Como dois anos de Guerra na Ucrânia tornaram o mundo mais inseguro e bélico


Gastos mundiais com armamento atingiram um novo recorde em 2023, com US$ 2,2 trilhões, tendência que deve se manter com aumento de conflitos na Ásia, África e Oriente Médio

Por Carolina Marins

Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, emitiu a ordem para invadir a Ucrânia, há exatos dois anos, a sensação de segurança mundial foi rompida. Pela primeira vez desde a 2ª Guerra, uma potência - com armas nucleares - violou o território de outro país, indo contra todos os acordos assinados até então. O episódio levou o resto do mundo a uma corrida para aumentar as suas capacidades militares, impulsionando um novo recorde de gastos em 2023.

Foram investidos mais de US$ 2,2 trilhões (R$ 10,9 trilhões) em capacidades militares no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), um aumento de 9% em relação a 2022. Em seu 65º relatório “Balanço Militar”, o instituto projeta que 2024 também deve trazer um novo recorde, com a política de modernização militar da China, a guerra de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza e consecutivos conflitos e golpes militares na África.

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Desse montante, os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foram responsáveis por 50% dos gastos, sendo os Estados Unidos os líderes do ranking, com 40,5% da fatia. A China gastou 10% desse valor, enquanto a Rússia consumiu 4,8%. O restante do mundo investiu 27,4% desses trilhões.

Um soldado ucraniano próximo de um tanque russo destruído em Trostianets, em março de 2022 Foto: FADEL SENNA/AFP

“O ritmo de gastos com munições na guerra entre Rússia e Ucrânia também levou a uma reflexão no Ocidente de que as capacidades de produção estão atrofiadas, com os países correndo para corrigir deficiências de anos de subinvestimento”, afirma o relatório em sua introdução.

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E continua: “A guerra na Europa deixou sua marca de outras maneiras também. O uso pela Ucrânia de veículos marítimos não tripulados de baixo custo para atacar a Frota do Mar Negro da Rússia deu a outros uma maior urgência em buscar tais equipamentos”.

“E embora veículos aéreos não tripulados (UAVs) já sejam uma parte das forças armadas modernas há algum tempo, conflitos recentes demonstraram a utilidade de uma gama muito maior de tais sistemas. A demanda impulsionou uma onda de acordos de exportação, com a Turquia e o Irã fornecendo UAVs a vários atores”, completa.

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Mudança de curso

O aumento de gastos militares, especialmente pela Europa, já vinha se desenhando desde 2014, depois que Putin anexou ilegalmente a Crimeia. Mas a invasão em larga escala da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 soou o alarme para o resto do mundo.

Países como Alemanha e Japão, cujos gastos militares eram reduzidos desde a 2ª Guerra, adotaram uma doutrina de segurança para reforçar suas defesas. No caso dos japoneses, visando aumentar as defesas contra outro vizinho: a China.

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“As ações militares de Moscou ampliaram preocupações em outras partes do mundo, especialmente no Indo-Pacífico, de que um vizinho militarmente poderoso possa tentar impor sua vontade sobre outros”, acrescenta o documento da IISS.

Entre as mudanças de estratégias, o relatório aponta: na Ásia, Japão e Coreia do Sul buscaram estreitar laços de defesa; as Filipinas retomaram a cooperação militar com os EUA; Taiwan fortaleceu as suas defesas; e a Austrália expandiu sua capacidade naval, especialmente por meio de uma parceria com Reino Unido e Estados Unidos, além de contar com submarinos nucleares.

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A isso se soma a adesão da Finlândia à Otan, e provável adesão da Suécia, além de que 10 Estados-membros da União Europeia alcançaram o objetivo da aliança de gastar 2% do seu PIB em defesa em 2023, contra oito do ano anterior. Após falas recentes do ex-presidente americano, Donald Trump, que concorre como favorito à Casa Branca este ano, de que encorajaria a Rússia a fazer “o que quisesse” com países inadimplentes, outros países europeus reforçaram seu compromisso de atingir os 2% de gastos.

“Houve definitivamente um aspecto de despertar com esta invasão em larga escala feita por um Exército de centenas de milhares e uma guerra convencional no continente europeu”, afirma o capitão aposentado da inteligência naval americana e pesquisador do Centro de Análise de Política Europeia, Steven Horrell.

