Como as tropas da Ucrânia invadiram a Rússia e causaram uma reviravolta na guerra?


Planejada em segredo, a incursão foi um movimento ousado para alterar a dinâmica da guerra e colocar Moscou na defensiva - uma jogada que também poderia deixar a Ucrânia exposta

Por Kim Barker, Anton Troianovski, Andrew E. Kramer, Constant Méheut, Alina Lobzina, Eric Schmitt e Sanjana Varghese

Na semana passada, a Ucrânia lançou uma audaciosa ofensiva militar, planejada e executada secretamente com o objetivo de subverter a dinâmica de uma guerra que Kiev aparentava estar perdendo cidade a cidade, conforme as tropas russas ganhavam terreno no leste. A operação surpreendeu até mesmo os aliados mais próximos da Ucrânia, incluindo os Estados Unidos, e pressiona limites a respeito da maneira que o equipamento militar do Ocidente teria uso permitido dentro do território da Rússia.

Principalmente na defensiva desde a contraofensiva fracassada do ano passado, a Ucrânia avançou mais de 11 quilômetros na Rússia, ao longo de um front de 40 quilômetros e fez dúzias de soldados russos prisioneiros, afirmam analistas e autoridades russas. O governador da região russa de Kursk disse na segunda-feira que a Ucrânia controla 28 cidades e vilarejos em sua divisão administrativa. Mais de 132 mil pessoas foram retiradas de áreas próximas, afirmaram autoridades russas.

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“A Rússia levou a guerra para os outros, agora ela está voltando para casa”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, em seu discurso na noite da segunda-feira.

Um Humvee ucraniano passa pelo posto de fronteira russo destruído no cruzamento da fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Esta ofensiva é uma aposta enorme, especialmente porque a Rússia domina grande parte da linha de frente na Ucrânia e tem feito incursões significativas no leste. Se forem capazes de manter território, as forças ucranianas podem sobrecarregar as tropas russas, causar um grande embaraço ao presidente russo, Vladimir Putin, e conseguir uma moeda de troca para qualquer negociação de paz. Mas se a Rússia conseguir expulsar as tropas ucranianas de Kursk e simultaneamente avançar no leste da Ucrânia, os comandantes militares de Kiev poderiam ser responsabilizados por dar aos russos uma abertura para ganhar mais terreno.

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As autoridades ucranianas não deram nenhum pio sobre a missão, e analistas militares que acompanham diariamente os movimentos da guerra ficaram surpresos.

“É um bom exemplo de como uma operação moderna bem-sucedida requer medidas extremas de segurança operacional e artimanhas”, afirmou o analista Pasi Paroinen, do Black Bird Group, organização com base na Finlândia que estuda imagens de campos de batalha.

Veículos militares ucranianos passam por uma placa onde se lê Ucrânia, à esquerda, e Rússia, perto do posto de fronteira russo destruído no lado russo da passagem de fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT
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Movimento silencioso

Houve indícios do que estava por vir. Mapas dos campos de batalha compilados por analistas independentes mostraram que soldados de brigadas da Ucrânia que combatiam havia muito tempo no leste movimentaram-se discretamente para a região ucraniana de Sumi, adjacente à fronteira com Kursk.

Poucos russos notaram. Um relatório foi enviado para o comando militar de Moscou cerca de um mês antes do ataque afirmando que “forças foram detectadas e essa informação de inteligência indicava preparativos para um ataque”, afirmou após a incursão o proeminente parlamentar e ex-oficial de alta patente do Exército russo Andrei Guruliov.

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“Mas o generalato respondeu com uma ordem de não entrar em pânico e afirmando que o comando sabe o que faz”, lamentou Guruliov na TV russa.

A Ucrânia enviou partes de brigadas para a região de Sumi afirmando que haveria um treinamento e que os soldados recolheriam novos equipamentos, disse o tenente-coronel Artem, subcomandante de um dos grupamentos, que pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome e sua patente em acordo com o protocolo militar.

