KHERSON, Ucrânia — Toda noite, na região de Kherson, no sul da Ucrânia, soldados ucranianos entram em pequenos botes infláveis para atravessar o Rio Dnipro e levar a batalha para mais perto de seus inimigos russos. O extenso curso d’água, com forças russas e ucranianas estacionadas nas margens opostas, é o front mais estático da guerra, uma barreira ao transporte de tropas e suprimentos.
Mas enquanto Kiev apronta sua altamente aguardada contraofensiva, um ataque à margem oriental do rio poderia ser capaz de pegar os russos de surpresa.
“Na história da guerra e da arte militar há muitos exemplos de travessias de barreiras aquáticas — desembarques fluviais ou marítimos”, afirmou o brigadeiro-general Mikhailo Drapatii, comandante do grupo operacional das tropas ucranianas em Kherson.
“Certas condições estão sendo criadas para que a barreira do Rio Dnipro não nos impeça, que, em vez disso, nos ajude a cumprir nossa missão. Se as condições estiverem favoráveis, avançaremos.”
Os rumores a respeito de onde o contra-ataque ucraniano vai começar nas próximas semanas têm se situado em torno da região de Zaporizhzhia, onde forças de Kiev que conduzam um ataque terrestre provavelmente tentariam expulsar os invasores russos da cidade de Melitopol e romper a dita ponte terrestre que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, onde Moscou possui várias bases militares estratégicas.
A Ucrânia poderia também continuar a contra-atacar no leste, onde recentemente alcançou ganhos em torno da cidade de Bakhmut, assolada por uma prolongada batalha.
Esses cenários são os mais prováveis, mas os ucranianos também têm testado furtivamente sua capacidade de pressionar através do Rio Dnipro e treinado unidades para a possibilidade de um desembarque fluvial.
Fator surpresa
A Ucrânia valeu-se da técnica da surpresa em sua ampla e veloz contraofensiva no último outono do Hemisfério Norte, que libertou quase toda a região de Kharkiv, no nordeste, em uma semana. Como na região de Kherson agora, os russos tinham estacionado seu grupamento de unidades mais fracas em Kharkiv na época, esperando que os ucranianos atacassem outras posições.
Um ataque através do Dnipro poderia ser tão surpreendente quanto e também render grandes ganhos territoriais. Há cerca de 40 mil soldados russos na região de Kherson, na margem oriental do rio, afirmou Drapatii.
E retomar o controle dessa região romperia, igualmente, o corredor terrestre para a Crimeia e colocaria as forças ucranianas nas proximidades da península — um avanço para Kiev, que promete retomar o território anexado ilegalmente por Moscou em 2014.
Guerra na Ucrânia
Forças especiais ucranianas já cruzaram para o lado oriental do Dnipro em ataques ao longo da margem, afirmou Drapatii, mas os ucranianos ainda não instalaram postos estáveis por lá.
As posições russas estão a cerca de 5 quilômetros do rio, e os ucranianos precisariam fazê-las recuar outros 10 quilômetros para retirar a cidade de Kherson, que fica na margem ocidental e está sob controle ucraniano, do alcance da artilharia russa.
“Estamos tentando não apenas mostrar nossa presença, mas também estressar o inimigo com ações assertivas nessas áreas”, afirmou Drapatii.
As forças russas se retiraram da margem ocidental do Rio Dnipro em novembro, quando as pontes usadas pelos russos entraram no alcance das tropas ucranianas — ameaçando encurralar os invasores impedindo seu acesso às suas bases do outro lado.
Os russos preferiram recuar suas forças para a margem oriental e explodir as pontes em seu rastro. Isso furtou dos ucranianos uma alternativa óbvia para atravessar o rio e continuar seu ataque.
Agora, projéteis de artilharia e drones carregados de explosivos atravessam o rio diariamente, com a batalha tomando a forma de um combate à distância, enquanto as unidades de assalto ucranianas treinam duas vezes por semana operações para cruzar o Dnipro em barcos ou pontes flutuantes, afirmou Drapatii.
A Ucrânia também começou a construir barcaças que poderiam ser usadas para transportar armamentos pesados para a outra margem do rio.
Prioridade logística
“Talvez eu seja um otimista, mas acredito que chegará o momento em que precisaremos estabelecer uma cadeia logística”, afirmou Drapatii. “Nós não conseguiremos resolver o problema com uma, duas ou três pontes flutuantes, então nós usaremos tudo que pudermos, incluindo aviação do Exército, e estamos trabalhando sobre esse problema, nos preparando para enfrentá-lo.”
