Como a União Europeia permitiu que a Hungria se tornasse um modelo iliberal


Depois de anos de complacência e pensamentos ilusórios, Bruxelas está finalmente tentando controlar o líder combativo do país, o primeiro-ministro Viktor Orban

Por Steven Erlanger e Benjamin Novak

BRUXELAS - Depois de muita indulgência com relação a ele, os líderes da União Europeia agora consideram amplamente o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, uma ameaça existencial a um bloco que se apresenta como um modelo de direitos humanos e Estado de Direito.

Orban passou a última década construindo firmemente seu “estado iliberal”, como ele orgulhosamente chama a Hungria, com a ajuda do generoso financiamento da União Europeia. Mesmo com seu projeto aumentando as fissuras no bloco, ao qual a Hungria aderiu em 2004, seus companheiros líderes nacionais olharam para o outro lado, comprometidos em ficar fora dos assuntos uns dos outros.

Depois de anos de complacência e pensamentos ilusórios, Bruxelas está finalmente tentando controlar o líder combativo do país, o primeiro-ministro Viktor Orban. Foto: Bernadett Szabo/Reuters
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Mas agora o desafio e a intransigência de Orban tiveram um efeito importante, embora involuntário: servir como um catalisador para o sistema frequentemente lento da União Europeia em salvaguardar os princípios democráticos que são a base do bloco.

No início deste ano, o Tribunal de Justiça Europeu emitirá uma decisão histórica sobre se a união tem autoridade para tornar seus fundos de financiamento para os estados membros condicionados ao cumprimento dos valores centrais do bloco. Fazer isso permitiria a Bruxelas negar bilhões de euros a países que violassem esses valores.

O bloco tem trabalhado consistentemente no consenso político entre os líderes nacionais. Mas Orban levou Bruxelas a um limiar há muito tempo evitado: tornar a adesão sujeita a punições financeiras, não apenas políticas.

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A nova fronteira pode ajudar a resolver um problema antigo - o que fazer com os mal-intencionados - ao mesmo tempo em que novos surgem. Não menos importante, poderia convidar a Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, a exercer um novo nível de interferência nos assuntos dos estados membros.

Como Orban forçou a União Europeia a tal conjuntura, e por que pareceu inútil tentar impedi-lo por tanto tempo, diz muito sobre as premissas de fundação do bloco e por que ele tropeçou diante de desafios populistas e nacionalistas.

Entrevistas com mais de uma dúzia de autoridades europeias atuais e antigas mostram como os sentimentos em relação a Orban e seu projeto iliberal evoluíram de complacência e incompreensão para um reconhecimento de que ele havia se tornado uma séria ameaça interna - apesar de a Hungria ter menos gente do que a área metropolitana de Paris e um língua esotérica que não tem nenhuma relação com as de seus vizinhos.

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A negligência intencional foi perfeitamente resumida em 2015 em uma reunião, quando Jean-Claude Juncker, então presidente da Comissão Europeia, viu Orban chegando e disse: "O ditador está chegando", antes de cumprimentá-lo com a palavra "ditador" e dar-lhe um tapinha amigável no rosto.

Ninguém no poder queria confrontar Orban sobre questões como Estado de Direito e corrupção - especialmente seus colegas líderes nacionais, que têm assento no poderoso Conselho Europeu.

“No próprio conselho, senti a relutância dos pares de Orban em lidar com esse tipo de questão”, disse Luuk van Middelaar, assessor de Herman Van Rompuy quando ele era presidente do conselho. Ele acrescentou que o conselho era “como um clube, onde Viktor é apenas um deles - e eles são animais políticos, e se respeitam pelo simples fato de terem vencido uma eleição”.

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Os líderes "preferem não lidar com batatas quentes ou os negócios uns dos outros quando podem evitá-los", disse van Middelaar.

Orban enfrenta novas eleições nesta primavera contra um conjunto de partidos de oposição formalmente unidos, mas extremamente diversificados. Mas ele se tornou um modelo para a política de identidade e religião, não apenas na Polônia, mas também nos Estados Unidos.