“É importante notar, e os líderes europeus sabem disso, que Putin não estava apenas embarcando nesta guerra para erradicar a soberania da Ucrânia. Ele próprio afirmou que se tratava de redesenhar a arquitetura de segurança europeia e a arquitetura de segurança global”, completa.

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Em 24 de fevereiro, durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, Vladimir Putin deu um discurso autorizando o que chamou de "operação militar especial" na Ucrânia Foto: Serviço de imprensa russo via AP

Gastos russos

E não foram só os países reagindo às ações russas que impulsionaram as cifras. Moscou expandiu seus gastos militares para 7,5% do seu PIB, um aumento de 30% de 2022 para 2023, informa o instituto. O relatório estima que a Rússia tenha gastado US$ 108 bilhões (R$ 553 bilhões) com suas Forças Armadas em 2023, três vezes mais que a Ucrânia (US$ 31 bilhões ou R$ 153 bilhões), que conta com forte apoio ocidental.

Uma análise do Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (Sipri) - que também faz monitoramento de gastos militares, mas ainda não publicou seu relatório de 2023 - os gastos da Rússia devem crescer ainda mais em 2024, já que Putin assinou uma nova lei orçamentária que destina US$140 bilhões (R$ 691 bilhões) em investimento militar, o que representaria 35% dos gastos do governo russo.

A questão é que a Rússia, mais do que aumentar o seu desprendimento militar, precisa recuperar o que vem perdendo na guerra com a Ucrânia. No mesmo relatório do IISS, se observa que a Rússia perdeu quase 3.000 taques desde fevereiro de 2022, mesmo número inventário ativo do país, o que forçou Moscou a reativar tanques velhos que estavam em armazenamento.

“Com reduções planejadas nos gastos militares em 2025-26 após um aumento acentuado em 2024, e com as eleições presidenciais russas previstas para 2024, Putin parece estar demonstrando sua intenção de levar a guerra a um desfecho bem sucedido dentro de um ano,” disse o Diretor do Sipri, Dan Smith, em comunicado à imprensa em dezembro.

“Atualmente, parece haver pouca perspectiva de um avanço militar significativo na Ucrânia para qualquer um dos lados. Enquanto Putin pode estar contando com o apoio do Ocidente se fragmentando durante a guerra, o Ocidente está contando com a guerra levando à falência do regime de Putin. Nenhuma dessas suposições é garantida, nenhuma é impossível”, completa.

Lucro

Se por um lado os países aumentaram seus gastos militares, por outro a indústria bélica se beneficiou. Nos dois anos de Guerra da Ucrânia, a indústria de defesa dos EUA registou um boom nas encomendas de armas e munições, segundo levantamento do Wall Street Journal. Grande parte dessas encomendas vieram dos próprios governos europeus e americano, que visavam não só ajudar a Ucrânia, mas fortalecer suas próprias Forças Armadas.

A produção industrial no setor da defesa e aéreo dos EUA aumentou 17,5% em dois anos e membros do governo americano afirmam que dos últimos US$ 60 bilhões (R$ 296 bilhões) destinados à Ucrânia no último pacote aprovado pelo Senado - que ainda depende de aval da Câmara -, cerca de 64% deve retornar em forma de lucro e geração de empregos no setor de defesa.

Só no ano passado, os EUA exportaram US$ 238 bilhões (R$ 1,2 trilhão) em armamentos. Segundo o Departamento de Estado, só o governo americano negociou diretamente US$ 81 bilhões (R$ 600 bilhões) em vendas, um aumento de 56% em relação a 2022. O restante foram vendas diretas de empresas de defesa dos EUA para países estrangeiros.

Embora os EUA sejam os maiores gastadores em defesa do mundo, com mais de US$ 900 bilhões (R$ 4,4 trilhões) só em 2023, montante maior que dos 15 outros países do ranking somados, o valor representa 3,36% do PIB americano, inferior a de anos anteriores.

“Isto compara-se com os gastos com defesa na Guerra Fria, que atingiram 8% com um PIB muito menor”, disse Dana Allin, membro do IISS, a jornalistas em Londres em 13 de fevereiro, data de publicação do relatório. “Então, obviamente, isso não é um grande problema para os EUA.”