Tropas ucranianas em cima de um tanque dirigindo perto da fronteira russa na região de Sumi, na Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT
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Os ucranianos se esconderam à vista de todos. Os oficiais receberam ordens para evitar usar uniformes militares quando entravam em cidades e vilarejos, para não atrair atenção, afirmou um dos oficiais, que se identificou pelo codinome ”Tikhii”, seguindo o protocolo militar.

Alguns residentes notaram a concentração de soldados. “Talvez eles estivessem reforçando a fronteira, talvez construindo alguma coisa”, afirmou a gestora do Distrito de Iunakivka, Elena Sima, a cerca de 8 quilômetros da fronteira. “Todos tentavam adivinhar.”

Em Khotin, o barulho dos veículos blindados sobre lagartas despertou a professora de educação infantil Natalia Vialina, de 44 anos, várias noites, sucessivamente. Mas no vilarejo, afirmou ela, “ninguém dizia nada”.

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Mesmo dentro do Exército poucos foram informados sobre a operação. Tikhyi — que significa “sujeito calado” — afirmou que algumas unidades foram informadas sobre sua missão somente quando a operação estava prestes a começar.

Em 3 de agosto, afirmou Artem, o comandante de sua brigada reuniu os oficiais mais graduados à beira de uma estrada que atravessa um bosque para anunciar os objetivos da missão: provocar o deslocamento de tropas russas para ajudar os soldados ucranianos que lutam na região do Donbas; tirar Sumi do alcance da artilharia russa; e desmoralizar os russos mostrando que há falhas em sua inteligência e seu planejamento.

Raisa Usenko é carregada por uma equipe de retirada ucraniana de sua casa na aldeia de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

‘Desafios difíceis adiante’

Os militares ucranianos não tinham tentado uma incursão séria dentro da Rússia desde o início da invasão em escala total de Moscou, em 2022. Unidades da Ucrânia tinham feito rápidas operações do outro lado da fronteira, uma em maio de 2023 e outra em março deste ano. Dois obscuros grupos paramilitares ligados a Kiev assumiram a autoria das incursões.

Distante dos combates, a região de Kursk era o alvo mais fácil ao longo do front de 965 quilômetros que atravessa o leste e o sul da Ucrânia, afirmou o analista americano Brady Africk, que mapeia as defesas russas.

“As fortificações da Rússia em Kursk são menos densas do que em outras regiões em que as forças russas construíram defesas formidáveis, como no sul”, afirmou Africk.

Um veículo militar ucraniano passa por uma cratera à beira da estrada minutos depois de um ataque russo perto da fronteira na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

Pouco antes do meio-dia de 6 de agosto, as autoridades russas informaram que cerca de 300 soldados, mais de 20 veículos blindados de combate e 11 tanques da 22.ª Brigada Mecanizada da Ucrânia tinham entrado na Rússia. Mas esses relatos iniciais foram recebidos com indiferença. Desinformação e propaganda tornaram-se armas em outro campo de batalha desta guerra, e ninguém acreditava que uma incursão desse tipo fazia algum sentido taticamente.

Outras centenas de soldados ucranianos avançaram, atravessando postos de controle fronteiriço e perfurando duas linhas de defesa. Com menos minas e menos obstáculos contra militares, as brigadas mecanizadas da Ucrânia movimentaram-se rapidamente.

O soldado ucraniano de infantaria Oleksandr, que se recusou a informar seu sobrenome citando protocolos militares, afirmou que muitos soldados russos fugiram quando as forças de Kiev avançaram. Oito militares russos se renderam em um posto de controle, acrescentou ele.

Um homem empurra uma bicicleta ao passar por um tanque ucraniano na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Todos estamos felizes”, afirmou Oleksandr numa entrevista por telefone, às 17h da quinta-feira, a partir de um ponto desconhecido dentro da Rússia. “Mas sabemos que ainda temos desafios difíceis adiante.”

Alguns soldados ucranianos não têm conseguido evitar mencionar publicamente seus movimentos. Eles têm postado vídeos e selfies e se gabado sobre finalmente ter levado a guerra para dentro da Rússia.