Na segunda-feira, o ex-presidente Donald J. Trump endossou Orban para a reeleição, prometendo "apoio total". Orban foi um dos primeiros apoiadores de Trump, endossando-o no verão de 2016 e novamente em 2020. Orban, disse Trump, era "provavelmente, como eu, um pouco controverso, mas tudo bem".

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Alguns legisladores europeus reconheceram cedo que Orban estava pisoteando as normas democráticas, mas foram impedidos por líderes nacionais, especialmente os do Partido Popular Europeu, o poderoso agrupamento político de centro-direita que dominou o Parlamento Europeu na última década.

Entre os conservadores que protegeram Orban estava Angela Merkel, a chanceler da Alemanha na época. As empresas alemãs tinham grandes investimentos na Hungria, e Merkel viu o líder húngaro como um aliado político em Bruxelas. Um membro proeminente do Partido Popular Europeu disse que Merkel e seus assessores ignoraram as reclamações sobre Orban, dizendo que ele poderia ser difícil, mas que era importante mantê-lo na família.

“A maior falha - aquela pela qual ainda pagamos o preço hoje - é o Conselho Europeu”, disse Rui Tavares, um ex-legislador europeu que ajudou a escrever um relatório adotado em 2013 sobre as violações da Hungria. “O Conselho Europeu não fez nada.”

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Orban e Angela Merkel, então chanceler alemã, em 2020 em Berlim. Na época, Merkel o via como um aliado político em Bruxelas. Foto: Odd Andersen/Agence France-Presse — Getty Images

Quando Orban propôs - e posteriormente introduziu - uma nova Constituição que violava os princípios europeus, Didier Reynders, então ministro das Relações Exteriores e Europeias da Bélgica, disse que tentou levantar o problema em uma reunião com líderes da União Europeia em 2011, mas não conseguiu.

“A reação foi de que isso não é um problema para os estados membros”, disse Reynders, que agora é comissário da União Europeia para justiça, acrescentando que “talvez a comissão, talvez o tribunal” deva tratar disso. “Mas agora é uma discussão permanente”, ele disse.

Ivan Krastev, um analista búlgaro da Europa, disse que Orban teve cuidado por vários anos após sua eleição em 2010 para"não cruzar as linhas vermelhas de Bruxelas, mas dançar junto com elas no que ele chamou de 'dança do pavão'".

Krastev disse que muitos líderes europeus presumiram que as nações que se juntaram ao bloco em 2004 ficariam gratas, seriam parceiras relativamente complacentes e calcularam mal como “países como Hungria, Polônia e República Tcheca sentiram depois que tinham que afirmar sua própria identidade e rejeitar Bruxelas em graus diferentes. ”

O partido de Orban adotou a nova Constituição e uma nova lei de mídia que restringia a liberdade de imprensa. Ele reformulou o sistema de justiça do país, removeu o chefe da Suprema Corte e criou um escritório para supervisionar os tribunais liderados pela esposa de um membro proeminente do partido do governo, o Fidesz. As leis eleitorais foram alteradas para favorecer o partido.

Fatores externos também fortaleceram Orban, incluindo em 2015, quando um número recorde de migrantes foi para a Europa e quando o partido de direita Lei e Justiça, de Jaroslaw Kaczynski, assumiu o poder na Polônia. De repente, ele tinha um aliado ali, e sua postura dura contra os migrantes também lhe rendeu apoio em outros lugares.

“O que libertou Orban foi 2015 e a crise migratória”, disse Mark Leonard, diretor do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “De repente, ele estava se posicionando por mais do que a Hungria, mas por questões mais amplas de migração, com o apoio da Alemanha e da Áustria e de outros estados da Europa Central, e isso lhe deu poder.”

Centenas de famílias esperaram do lado de fora de uma estação de trem em Budapeste durante a crise migratória de 2015. Foto: Mauricio Lima for The New York Times

Um ponto de inflexão mais acentuado ocorreu em maio de 2018 em uma reunião entre Orban e os líderes do Partido Popular Europeu: Joseph Daul, o presidente do partido, e Manfred Weber, o democrata cristão alemão que dirigia o Parlamento.