A fabricante britânica de armas BAE Systems também registrou lucros recordes de 25,3 bilhões de libras esterlinas (R$ 146 bilhões) no ano passado e prevê um crescimento maior este ano, segundo o The Guardian. De acordo com o presidente-executivo da empresa, Charles Woodburn, após a guerra na Ucrânia, cada vez mais a empresa recebe encomendas para repor armamentos pesados e munições./Colaborou Jéssica Petrovna

Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, emitiu a ordem para invadir a Ucrânia, há exatos dois anos, a sensação de segurança mundial foi rompida. Pela primeira vez desde a 2ª Guerra, uma potência - com armas nucleares - violou o território de outro país, indo contra todos os acordos assinados até então. O episódio levou o resto do mundo a uma corrida para aumentar as suas capacidades militares, impulsionando um novo recorde de gastos em 2023.

Foram investidos mais de US$ 2,2 trilhões (R$ 10,9 trilhões) em capacidades militares no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), um aumento de 9% em relação a 2022. Em seu 65º relatório “Balanço Militar”, o instituto projeta que 2024 também deve trazer um novo recorde, com a política de modernização militar da China, a guerra de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza e consecutivos conflitos e golpes militares na África.

Desse montante, os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foram responsáveis por 50% dos gastos, sendo os Estados Unidos os líderes do ranking, com 40,5% da fatia. A China gastou 10% desse valor, enquanto a Rússia consumiu 4,8%. O restante do mundo investiu 27,4% desses trilhões.

Um soldado ucraniano próximo de um tanque russo destruído em Trostianets, em março de 2022 Foto: FADEL SENNA/AFP

“O ritmo de gastos com munições na guerra entre Rússia e Ucrânia também levou a uma reflexão no Ocidente de que as capacidades de produção estão atrofiadas, com os países correndo para corrigir deficiências de anos de subinvestimento”, afirma o relatório em sua introdução.

E continua: “A guerra na Europa deixou sua marca de outras maneiras também. O uso pela Ucrânia de veículos marítimos não tripulados de baixo custo para atacar a Frota do Mar Negro da Rússia deu a outros uma maior urgência em buscar tais equipamentos”.

“E embora veículos aéreos não tripulados (UAVs) já sejam uma parte das forças armadas modernas há algum tempo, conflitos recentes demonstraram a utilidade de uma gama muito maior de tais sistemas. A demanda impulsionou uma onda de acordos de exportação, com a Turquia e o Irã fornecendo UAVs a vários atores”, completa.

Mudança de curso

O aumento de gastos militares, especialmente pela Europa, já vinha se desenhando desde 2014, depois que Putin anexou ilegalmente a Crimeia. Mas a invasão em larga escala da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 soou o alarme para o resto do mundo.

Países como Alemanha e Japão, cujos gastos militares eram reduzidos desde a 2ª Guerra, adotaram uma doutrina de segurança para reforçar suas defesas. No caso dos japoneses, visando aumentar as defesas contra outro vizinho: a China.

“As ações militares de Moscou ampliaram preocupações em outras partes do mundo, especialmente no Indo-Pacífico, de que um vizinho militarmente poderoso possa tentar impor sua vontade sobre outros”, acrescenta o documento da IISS.

Entre as mudanças de estratégias, o relatório aponta: na Ásia, Japão e Coreia do Sul buscaram estreitar laços de defesa; as Filipinas retomaram a cooperação militar com os EUA; Taiwan fortaleceu as suas defesas; e a Austrália expandiu sua capacidade naval, especialmente por meio de uma parceria com Reino Unido e Estados Unidos, além de contar com submarinos nucleares.

A isso se soma a adesão da Finlândia à Otan, e provável adesão da Suécia, além de que 10 Estados-membros da União Europeia alcançaram o objetivo da aliança de gastar 2% do seu PIB em defesa em 2023, contra oito do ano anterior. Após falas recentes do ex-presidente americano, Donald Trump, que concorre como favorito à Casa Branca este ano, de que encorajaria a Rússia a fazer “o que quisesse” com países inadimplentes, outros países europeus reforçaram seu compromisso de atingir os 2% de gastos.

“Houve definitivamente um aspecto de despertar com esta invasão em larga escala feita por um Exército de centenas de milhares e uma guerra convencional no continente europeu”, afirma o capitão aposentado da inteligência naval americana e pesquisador do Centro de Análise de Política Europeia, Steven Horrell.

“É importante notar, e os líderes europeus sabem disso, que Putin não estava apenas embarcando nesta guerra para erradicar a soberania da Ucrânia. Ele próprio afirmou que se tratava de redesenhar a arquitetura de segurança europeia e a arquitetura de segurança global”, completa.