“A campanha da Ucrânia em Kursk é de fato benéfica”, afirmou o analista George Barros, do Instituto para o Estudo da Guerra, em Washington.

Retirada caótica

Os russos que vivem próximo à fronteira souberam da incursão ao ouvir explosões ruidosas.

Um morador de Sudzha chamado Ivan, de 34 anos, afirmou em uma troca de mensagens de texto, na quinta-feira, que estava tentando retirar as pessoas da localidade. Posteriormente naquele dia, ele escreveu contando que estava no hospital. Seu carro tinha sido atingido quando ele deixava Sudzha, que tem cerca de 6 mil habitantes.

Nina Klimenko, 90 anos, é carregada em uma maca por uma equipe de retirada ucraniana no vilarejo de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Nós fomos abandonados”, afirmou Ivan. “As pessoas estão ajudando como podem. O governo não se importa.”

Na segunda-feira, o governador de Kursk afirmou que mais de 100 civis ficaram feridos e dúzias foram mortos, mas não foi possível checar a informação independentemente.

O Times analisou várias imagens de satélite registradas desde 6 de agosto que mostraram pelo menos duas dúzias de estruturas danificadas ou destruídas em Sudzha e num vilarejo vizinho, Goncharovka, incluindo residências, prédios de apartamentos, um posto de gasolina e instalações de uma escola de artes.

O ativista político independente Ian Furtsev, de 38 anos, morador da cidade de Kursk, afirmou que, conforme a incursão avançou, viu pessoas em fuga chegando para evitar os combates. “Há muitas opiniões diferentes” sobre a guerra, afirmou ele. “Mas todos consideram isso uma tragédia.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Na semana passada, a Ucrânia lançou uma audaciosa ofensiva militar, planejada e executada secretamente com o objetivo de subverter a dinâmica de uma guerra que Kiev aparentava estar perdendo cidade a cidade, conforme as tropas russas ganhavam terreno no leste. A operação surpreendeu até mesmo os aliados mais próximos da Ucrânia, incluindo os Estados Unidos, e pressiona limites a respeito da maneira que o equipamento militar do Ocidente teria uso permitido dentro do território da Rússia.

Principalmente na defensiva desde a contraofensiva fracassada do ano passado, a Ucrânia avançou mais de 11 quilômetros na Rússia, ao longo de um front de 40 quilômetros e fez dúzias de soldados russos prisioneiros, afirmam analistas e autoridades russas. O governador da região russa de Kursk disse na segunda-feira que a Ucrânia controla 28 cidades e vilarejos em sua divisão administrativa. Mais de 132 mil pessoas foram retiradas de áreas próximas, afirmaram autoridades russas.

“A Rússia levou a guerra para os outros, agora ela está voltando para casa”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, em seu discurso na noite da segunda-feira.

Um Humvee ucraniano passa pelo posto de fronteira russo destruído no cruzamento da fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Esta ofensiva é uma aposta enorme, especialmente porque a Rússia domina grande parte da linha de frente na Ucrânia e tem feito incursões significativas no leste. Se forem capazes de manter território, as forças ucranianas podem sobrecarregar as tropas russas, causar um grande embaraço ao presidente russo, Vladimir Putin, e conseguir uma moeda de troca para qualquer negociação de paz. Mas se a Rússia conseguir expulsar as tropas ucranianas de Kursk e simultaneamente avançar no leste da Ucrânia, os comandantes militares de Kiev poderiam ser responsabilizados por dar aos russos uma abertura para ganhar mais terreno.

As autoridades ucranianas não deram nenhum pio sobre a missão, e analistas militares que acompanham diariamente os movimentos da guerra ficaram surpresos.

“É um bom exemplo de como uma operação moderna bem-sucedida requer medidas extremas de segurança operacional e artimanhas”, afirmou o analista Pasi Paroinen, do Black Bird Group, organização com base na Finlândia que estuda imagens de campos de batalha.