Eles o alertaram de que seu partido corria o risco de ser expulso do grupo parlamentar. Animado por conta de outra vitória eleitoral no mês anterior, Orban “sentiu-se poderoso” e revidou, de acordo com um funcionário que foi imediatamente informado sobre a reunião. “Se você tentar me expulsar, vou te destruir”, disse Orban, de acordo com o funcionário.

Demoraria 10 meses até que o Fidesz fosse suspenso. Dois anos depois, em março, Orban abandonou a aliança conservadora quando ficou claro que ela expulsaria seu partido.

Weber ainda lamenta a perda do Fidesz. “Por um lado, é um alívio”, ele disse. “Mas a saída de Orban não é uma vitória, mas uma derrota” no esforço de manter a centro-direita unida como “um amplo partido do povo”.

O fato de a União Europeia ter poucos e ineficazes instrumentos para punir uma nação que se desvia ajudou Orban. Mesmo o Tratado de Lisboa, que conferiu poderes reforçados ao Parlamento Europeu, tem essencialmente uma ferramenta inutilizável: o artigo 7, que pode retirar os direitos de voto de um país, mas apenas se for aprovado por unanimidade.

Em 2017, Frans Timmermans, então primeiro vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelo Estado de Direito, acionou o artigo contra a Polônia. O Parlamento Europeu fez o mesmo contra a Hungria em 2018. Mas ambas as medidas ficaram inevitavelmente paralisadas porque os dois países se protegem.

O tratado também permite que a comissão instaure procedimentos de infração - acusações legais - contra os Estados membros por violarem a lei da União Europeia. Mas o processo é lento, envolvendo cartas, respostas e recursos, e as decisões finais cabem ao Tribunal de Justiça Europeu. A maioria dos casos é resolvida antes de chegar ao tribunal.

Mas, de acordo com estudos de R. Daniel Kelemen da Universidade Rutgers e Tommaso Pavone da Universidade de Oslo, a comissão reduziu drasticamente os casos de infração após a adição de novos Estados membros em 2004. José Manuel Barroso, um ex-presidente da comissão, “comprou essa ideia de trabalhar mais cooperativamente com os governos e não apenas processá-los ”, disse Kelemen. Barroso não quis comentar.

As atitudes mudaram. Com o dinheiro do contribuinte em jogo, assim como o próximo orçamento de sete anos e o desprezo pelos valores compartilhados mostrados por Orban e Kaczynski nas mentes dos líderes, Bruxelas pode finalmente ter encontrado uma ferramenta útil para cuidar da política interna, com um mistura de ações judiciais que acusam violação de tratados europeus combinadas com graves consequências financeiras. Um marco foi finalmente estabelecido, disse Reynders. O grande momento chega este mês, quando o Tribunal de Justiça Europeu emite sua decisão.

Se a Hungria e a Polônia perderem o caso, como esperado, não está claro o que acontecerá se os dois países simplesmente se recusarem a cumprir a decisão. A União Europeia entrará cada vez mais em um território desconhecido. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

BRUXELAS - Depois de muita indulgência com relação a ele, os líderes da União Europeia agora consideram amplamente o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, uma ameaça existencial a um bloco que se apresenta como um modelo de direitos humanos e Estado de Direito.

Orban passou a última década construindo firmemente seu “estado iliberal”, como ele orgulhosamente chama a Hungria, com a ajuda do generoso financiamento da União Europeia. Mesmo com seu projeto aumentando as fissuras no bloco, ao qual a Hungria aderiu em 2004, seus companheiros líderes nacionais olharam para o outro lado, comprometidos em ficar fora dos assuntos uns dos outros.

Depois de anos de complacência e pensamentos ilusórios, Bruxelas está finalmente tentando controlar o líder combativo do país, o primeiro-ministro Viktor Orban. Foto: Bernadett Szabo/Reuters

Mas agora o desafio e a intransigência de Orban tiveram um efeito importante, embora involuntário: servir como um catalisador para o sistema frequentemente lento da União Europeia em salvaguardar os princípios democráticos que são a base do bloco.

No início deste ano, o Tribunal de Justiça Europeu emitirá uma decisão histórica sobre se a união tem autoridade para tornar seus fundos de financiamento para os estados membros condicionados ao cumprimento dos valores centrais do bloco. Fazer isso permitiria a Bruxelas negar bilhões de euros a países que violassem esses valores.