Em 24 de fevereiro, durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, Vladimir Putin deu um discurso autorizando o que chamou de "operação militar especial" na Ucrânia Foto: Serviço de imprensa russo via AP

Gastos russos

E não foram só os países reagindo às ações russas que impulsionaram as cifras. Moscou expandiu seus gastos militares para 7,5% do seu PIB, um aumento de 30% de 2022 para 2023, informa o instituto. O relatório estima que a Rússia tenha gastado US$ 108 bilhões (R$ 553 bilhões) com suas Forças Armadas em 2023, três vezes mais que a Ucrânia (US$ 31 bilhões ou R$ 153 bilhões), que conta com forte apoio ocidental.

Uma análise do Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (Sipri) - que também faz monitoramento de gastos militares, mas ainda não publicou seu relatório de 2023 - os gastos da Rússia devem crescer ainda mais em 2024, já que Putin assinou uma nova lei orçamentária que destina US$140 bilhões (R$ 691 bilhões) em investimento militar, o que representaria 35% dos gastos do governo russo.

A questão é que a Rússia, mais do que aumentar o seu desprendimento militar, precisa recuperar o que vem perdendo na guerra com a Ucrânia. No mesmo relatório do IISS, se observa que a Rússia perdeu quase 3.000 taques desde fevereiro de 2022, mesmo número inventário ativo do país, o que forçou Moscou a reativar tanques velhos que estavam em armazenamento.

“Com reduções planejadas nos gastos militares em 2025-26 após um aumento acentuado em 2024, e com as eleições presidenciais russas previstas para 2024, Putin parece estar demonstrando sua intenção de levar a guerra a um desfecho bem sucedido dentro de um ano,” disse o Diretor do Sipri, Dan Smith, em comunicado à imprensa em dezembro.

“Atualmente, parece haver pouca perspectiva de um avanço militar significativo na Ucrânia para qualquer um dos lados. Enquanto Putin pode estar contando com o apoio do Ocidente se fragmentando durante a guerra, o Ocidente está contando com a guerra levando à falência do regime de Putin. Nenhuma dessas suposições é garantida, nenhuma é impossível”, completa.

Lucro

Se por um lado os países aumentaram seus gastos militares, por outro a indústria bélica se beneficiou. Nos dois anos de Guerra da Ucrânia, a indústria de defesa dos EUA registou um boom nas encomendas de armas e munições, segundo levantamento do Wall Street Journal. Grande parte dessas encomendas vieram dos próprios governos europeus e americano, que visavam não só ajudar a Ucrânia, mas fortalecer suas próprias Forças Armadas.

A produção industrial no setor da defesa e aéreo dos EUA aumentou 17,5% em dois anos e membros do governo americano afirmam que dos últimos US$ 60 bilhões (R$ 296 bilhões) destinados à Ucrânia no último pacote aprovado pelo Senado - que ainda depende de aval da Câmara -, cerca de 64% deve retornar em forma de lucro e geração de empregos no setor de defesa.

Só no ano passado, os EUA exportaram US$ 238 bilhões (R$ 1,2 trilhão) em armamentos. Segundo o Departamento de Estado, só o governo americano negociou diretamente US$ 81 bilhões (R$ 600 bilhões) em vendas, um aumento de 56% em relação a 2022. O restante foram vendas diretas de empresas de defesa dos EUA para países estrangeiros.

Embora os EUA sejam os maiores gastadores em defesa do mundo, com mais de US$ 900 bilhões (R$ 4,4 trilhões) só em 2023, montante maior que dos 15 outros países do ranking somados, o valor representa 3,36% do PIB americano, inferior a de anos anteriores.

“Isto compara-se com os gastos com defesa na Guerra Fria, que atingiram 8% com um PIB muito menor”, disse Dana Allin, membro do IISS, a jornalistas em Londres em 13 de fevereiro, data de publicação do relatório. “Então, obviamente, isso não é um grande problema para os EUA.”

A fabricante britânica de armas BAE Systems também registrou lucros recordes de 25,3 bilhões de libras esterlinas (R$ 146 bilhões) no ano passado e prevê um crescimento maior este ano, segundo o The Guardian. De acordo com o presidente-executivo da empresa, Charles Woodburn, após a guerra na Ucrânia, cada vez mais a empresa recebe encomendas para repor armamentos pesados e munições./Colaborou Jéssica Petrovna

Quando o presidente da Rússia, Vladimir Putin, emitiu a ordem para invadir a Ucrânia, há exatos dois anos, a sensação de segurança mundial foi rompida. Pela primeira vez desde a 2ª Guerra, uma potência - com armas nucleares - violou o território de outro país, indo contra todos os acordos assinados até então. O episódio levou o resto do mundo a uma corrida para aumentar as suas capacidades militares, impulsionando um novo recorde de gastos em 2023.