Veículos militares ucranianos passam por uma placa onde se lê Ucrânia, à esquerda, e Rússia, perto do posto de fronteira russo destruído no lado russo da passagem de fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Movimento silencioso

Houve indícios do que estava por vir. Mapas dos campos de batalha compilados por analistas independentes mostraram que soldados de brigadas da Ucrânia que combatiam havia muito tempo no leste movimentaram-se discretamente para a região ucraniana de Sumi, adjacente à fronteira com Kursk.

Poucos russos notaram. Um relatório foi enviado para o comando militar de Moscou cerca de um mês antes do ataque afirmando que “forças foram detectadas e essa informação de inteligência indicava preparativos para um ataque”, afirmou após a incursão o proeminente parlamentar e ex-oficial de alta patente do Exército russo Andrei Guruliov.

“Mas o generalato respondeu com uma ordem de não entrar em pânico e afirmando que o comando sabe o que faz”, lamentou Guruliov na TV russa.

A Ucrânia enviou partes de brigadas para a região de Sumi afirmando que haveria um treinamento e que os soldados recolheriam novos equipamentos, disse o tenente-coronel Artem, subcomandante de um dos grupamentos, que pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome e sua patente em acordo com o protocolo militar.

Tropas ucranianas em cima de um tanque dirigindo perto da fronteira russa na região de Sumi, na Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Os ucranianos se esconderam à vista de todos. Os oficiais receberam ordens para evitar usar uniformes militares quando entravam em cidades e vilarejos, para não atrair atenção, afirmou um dos oficiais, que se identificou pelo codinome ”Tikhii”, seguindo o protocolo militar.

Alguns residentes notaram a concentração de soldados. “Talvez eles estivessem reforçando a fronteira, talvez construindo alguma coisa”, afirmou a gestora do Distrito de Iunakivka, Elena Sima, a cerca de 8 quilômetros da fronteira. “Todos tentavam adivinhar.”

Em Khotin, o barulho dos veículos blindados sobre lagartas despertou a professora de educação infantil Natalia Vialina, de 44 anos, várias noites, sucessivamente. Mas no vilarejo, afirmou ela, “ninguém dizia nada”.

Mesmo dentro do Exército poucos foram informados sobre a operação. Tikhyi — que significa “sujeito calado” — afirmou que algumas unidades foram informadas sobre sua missão somente quando a operação estava prestes a começar.

Em 3 de agosto, afirmou Artem, o comandante de sua brigada reuniu os oficiais mais graduados à beira de uma estrada que atravessa um bosque para anunciar os objetivos da missão: provocar o deslocamento de tropas russas para ajudar os soldados ucranianos que lutam na região do Donbas; tirar Sumi do alcance da artilharia russa; e desmoralizar os russos mostrando que há falhas em sua inteligência e seu planejamento.

Raisa Usenko é carregada por uma equipe de retirada ucraniana de sua casa na aldeia de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

‘Desafios difíceis adiante’

Os militares ucranianos não tinham tentado uma incursão séria dentro da Rússia desde o início da invasão em escala total de Moscou, em 2022. Unidades da Ucrânia tinham feito rápidas operações do outro lado da fronteira, uma em maio de 2023 e outra em março deste ano. Dois obscuros grupos paramilitares ligados a Kiev assumiram a autoria das incursões.

Distante dos combates, a região de Kursk era o alvo mais fácil ao longo do front de 965 quilômetros que atravessa o leste e o sul da Ucrânia, afirmou o analista americano Brady Africk, que mapeia as defesas russas.

“As fortificações da Rússia em Kursk são menos densas do que em outras regiões em que as forças russas construíram defesas formidáveis, como no sul”, afirmou Africk.

Um veículo militar ucraniano passa por uma cratera à beira da estrada minutos depois de um ataque russo perto da fronteira na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

Pouco antes do meio-dia de 6 de agosto, as autoridades russas informaram que cerca de 300 soldados, mais de 20 veículos blindados de combate e 11 tanques da 22.ª Brigada Mecanizada da Ucrânia tinham entrado na Rússia. Mas esses relatos iniciais foram recebidos com indiferença. Desinformação e propaganda tornaram-se armas em outro campo de batalha desta guerra, e ninguém acreditava que uma incursão desse tipo fazia algum sentido taticamente.

Outras centenas de soldados ucranianos avançaram, atravessando postos de controle fronteiriço e perfurando duas linhas de defesa. Com menos minas e menos obstáculos contra militares, as brigadas mecanizadas da Ucrânia movimentaram-se rapidamente.

O soldado ucraniano de infantaria Oleksandr, que se recusou a informar seu sobrenome citando protocolos militares, afirmou que muitos soldados russos fugiram quando as forças de Kiev avançaram. Oito militares russos se renderam em um posto de controle, acrescentou ele.

Um homem empurra uma bicicleta ao passar por um tanque ucraniano na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Todos estamos felizes”, afirmou Oleksandr numa entrevista por telefone, às 17h da quinta-feira, a partir de um ponto desconhecido dentro da Rússia. “Mas sabemos que ainda temos desafios difíceis adiante.”

Alguns soldados ucranianos não têm conseguido evitar mencionar publicamente seus movimentos. Eles têm postado vídeos e selfies e se gabado sobre finalmente ter levado a guerra para dentro da Rússia.

“A campanha da Ucrânia em Kursk é de fato benéfica”, afirmou o analista George Barros, do Instituto para o Estudo da Guerra, em Washington.

Retirada caótica

Os russos que vivem próximo à fronteira souberam da incursão ao ouvir explosões ruidosas.

Um morador de Sudzha chamado Ivan, de 34 anos, afirmou em uma troca de mensagens de texto, na quinta-feira, que estava tentando retirar as pessoas da localidade. Posteriormente naquele dia, ele escreveu contando que estava no hospital. Seu carro tinha sido atingido quando ele deixava Sudzha, que tem cerca de 6 mil habitantes.

Nina Klimenko, 90 anos, é carregada em uma maca por uma equipe de retirada ucraniana no vilarejo de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Nós fomos abandonados”, afirmou Ivan. “As pessoas estão ajudando como podem. O governo não se importa.”

Na segunda-feira, o governador de Kursk afirmou que mais de 100 civis ficaram feridos e dúzias foram mortos, mas não foi possível checar a informação independentemente.

O Times analisou várias imagens de satélite registradas desde 6 de agosto que mostraram pelo menos duas dúzias de estruturas danificadas ou destruídas em Sudzha e num vilarejo vizinho, Goncharovka, incluindo residências, prédios de apartamentos, um posto de gasolina e instalações de uma escola de artes.

O ativista político independente Ian Furtsev, de 38 anos, morador da cidade de Kursk, afirmou que, conforme a incursão avançou, viu pessoas em fuga chegando para evitar os combates. “Há muitas opiniões diferentes” sobre a guerra, afirmou ele. “Mas todos consideram isso uma tragédia.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

Na semana passada, a Ucrânia lançou uma audaciosa ofensiva militar, planejada e executada secretamente com o objetivo de subverter a dinâmica de uma guerra que Kiev aparentava estar perdendo cidade a cidade, conforme as tropas russas ganhavam terreno no leste. A operação surpreendeu até mesmo os aliados mais próximos da Ucrânia, incluindo os Estados Unidos, e pressiona limites a respeito da maneira que o equipamento militar do Ocidente teria uso permitido dentro do território da Rússia.

Principalmente na defensiva desde a contraofensiva fracassada do ano passado, a Ucrânia avançou mais de 11 quilômetros na Rússia, ao longo de um front de 40 quilômetros e fez dúzias de soldados russos prisioneiros, afirmam analistas e autoridades russas. O governador da região russa de Kursk disse na segunda-feira que a Ucrânia controla 28 cidades e vilarejos em sua divisão administrativa. Mais de 132 mil pessoas foram retiradas de áreas próximas, afirmaram autoridades russas.

“A Rússia levou a guerra para os outros, agora ela está voltando para casa”, afirmou o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, em seu discurso na noite da segunda-feira.