O bloco tem trabalhado consistentemente no consenso político entre os líderes nacionais. Mas Orban levou Bruxelas a um limiar há muito tempo evitado: tornar a adesão sujeita a punições financeiras, não apenas políticas.

A nova fronteira pode ajudar a resolver um problema antigo - o que fazer com os mal-intencionados - ao mesmo tempo em que novos surgem. Não menos importante, poderia convidar a Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, a exercer um novo nível de interferência nos assuntos dos estados membros.

Como Orban forçou a União Europeia a tal conjuntura, e por que pareceu inútil tentar impedi-lo por tanto tempo, diz muito sobre as premissas de fundação do bloco e por que ele tropeçou diante de desafios populistas e nacionalistas.

Entrevistas com mais de uma dúzia de autoridades europeias atuais e antigas mostram como os sentimentos em relação a Orban e seu projeto iliberal evoluíram de complacência e incompreensão para um reconhecimento de que ele havia se tornado uma séria ameaça interna - apesar de a Hungria ter menos gente do que a área metropolitana de Paris e um língua esotérica que não tem nenhuma relação com as de seus vizinhos.

A negligência intencional foi perfeitamente resumida em 2015 em uma reunião, quando Jean-Claude Juncker, então presidente da Comissão Europeia, viu Orban chegando e disse: "O ditador está chegando", antes de cumprimentá-lo com a palavra "ditador" e dar-lhe um tapinha amigável no rosto.

Ninguém no poder queria confrontar Orban sobre questões como Estado de Direito e corrupção - especialmente seus colegas líderes nacionais, que têm assento no poderoso Conselho Europeu.

“No próprio conselho, senti a relutância dos pares de Orban em lidar com esse tipo de questão”, disse Luuk van Middelaar, assessor de Herman Van Rompuy quando ele era presidente do conselho. Ele acrescentou que o conselho era “como um clube, onde Viktor é apenas um deles - e eles são animais políticos, e se respeitam pelo simples fato de terem vencido uma eleição”.

Os líderes "preferem não lidar com batatas quentes ou os negócios uns dos outros quando podem evitá-los", disse van Middelaar.

Orban enfrenta novas eleições nesta primavera contra um conjunto de partidos de oposição formalmente unidos, mas extremamente diversificados. Mas ele se tornou um modelo para a política de identidade e religião, não apenas na Polônia, mas também nos Estados Unidos.

Na segunda-feira, o ex-presidente Donald J. Trump endossou Orban para a reeleição, prometendo "apoio total". Orban foi um dos primeiros apoiadores de Trump, endossando-o no verão de 2016 e novamente em 2020. Orban, disse Trump, era "provavelmente, como eu, um pouco controverso, mas tudo bem".

Alguns legisladores europeus reconheceram cedo que Orban estava pisoteando as normas democráticas, mas foram impedidos por líderes nacionais, especialmente os do Partido Popular Europeu, o poderoso agrupamento político de centro-direita que dominou o Parlamento Europeu na última década.

Entre os conservadores que protegeram Orban estava Angela Merkel, a chanceler da Alemanha na época. As empresas alemãs tinham grandes investimentos na Hungria, e Merkel viu o líder húngaro como um aliado político em Bruxelas. Um membro proeminente do Partido Popular Europeu disse que Merkel e seus assessores ignoraram as reclamações sobre Orban, dizendo que ele poderia ser difícil, mas que era importante mantê-lo na família.

“A maior falha - aquela pela qual ainda pagamos o preço hoje - é o Conselho Europeu”, disse Rui Tavares, um ex-legislador europeu que ajudou a escrever um relatório adotado em 2013 sobre as violações da Hungria. “O Conselho Europeu não fez nada.”

Orban e Angela Merkel, então chanceler alemã, em 2020 em Berlim. Na época, Merkel o via como um aliado político em Bruxelas. Foto: Odd Andersen/Agence France-Presse — Getty Images

Quando Orban propôs - e posteriormente introduziu - uma nova Constituição que violava os princípios europeus, Didier Reynders, então ministro das Relações Exteriores e Europeias da Bélgica, disse que tentou levantar o problema em uma reunião com líderes da União Europeia em 2011, mas não conseguiu.