“E os russos minaram tudo do outro lado”, afirmou o coronel Roman Kostenko, membro do Parlamento nacional ucraniano que integra a unidade que trabalha com as Forças de Operações Especiais. “A água está minada, a margem está minada.”
“Atravessar assim é morte certa”, afirmou Kostenko. “Teria de haver uma razão logística para isso. Uns 20 ou 30 soldados poderiam tomar sorrateiramente algum trecho de território que esteja 100 metros adiante, mas então a artilharia poderia enterrá-los em 15 minutos. Se nós vamos fazer isso, precisamos de um bom motivo: uma cabeça de ponte e depois criar uma cadeia logística para um acúmulo de tropas.”
Mas a maior prioridade dos ucranianos é retomar as ilhas do Dnipro, onde o principal combate transcorre neste momento, porque essas posições poderiam dar às forças de Kiev base para lançar ofensivas atravessando para a margem esquerda. Drapatii afirmou que as ilhas estão atualmente “90%” sob controle ucraniano, “as partes em que não estamos fisicamente presentes estão sob vigilância e na mira”.
“No futuro, esta pode ser uma das áreas para uma cabeça de ponte, onde nós possamos acumular forças”, afirmou ele. “E talvez, se desviarmos a atenção para um outro front, nós seremos bem-sucedidos.”
Andrii, comandante de uma unidade ucraniana
Em Velikii Potomkin, a maior das ilhas, onde o Dnipro se divide, ao sul da cidade de Kherson, as forças estão nas margens sul, enquanto os ucranianos estão postados no lado norte. Os chalés para turistas agora abandonados na margem possuem píer de madeira.
Os soldados ucranianos que chegam em botes infláveis desligam o motor quando se aproximam, atracam silenciosamente e correm para dentro.
“Temos que nos mover rapidamente, até sermos vistos por um drone inimigo ou mortos por um tiro de morteiro”, afirmou Andrii, comandante de uma unidade que combateu em Velikii Potomkin.
O Washington Post concordou em identificar Andrii apenas por seu primeiro nome porque ele não estava autorizado a falar a respeito de suas operações. “Nós corremos para dentro das casas”, afirmou Andrii. “Se eles começam a atirar, corremos para a seguinte.”
“Pensei que todos morreriam”, disse o militar, relatando a primeira vez que atravessou o rio com seus homens, no inverno passado. Ele contou que os ucranianos tiveram sorte e desembarcaram em um ponto da ilha que os russos não guardavam naquele momento. Quando os russos finalmente chegaram, os ucranianos os emboscaram — e depois atacaram também seus reforços.
“Depois daquela primeira leva, quando estabelecemos nossa primeira posição nós fomos reforçando, pouco a pouco”, afirmou ele. “Faz pelo menos três meses, e estamos progredindo.”
O terreno do interior da ilha é intransponível, afirmou Andrii, então os soldados se movem ao longo da margem, de casa em casa. Os russos raramente deixam suas bases, mas os ucranianos têm sofrido ataques recentemente.
“Nós só sabemos se eles estão em alguma casa quando entramos”, afirmou ele. “E podemos entrar e já ter uma metralhadora apontada na nossa cara.”
No fim do mês passado, blogueiros militares russos começaram a alertar a respeito das forças ucranianas se esgueirando pela margem esquerda do Dnipro. Pequenos drones comerciais soltam com frequência explosivos, pregos e minas ao longo da estrada de 3 quilômetros entre o local em que a Ponte Antonovski costumava atingir a margem esquerda e o início da Ponte Oleshki.
O objetivo é inviabilizar especialmente a passagem de veículos — outra maneira de fazer os russos recuarem, porque eles não seriam capazes de retirar mortos e feridos ou de reabastecer suas forças na beira do rio.
Drapatii notou que os russos fortificaram recentemente suas defesas mais interiores, enterrando mais minas e aumentando a frequência dos voos de drones de vigilância para o outro lado do rio.
O comandante militar afirmou que ouve russos em pânico quando escuta conversas interceptadas. “Eles se preocupam”, afirmou Drapatii, “pensando que nós estamos nos preparando para ações assertivas para o nosso objetivo. Isso é ainda mais razão para nos prepararmos”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL