser maior. Kamala fez parte de uma administração que liderou o esforço ocidental para ajudar a Ucrânia a se defender da invasão russa. Ela continuaria a fornecer armas e dinheiro à Ucrânia, desde que o Congresso permitisse. A política de Trump é extraordinariamente vaga: ele diz apenas que a guerra não teria eclodido sob seu mandato e que ele a encerrará de imediato. Ele não explica como – e sua recusa em dizer que lado que gostaria de ver vitorioso aumenta os temores de que ele forçaria a Ucrânia a aceitar os termos da Rússia. Mas não é certeza que haverá uma traição tão catastrófica. Até mesmo Trump teme que deixar os tanques russos invadirem ainda mais a Ucrânia faria com que ele parecesse fraco.

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Conhecido como 'Nostradamus das eleições americanas', o historiador Allan Lichtman faz sua aposta para o resultado

Uma escolha e um eco

A segunda coisa que fica clara é que, enquanto Kamala se aproximou do Donald Trump do primeiro mandato, Trump ficou ainda mais extremista, mesmo em comparação com o que era antes. No que diz respeito ao comércio, ele disse no início deste ano que era a favor de uma tarifa universal de 10% sobre as importações e, agora, aumentou essa tarifa para 20%. Ele quer uma tarifa de 60% sobre todas as importações chinesas.

Quanto aos impostos, ele agora quer cortar tudo o que estiver à vista, tornando permanentes todos os cortes de 2017 e reduzindo ainda mais os impostos corporativos. O Comitê para um Orçamento Federal Responsável calcula que seus planos aumentariam a dívida nacional duas vezes mais do que os planos de Kamala (e os dela não são nada contidos).

Quanto à imigração, o Trump de 2024 é mais radical que o de 2016. Ele sempre precisa de uma nova grande promessa e, desta vez, não se trata apenas de um muro, mas de deportação em massa. Algumas de suas políticas são extremas por omissão: ele não tem um plano discernível para reduzir as emissões de carbono ou para ajudar o país a se adaptar às mudanças climáticas.

Apesar de todas as alegações de Trump de que Joe Biden “destruiu a economia dos EUA”, ela hoje é invejada no mundo todo. Ainda assim, é impressionante a pouca fé que os dois candidatos depositam nos aspectos que a tornaram grande, como a abertura ao comércio, ao talento e à concorrência. Está claro que Kamala não tentaria fechar os Estados Unidos tão vigorosamente quanto Trump. Mas seja quem for o vencedor em novembro, parece que a trumpificação da política americana continuará. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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