“A reação foi de que isso não é um problema para os estados membros”, disse Reynders, que agora é comissário da União Europeia para justiça, acrescentando que “talvez a comissão, talvez o tribunal” deva tratar disso. “Mas agora é uma discussão permanente”, ele disse.

Ivan Krastev, um analista búlgaro da Europa, disse que Orban teve cuidado por vários anos após sua eleição em 2010 para"não cruzar as linhas vermelhas de Bruxelas, mas dançar junto com elas no que ele chamou de 'dança do pavão'".

Krastev disse que muitos líderes europeus presumiram que as nações que se juntaram ao bloco em 2004 ficariam gratas, seriam parceiras relativamente complacentes e calcularam mal como “países como Hungria, Polônia e República Tcheca sentiram depois que tinham que afirmar sua própria identidade e rejeitar Bruxelas em graus diferentes. ”

O partido de Orban adotou a nova Constituição e uma nova lei de mídia que restringia a liberdade de imprensa. Ele reformulou o sistema de justiça do país, removeu o chefe da Suprema Corte e criou um escritório para supervisionar os tribunais liderados pela esposa de um membro proeminente do partido do governo, o Fidesz. As leis eleitorais foram alteradas para favorecer o partido.

Fatores externos também fortaleceram Orban, incluindo em 2015, quando um número recorde de migrantes foi para a Europa e quando o partido de direita Lei e Justiça, de Jaroslaw Kaczynski, assumiu o poder na Polônia. De repente, ele tinha um aliado ali, e sua postura dura contra os migrantes também lhe rendeu apoio em outros lugares.

“O que libertou Orban foi 2015 e a crise migratória”, disse Mark Leonard, diretor do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “De repente, ele estava se posicionando por mais do que a Hungria, mas por questões mais amplas de migração, com o apoio da Alemanha e da Áustria e de outros estados da Europa Central, e isso lhe deu poder.”

Centenas de famílias esperaram do lado de fora de uma estação de trem em Budapeste durante a crise migratória de 2015. Foto: Mauricio Lima for The New York Times

Um ponto de inflexão mais acentuado ocorreu em maio de 2018 em uma reunião entre Orban e os líderes do Partido Popular Europeu: Joseph Daul, o presidente do partido, e Manfred Weber, o democrata cristão alemão que dirigia o Parlamento.

Eles o alertaram de que seu partido corria o risco de ser expulso do grupo parlamentar. Animado por conta de outra vitória eleitoral no mês anterior, Orban “sentiu-se poderoso” e revidou, de acordo com um funcionário que foi imediatamente informado sobre a reunião. “Se você tentar me expulsar, vou te destruir”, disse Orban, de acordo com o funcionário.

Demoraria 10 meses até que o Fidesz fosse suspenso. Dois anos depois, em março, Orban abandonou a aliança conservadora quando ficou claro que ela expulsaria seu partido.

Weber ainda lamenta a perda do Fidesz. “Por um lado, é um alívio”, ele disse. “Mas a saída de Orban não é uma vitória, mas uma derrota” no esforço de manter a centro-direita unida como “um amplo partido do povo”.

O fato de a União Europeia ter poucos e ineficazes instrumentos para punir uma nação que se desvia ajudou Orban. Mesmo o Tratado de Lisboa, que conferiu poderes reforçados ao Parlamento Europeu, tem essencialmente uma ferramenta inutilizável: o artigo 7, que pode retirar os direitos de voto de um país, mas apenas se for aprovado por unanimidade.

Em 2017, Frans Timmermans, então primeiro vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelo Estado de Direito, acionou o artigo contra a Polônia. O Parlamento Europeu fez o mesmo contra a Hungria em 2018. Mas ambas as medidas ficaram inevitavelmente paralisadas porque os dois países se protegem.