Um Humvee ucraniano passa pelo posto de fronteira russo destruído no cruzamento da fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Esta ofensiva é uma aposta enorme, especialmente porque a Rússia domina grande parte da linha de frente na Ucrânia e tem feito incursões significativas no leste. Se forem capazes de manter território, as forças ucranianas podem sobrecarregar as tropas russas, causar um grande embaraço ao presidente russo, Vladimir Putin, e conseguir uma moeda de troca para qualquer negociação de paz. Mas se a Rússia conseguir expulsar as tropas ucranianas de Kursk e simultaneamente avançar no leste da Ucrânia, os comandantes militares de Kiev poderiam ser responsabilizados por dar aos russos uma abertura para ganhar mais terreno.

As autoridades ucranianas não deram nenhum pio sobre a missão, e analistas militares que acompanham diariamente os movimentos da guerra ficaram surpresos.

“É um bom exemplo de como uma operação moderna bem-sucedida requer medidas extremas de segurança operacional e artimanhas”, afirmou o analista Pasi Paroinen, do Black Bird Group, organização com base na Finlândia que estuda imagens de campos de batalha.

Veículos militares ucranianos passam por uma placa onde se lê Ucrânia, à esquerda, e Rússia, perto do posto de fronteira russo destruído no lado russo da passagem de fronteira de Sudzha com a Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Movimento silencioso

Houve indícios do que estava por vir. Mapas dos campos de batalha compilados por analistas independentes mostraram que soldados de brigadas da Ucrânia que combatiam havia muito tempo no leste movimentaram-se discretamente para a região ucraniana de Sumi, adjacente à fronteira com Kursk.

Poucos russos notaram. Um relatório foi enviado para o comando militar de Moscou cerca de um mês antes do ataque afirmando que “forças foram detectadas e essa informação de inteligência indicava preparativos para um ataque”, afirmou após a incursão o proeminente parlamentar e ex-oficial de alta patente do Exército russo Andrei Guruliov.

“Mas o generalato respondeu com uma ordem de não entrar em pânico e afirmando que o comando sabe o que faz”, lamentou Guruliov na TV russa.

A Ucrânia enviou partes de brigadas para a região de Sumi afirmando que haveria um treinamento e que os soldados recolheriam novos equipamentos, disse o tenente-coronel Artem, subcomandante de um dos grupamentos, que pediu para ser identificado apenas por seu primeiro nome e sua patente em acordo com o protocolo militar.

Tropas ucranianas em cima de um tanque dirigindo perto da fronteira russa na região de Sumi, na Ucrânia, na segunda-feira, 12 de agosto de 2024 Foto: David Guttenfelder/NYT

Os ucranianos se esconderam à vista de todos. Os oficiais receberam ordens para evitar usar uniformes militares quando entravam em cidades e vilarejos, para não atrair atenção, afirmou um dos oficiais, que se identificou pelo codinome ”Tikhii”, seguindo o protocolo militar.

Alguns residentes notaram a concentração de soldados. “Talvez eles estivessem reforçando a fronteira, talvez construindo alguma coisa”, afirmou a gestora do Distrito de Iunakivka, Elena Sima, a cerca de 8 quilômetros da fronteira. “Todos tentavam adivinhar.”

Em Khotin, o barulho dos veículos blindados sobre lagartas despertou a professora de educação infantil Natalia Vialina, de 44 anos, várias noites, sucessivamente. Mas no vilarejo, afirmou ela, “ninguém dizia nada”.

Mesmo dentro do Exército poucos foram informados sobre a operação. Tikhyi — que significa “sujeito calado” — afirmou que algumas unidades foram informadas sobre sua missão somente quando a operação estava prestes a começar.

Em 3 de agosto, afirmou Artem, o comandante de sua brigada reuniu os oficiais mais graduados à beira de uma estrada que atravessa um bosque para anunciar os objetivos da missão: provocar o deslocamento de tropas russas para ajudar os soldados ucranianos que lutam na região do Donbas; tirar Sumi do alcance da artilharia russa; e desmoralizar os russos mostrando que há falhas em sua inteligência e seu planejamento.