Foram investidos mais de US$ 2,2 trilhões (R$ 10,9 trilhões) em capacidades militares no ano passado, segundo dados do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), um aumento de 9% em relação a 2022. Em seu 65º relatório “Balanço Militar”, o instituto projeta que 2024 também deve trazer um novo recorde, com a política de modernização militar da China, a guerra de Israel contra o Hamas na Faixa de Gaza e consecutivos conflitos e golpes militares na África.

Desse montante, os países membros da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foram responsáveis por 50% dos gastos, sendo os Estados Unidos os líderes do ranking, com 40,5% da fatia. A China gastou 10% desse valor, enquanto a Rússia consumiu 4,8%. O restante do mundo investiu 27,4% desses trilhões.

Um soldado ucraniano próximo de um tanque russo destruído em Trostianets, em março de 2022 Foto: FADEL SENNA/AFP

“O ritmo de gastos com munições na guerra entre Rússia e Ucrânia também levou a uma reflexão no Ocidente de que as capacidades de produção estão atrofiadas, com os países correndo para corrigir deficiências de anos de subinvestimento”, afirma o relatório em sua introdução.

E continua: “A guerra na Europa deixou sua marca de outras maneiras também. O uso pela Ucrânia de veículos marítimos não tripulados de baixo custo para atacar a Frota do Mar Negro da Rússia deu a outros uma maior urgência em buscar tais equipamentos”.

“E embora veículos aéreos não tripulados (UAVs) já sejam uma parte das forças armadas modernas há algum tempo, conflitos recentes demonstraram a utilidade de uma gama muito maior de tais sistemas. A demanda impulsionou uma onda de acordos de exportação, com a Turquia e o Irã fornecendo UAVs a vários atores”, completa.

Mudança de curso

O aumento de gastos militares, especialmente pela Europa, já vinha se desenhando desde 2014, depois que Putin anexou ilegalmente a Crimeia. Mas a invasão em larga escala da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 soou o alarme para o resto do mundo.

Países como Alemanha e Japão, cujos gastos militares eram reduzidos desde a 2ª Guerra, adotaram uma doutrina de segurança para reforçar suas defesas. No caso dos japoneses, visando aumentar as defesas contra outro vizinho: a China.

“As ações militares de Moscou ampliaram preocupações em outras partes do mundo, especialmente no Indo-Pacífico, de que um vizinho militarmente poderoso possa tentar impor sua vontade sobre outros”, acrescenta o documento da IISS.

Entre as mudanças de estratégias, o relatório aponta: na Ásia, Japão e Coreia do Sul buscaram estreitar laços de defesa; as Filipinas retomaram a cooperação militar com os EUA; Taiwan fortaleceu as suas defesas; e a Austrália expandiu sua capacidade naval, especialmente por meio de uma parceria com Reino Unido e Estados Unidos, além de contar com submarinos nucleares.

A isso se soma a adesão da Finlândia à Otan, e provável adesão da Suécia, além de que 10 Estados-membros da União Europeia alcançaram o objetivo da aliança de gastar 2% do seu PIB em defesa em 2023, contra oito do ano anterior. Após falas recentes do ex-presidente americano, Donald Trump, que concorre como favorito à Casa Branca este ano, de que encorajaria a Rússia a fazer “o que quisesse” com países inadimplentes, outros países europeus reforçaram seu compromisso de atingir os 2% de gastos.

“Houve definitivamente um aspecto de despertar com esta invasão em larga escala feita por um Exército de centenas de milhares e uma guerra convencional no continente europeu”, afirma o capitão aposentado da inteligência naval americana e pesquisador do Centro de Análise de Política Europeia, Steven Horrell.

“É importante notar, e os líderes europeus sabem disso, que Putin não estava apenas embarcando nesta guerra para erradicar a soberania da Ucrânia. Ele próprio afirmou que se tratava de redesenhar a arquitetura de segurança europeia e a arquitetura de segurança global”, completa.