O tratado também permite que a comissão instaure procedimentos de infração - acusações legais - contra os Estados membros por violarem a lei da União Europeia. Mas o processo é lento, envolvendo cartas, respostas e recursos, e as decisões finais cabem ao Tribunal de Justiça Europeu. A maioria dos casos é resolvida antes de chegar ao tribunal.

Mas, de acordo com estudos de R. Daniel Kelemen da Universidade Rutgers e Tommaso Pavone da Universidade de Oslo, a comissão reduziu drasticamente os casos de infração após a adição de novos Estados membros em 2004. José Manuel Barroso, um ex-presidente da comissão, “comprou essa ideia de trabalhar mais cooperativamente com os governos e não apenas processá-los ”, disse Kelemen. Barroso não quis comentar.

As atitudes mudaram. Com o dinheiro do contribuinte em jogo, assim como o próximo orçamento de sete anos e o desprezo pelos valores compartilhados mostrados por Orban e Kaczynski nas mentes dos líderes, Bruxelas pode finalmente ter encontrado uma ferramenta útil para cuidar da política interna, com um mistura de ações judiciais que acusam violação de tratados europeus combinadas com graves consequências financeiras. Um marco foi finalmente estabelecido, disse Reynders. O grande momento chega este mês, quando o Tribunal de Justiça Europeu emite sua decisão.

Se a Hungria e a Polônia perderem o caso, como esperado, não está claro o que acontecerá se os dois países simplesmente se recusarem a cumprir a decisão. A União Europeia entrará cada vez mais em um território desconhecido. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

BRUXELAS - Depois de muita indulgência com relação a ele, os líderes da União Europeia agora consideram amplamente o primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orban, uma ameaça existencial a um bloco que se apresenta como um modelo de direitos humanos e Estado de Direito.

Orban passou a última década construindo firmemente seu “estado iliberal”, como ele orgulhosamente chama a Hungria, com a ajuda do generoso financiamento da União Europeia. Mesmo com seu projeto aumentando as fissuras no bloco, ao qual a Hungria aderiu em 2004, seus companheiros líderes nacionais olharam para o outro lado, comprometidos em ficar fora dos assuntos uns dos outros.

Depois de anos de complacência e pensamentos ilusórios, Bruxelas está finalmente tentando controlar o líder combativo do país, o primeiro-ministro Viktor Orban. Foto: Bernadett Szabo/Reuters

Mas agora o desafio e a intransigência de Orban tiveram um efeito importante, embora involuntário: servir como um catalisador para o sistema frequentemente lento da União Europeia em salvaguardar os princípios democráticos que são a base do bloco.

No início deste ano, o Tribunal de Justiça Europeu emitirá uma decisão histórica sobre se a união tem autoridade para tornar seus fundos de financiamento para os estados membros condicionados ao cumprimento dos valores centrais do bloco. Fazer isso permitiria a Bruxelas negar bilhões de euros a países que violassem esses valores.

O bloco tem trabalhado consistentemente no consenso político entre os líderes nacionais. Mas Orban levou Bruxelas a um limiar há muito tempo evitado: tornar a adesão sujeita a punições financeiras, não apenas políticas.

A nova fronteira pode ajudar a resolver um problema antigo - o que fazer com os mal-intencionados - ao mesmo tempo em que novos surgem. Não menos importante, poderia convidar a Comissão Europeia, o braço executivo do bloco, a exercer um novo nível de interferência nos assuntos dos estados membros.

Como Orban forçou a União Europeia a tal conjuntura, e por que pareceu inútil tentar impedi-lo por tanto tempo, diz muito sobre as premissas de fundação do bloco e por que ele tropeçou diante de desafios populistas e nacionalistas.

Entrevistas com mais de uma dúzia de autoridades europeias atuais e antigas mostram como os sentimentos em relação a Orban e seu projeto iliberal evoluíram de complacência e incompreensão para um reconhecimento de que ele havia se tornado uma séria ameaça interna - apesar de a Hungria ter menos gente do que a área metropolitana de Paris e um língua esotérica que não tem nenhuma relação com as de seus vizinhos.

A negligência intencional foi perfeitamente resumida em 2015 em uma reunião, quando Jean-Claude Juncker, então presidente da Comissão Europeia, viu Orban chegando e disse: "O ditador está chegando", antes de cumprimentá-lo com a palavra "ditador" e dar-lhe um tapinha amigável no rosto.