Raisa Usenko é carregada por uma equipe de retirada ucraniana de sua casa na aldeia de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

‘Desafios difíceis adiante’

Os militares ucranianos não tinham tentado uma incursão séria dentro da Rússia desde o início da invasão em escala total de Moscou, em 2022. Unidades da Ucrânia tinham feito rápidas operações do outro lado da fronteira, uma em maio de 2023 e outra em março deste ano. Dois obscuros grupos paramilitares ligados a Kiev assumiram a autoria das incursões.

Distante dos combates, a região de Kursk era o alvo mais fácil ao longo do front de 965 quilômetros que atravessa o leste e o sul da Ucrânia, afirmou o analista americano Brady Africk, que mapeia as defesas russas.

“As fortificações da Rússia em Kursk são menos densas do que em outras regiões em que as forças russas construíram defesas formidáveis, como no sul”, afirmou Africk.

Um veículo militar ucraniano passa por uma cratera à beira da estrada minutos depois de um ataque russo perto da fronteira na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

Pouco antes do meio-dia de 6 de agosto, as autoridades russas informaram que cerca de 300 soldados, mais de 20 veículos blindados de combate e 11 tanques da 22.ª Brigada Mecanizada da Ucrânia tinham entrado na Rússia. Mas esses relatos iniciais foram recebidos com indiferença. Desinformação e propaganda tornaram-se armas em outro campo de batalha desta guerra, e ninguém acreditava que uma incursão desse tipo fazia algum sentido taticamente.

Outras centenas de soldados ucranianos avançaram, atravessando postos de controle fronteiriço e perfurando duas linhas de defesa. Com menos minas e menos obstáculos contra militares, as brigadas mecanizadas da Ucrânia movimentaram-se rapidamente.

O soldado ucraniano de infantaria Oleksandr, que se recusou a informar seu sobrenome citando protocolos militares, afirmou que muitos soldados russos fugiram quando as forças de Kiev avançaram. Oito militares russos se renderam em um posto de controle, acrescentou ele.

Um homem empurra uma bicicleta ao passar por um tanque ucraniano na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Todos estamos felizes”, afirmou Oleksandr numa entrevista por telefone, às 17h da quinta-feira, a partir de um ponto desconhecido dentro da Rússia. “Mas sabemos que ainda temos desafios difíceis adiante.”

Alguns soldados ucranianos não têm conseguido evitar mencionar publicamente seus movimentos. Eles têm postado vídeos e selfies e se gabado sobre finalmente ter levado a guerra para dentro da Rússia.

“A campanha da Ucrânia em Kursk é de fato benéfica”, afirmou o analista George Barros, do Instituto para o Estudo da Guerra, em Washington.

Retirada caótica

Os russos que vivem próximo à fronteira souberam da incursão ao ouvir explosões ruidosas.

Um morador de Sudzha chamado Ivan, de 34 anos, afirmou em uma troca de mensagens de texto, na quinta-feira, que estava tentando retirar as pessoas da localidade. Posteriormente naquele dia, ele escreveu contando que estava no hospital. Seu carro tinha sido atingido quando ele deixava Sudzha, que tem cerca de 6 mil habitantes.

Nina Klimenko, 90 anos, é carregada em uma maca por uma equipe de retirada ucraniana no vilarejo de Iunakivka, na região de Sumi Foto: David Guttenfelder/NYT

“Nós fomos abandonados”, afirmou Ivan. “As pessoas estão ajudando como podem. O governo não se importa.”

Na segunda-feira, o governador de Kursk afirmou que mais de 100 civis ficaram feridos e dúzias foram mortos, mas não foi possível checar a informação independentemente.

O Times analisou várias imagens de satélite registradas desde 6 de agosto que mostraram pelo menos duas dúzias de estruturas danificadas ou destruídas em Sudzha e num vilarejo vizinho, Goncharovka, incluindo residências, prédios de apartamentos, um posto de gasolina e instalações de uma escola de artes.

O ativista político independente Ian Furtsev, de 38 anos, morador da cidade de Kursk, afirmou que, conforme a incursão avançou, viu pessoas em fuga chegando para evitar os combates. “Há muitas opiniões diferentes” sobre a guerra, afirmou ele. “Mas todos consideram isso uma tragédia.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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