Em 24 de fevereiro, durante uma reunião do Conselho de Segurança da ONU, Vladimir Putin deu um discurso autorizando o que chamou de "operação militar especial" na Ucrânia Foto: Serviço de imprensa russo via AP

Gastos russos

E não foram só os países reagindo às ações russas que impulsionaram as cifras. Moscou expandiu seus gastos militares para 7,5% do seu PIB, um aumento de 30% de 2022 para 2023, informa o instituto. O relatório estima que a Rússia tenha gastado US$ 108 bilhões (R$ 553 bilhões) com suas Forças Armadas em 2023, três vezes mais que a Ucrânia (US$ 31 bilhões ou R$ 153 bilhões), que conta com forte apoio ocidental.

Uma análise do Instituto Internacional de Investigação para a Paz de Estocolmo (Sipri) - que também faz monitoramento de gastos militares, mas ainda não publicou seu relatório de 2023 - os gastos da Rússia devem crescer ainda mais em 2024, já que Putin assinou uma nova lei orçamentária que destina US$140 bilhões (R$ 691 bilhões) em investimento militar, o que representaria 35% dos gastos do governo russo.

A questão é que a Rússia, mais do que aumentar o seu desprendimento militar, precisa recuperar o que vem perdendo na guerra com a Ucrânia. No mesmo relatório do IISS, se observa que a Rússia perdeu quase 3.000 taques desde fevereiro de 2022, mesmo número inventário ativo do país, o que forçou Moscou a reativar tanques velhos que estavam em armazenamento.

“Com reduções planejadas nos gastos militares em 2025-26 após um aumento acentuado em 2024, e com as eleições presidenciais russas previstas para 2024, Putin parece estar demonstrando sua intenção de levar a guerra a um desfecho bem sucedido dentro de um ano,” disse o Diretor do Sipri, Dan Smith, em comunicado à imprensa em dezembro.

“Atualmente, parece haver pouca perspectiva de um avanço militar significativo na Ucrânia para qualquer um dos lados. Enquanto Putin pode estar contando com o apoio do Ocidente se fragmentando durante a guerra, o Ocidente está contando com a guerra levando à falência do regime de Putin. Nenhuma dessas suposições é garantida, nenhuma é impossível”, completa.

Lucro

Se por um lado os países aumentaram seus gastos militares, por outro a indústria bélica se beneficiou. Nos dois anos de Guerra da Ucrânia, a indústria de defesa dos EUA registou um boom nas encomendas de armas e munições, segundo levantamento do Wall Street Journal. Grande parte dessas encomendas vieram dos próprios governos europeus e americano, que visavam não só ajudar a Ucrânia, mas fortalecer suas próprias Forças Armadas.

A produção industrial no setor da defesa e aéreo dos EUA aumentou 17,5% em dois anos e membros do governo americano afirmam que dos últimos US$ 60 bilhões (R$ 296 bilhões) destinados à Ucrânia no último pacote aprovado pelo Senado - que ainda depende de aval da Câmara -, cerca de 64% deve retornar em forma de lucro e geração de empregos no setor de defesa.

Só no ano passado, os EUA exportaram US$ 238 bilhões (R$ 1,2 trilhão) em armamentos. Segundo o Departamento de Estado, só o governo americano negociou diretamente US$ 81 bilhões (R$ 600 bilhões) em vendas, um aumento de 56% em relação a 2022. O restante foram vendas diretas de empresas de defesa dos EUA para países estrangeiros.

Embora os EUA sejam os maiores gastadores em defesa do mundo, com mais de US$ 900 bilhões (R$ 4,4 trilhões) só em 2023, montante maior que dos 15 outros países do ranking somados, o valor representa 3,36% do PIB americano, inferior a de anos anteriores.

“Isto compara-se com os gastos com defesa na Guerra Fria, que atingiram 8% com um PIB muito menor”, disse Dana Allin, membro do IISS, a jornalistas em Londres em 13 de fevereiro, data de publicação do relatório. “Então, obviamente, isso não é um grande problema para os EUA.”

A fabricante britânica de armas BAE Systems também registrou lucros recordes de 25,3 bilhões de libras esterlinas (R$ 146 bilhões) no ano passado e prevê um crescimento maior este ano, segundo o The Guardian. De acordo com o presidente-executivo da empresa, Charles Woodburn, após a guerra na Ucrânia, cada vez mais a empresa recebe encomendas para repor armamentos pesados e munições./Colaborou Jéssica Petrovna

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