Ninguém no poder queria confrontar Orban sobre questões como Estado de Direito e corrupção - especialmente seus colegas líderes nacionais, que têm assento no poderoso Conselho Europeu.

“No próprio conselho, senti a relutância dos pares de Orban em lidar com esse tipo de questão”, disse Luuk van Middelaar, assessor de Herman Van Rompuy quando ele era presidente do conselho. Ele acrescentou que o conselho era “como um clube, onde Viktor é apenas um deles - e eles são animais políticos, e se respeitam pelo simples fato de terem vencido uma eleição”.

Os líderes "preferem não lidar com batatas quentes ou os negócios uns dos outros quando podem evitá-los", disse van Middelaar.

Orban enfrenta novas eleições nesta primavera contra um conjunto de partidos de oposição formalmente unidos, mas extremamente diversificados. Mas ele se tornou um modelo para a política de identidade e religião, não apenas na Polônia, mas também nos Estados Unidos.

Na segunda-feira, o ex-presidente Donald J. Trump endossou Orban para a reeleição, prometendo "apoio total". Orban foi um dos primeiros apoiadores de Trump, endossando-o no verão de 2016 e novamente em 2020. Orban, disse Trump, era "provavelmente, como eu, um pouco controverso, mas tudo bem".

Alguns legisladores europeus reconheceram cedo que Orban estava pisoteando as normas democráticas, mas foram impedidos por líderes nacionais, especialmente os do Partido Popular Europeu, o poderoso agrupamento político de centro-direita que dominou o Parlamento Europeu na última década.

Entre os conservadores que protegeram Orban estava Angela Merkel, a chanceler da Alemanha na época. As empresas alemãs tinham grandes investimentos na Hungria, e Merkel viu o líder húngaro como um aliado político em Bruxelas. Um membro proeminente do Partido Popular Europeu disse que Merkel e seus assessores ignoraram as reclamações sobre Orban, dizendo que ele poderia ser difícil, mas que era importante mantê-lo na família.

“A maior falha - aquela pela qual ainda pagamos o preço hoje - é o Conselho Europeu”, disse Rui Tavares, um ex-legislador europeu que ajudou a escrever um relatório adotado em 2013 sobre as violações da Hungria. “O Conselho Europeu não fez nada.”

Orban e Angela Merkel, então chanceler alemã, em 2020 em Berlim. Na época, Merkel o via como um aliado político em Bruxelas. Foto: Odd Andersen/Agence France-Presse — Getty Images

Quando Orban propôs - e posteriormente introduziu - uma nova Constituição que violava os princípios europeus, Didier Reynders, então ministro das Relações Exteriores e Europeias da Bélgica, disse que tentou levantar o problema em uma reunião com líderes da União Europeia em 2011, mas não conseguiu.

“A reação foi de que isso não é um problema para os estados membros”, disse Reynders, que agora é comissário da União Europeia para justiça, acrescentando que “talvez a comissão, talvez o tribunal” deva tratar disso. “Mas agora é uma discussão permanente”, ele disse.

Ivan Krastev, um analista búlgaro da Europa, disse que Orban teve cuidado por vários anos após sua eleição em 2010 para"não cruzar as linhas vermelhas de Bruxelas, mas dançar junto com elas no que ele chamou de 'dança do pavão'".

Krastev disse que muitos líderes europeus presumiram que as nações que se juntaram ao bloco em 2004 ficariam gratas, seriam parceiras relativamente complacentes e calcularam mal como “países como Hungria, Polônia e República Tcheca sentiram depois que tinham que afirmar sua própria identidade e rejeitar Bruxelas em graus diferentes. ”

O partido de Orban adotou a nova Constituição e uma nova lei de mídia que restringia a liberdade de imprensa. Ele reformulou o sistema de justiça do país, removeu o chefe da Suprema Corte e criou um escritório para supervisionar os tribunais liderados pela esposa de um membro proeminente do partido do governo, o Fidesz. As leis eleitorais foram alteradas para favorecer o partido.

Fatores externos também fortaleceram Orban, incluindo em 2015, quando um número recorde de migrantes foi para a Europa e quando o partido de direita Lei e Justiça, de Jaroslaw Kaczynski, assumiu o poder na Polônia. De repente, ele tinha um aliado ali, e sua postura dura contra os migrantes também lhe rendeu apoio em outros lugares.

“O que libertou Orban foi 2015 e a crise migratória”, disse Mark Leonard, diretor do Conselho Europeu de Relações Exteriores. “De repente, ele estava se posicionando por mais do que a Hungria, mas por questões mais amplas de migração, com o apoio da Alemanha e da Áustria e de outros estados da Europa Central, e isso lhe deu poder.”

Centenas de famílias esperaram do lado de fora de uma estação de trem em Budapeste durante a crise migratória de 2015. Foto: Mauricio Lima for The New York Times

Um ponto de inflexão mais acentuado ocorreu em maio de 2018 em uma reunião entre Orban e os líderes do Partido Popular Europeu: Joseph Daul, o presidente do partido, e Manfred Weber, o democrata cristão alemão que dirigia o Parlamento.

Eles o alertaram de que seu partido corria o risco de ser expulso do grupo parlamentar. Animado por conta de outra vitória eleitoral no mês anterior, Orban “sentiu-se poderoso” e revidou, de acordo com um funcionário que foi imediatamente informado sobre a reunião. “Se você tentar me expulsar, vou te destruir”, disse Orban, de acordo com o funcionário.

Demoraria 10 meses até que o Fidesz fosse suspenso. Dois anos depois, em março, Orban abandonou a aliança conservadora quando ficou claro que ela expulsaria seu partido.

Weber ainda lamenta a perda do Fidesz. “Por um lado, é um alívio”, ele disse. “Mas a saída de Orban não é uma vitória, mas uma derrota” no esforço de manter a centro-direita unida como “um amplo partido do povo”.

O fato de a União Europeia ter poucos e ineficazes instrumentos para punir uma nação que se desvia ajudou Orban. Mesmo o Tratado de Lisboa, que conferiu poderes reforçados ao Parlamento Europeu, tem essencialmente uma ferramenta inutilizável: o artigo 7, que pode retirar os direitos de voto de um país, mas apenas se for aprovado por unanimidade.

Em 2017, Frans Timmermans, então primeiro vice-presidente da Comissão Europeia responsável pelo Estado de Direito, acionou o artigo contra a Polônia. O Parlamento Europeu fez o mesmo contra a Hungria em 2018. Mas ambas as medidas ficaram inevitavelmente paralisadas porque os dois países se protegem.

O tratado também permite que a comissão instaure procedimentos de infração - acusações legais - contra os Estados membros por violarem a lei da União Europeia. Mas o processo é lento, envolvendo cartas, respostas e recursos, e as decisões finais cabem ao Tribunal de Justiça Europeu. A maioria dos casos é resolvida antes de chegar ao tribunal.

Mas, de acordo com estudos de R. Daniel Kelemen da Universidade Rutgers e Tommaso Pavone da Universidade de Oslo, a comissão reduziu drasticamente os casos de infração após a adição de novos Estados membros em 2004. José Manuel Barroso, um ex-presidente da comissão, “comprou essa ideia de trabalhar mais cooperativamente com os governos e não apenas processá-los ”, disse Kelemen. Barroso não quis comentar.

As atitudes mudaram. Com o dinheiro do contribuinte em jogo, assim como o próximo orçamento de sete anos e o desprezo pelos valores compartilhados mostrados por Orban e Kaczynski nas mentes dos líderes, Bruxelas pode finalmente ter encontrado uma ferramenta útil para cuidar da política interna, com um mistura de ações judiciais que acusam violação de tratados europeus combinadas com graves consequências financeiras. Um marco foi finalmente estabelecido, disse Reynders. O grande momento chega este mês, quando o Tribunal de Justiça Europeu emite sua decisão.

Se a Hungria e a Polônia perderem o caso, como esperado, não está claro o que acontecerá se os dois países simplesmente se recusarem a cumprir a decisão. A União Europeia entrará cada vez mais em um território desconhecido. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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