Nos dias finais do mandato da legislatura recém-concluída no Congresso de El Salvador, circularam rumores de que o partido Novas Ideias, do presidente Nayib Bukele, poderia introduzir reformas na Constituição do país. A deputada opositora Claudia Ortiz soou o alarme, alertando que grandes mudanças poderiam ocorrer da noite para o dia.
Ela estava certa. Na semana passada, em sua última sessão, os deputados de saída aprovaram uma moção que permitirá à atual legislatura mudar a maioria dos artigos da Constituição virtualmente quando lhe apetecer. Uma maioria de três quartos dos deputados, ou 45 votos, passou a ser necessária para emendar a Carta, e a coalizão governante controla agora 57 assentos. “As leis mais importantes podem ser alteradas a qualquer momento”, afirmou Ortiz no Congresso. “Nós não teremos mais lei no país.”
Ortiz, de 36 anos, do partido centrista Vamos, é uma dos três únicos deputados opositores na nova legislatura salvadorenha, composta por 60 membros, que tomou posse em 1.º de maio. Enquanto figura mais popular da oposição política em El Salvador, sua trajetória nos próximos três anos colocará em teste maneiras com que oposição espera fiscalizar Bukele — e como o partido governista revidará.
Bukele e sua coalizão venceram de lavada as eleições de 4 de fevereiro. Ortiz assinalou talvez o único ponto positivo para a oposição: com 69 mil votos na capital, reelegeu-se e obteve a maior votação entre os candidatos não alinhados ao bukelismo. Sua campanha evidenciou pequenas fissuras na popularidade de Bukele colocando foco sobre a erosão dos pesos e contrapesos na democracia salvadorenha, a elevação no custo de vida e em sua oposição ferrenha ao estado de exceção que tornou-se a marca do governo.
Sob condições especiais, o Executivo salvadorenho suspendeu direitos de suspeitos de integrar gangues para facilitar prisões em massa, frequentemente com poucos indícios contra os presos. Implementado dois anos atrás, o estado de exceção de 90 dias foi prorrogado pela 25.ª vez seguida em 9 de abril — e segue popular.
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Ortiz votou contra todas as prorrogações, qualificando-as como continuidades de estratégias linha-dura e enganosas. “Essas políticas ‘punho de ferro’ tentam esconder todas as outras coisas que não têm sido feitas para construir as fundações de uma sociedade mais próspera, menos violenta e menos desigual”, disse ela à AQ. Advogada, pesquisadora e organizadora da sociedade civil de formação, Ortiz tem sido uma voz poderosa em nome dos direitos humanos no Congresso, onde, na última sessão, ela foi incluída nas Comissões de Justiça e Direitos Humanos, Mulheres e Igualdade de Gênero e Família.
“Ela é vista como uma lutadora”, afirmou Luis Villaherrera, fundador da ONG TRACODA, que advoga por transparência, sediada em San Salvador. “Ela está tentando lutar pelo estado de direito, por transparência e pela democracia. Muitos na sociedade civil sentem que ela é “a única voz que (lhes) restou no espectro político”, disse ele à AQ.
Economia fraca
Algumas de suas perspectivas têm ganhado tração. De acordo com uma pesquisa de março, mais de 9 em cada 10 salvadorenhos discordaram com pelo menos um elemento do estado de exceção. Enquanto isso, Bukele e o partido governante podem ficar vulneráveis a uma economia em dificuldades. Numa pesquisa de janeiro, 70% dos salvadorenhos identificaram a economia como o maior desafio do país, enquanto aproximadamente a metade da população salvadorenha é acometida por algum nível de insegurança alimentar.
Consertar a economia é um dos focos principais do segundo mandato do governo Bukele. O país sofre com preços altos de alimentos e um ônus de dívida sem precedentes, mas tem uma base sólida para construir. O FMI projeta um crescimento de 3% em 2024, e o Banco Mundial prevê 2,7%, acima da média pré-Bukele, entre 2013 e 2019, de 2,5%.
A estratégia de Bukele para melhorar a economia é centrada, em parte, na divulgação da imagem recém-definida de El Salvador como um país seguro e moderno, com objetivo de atrair investimento e melhorar a infraestrutura. O presidente já obteve algum sucesso, como no recente anúncio do Google de que a empresa abrirá um novo escritório no país. O Congresso de El Salvador apoiou integralmente a política de atrair empresas aprovando alterações no orçamento e cortes de impostos introduzidos por Bukele.
Mas críticos, como Ortiz, afirmam que Bukele e seu partido tornaram os gastos públicos muito menos transparentes e mais vulneráveis a ineficiência e corrupção. Em seu primeiro mandato, Ortiz construiu um perfil nacional de vigilante das finanças do governo, denunciando inconsistências em orçamentos, faltas de transparência e gastos exagerados. Ela também criticou veementemente a política de bitcoin promovida por Bukele.
Soando alarmes
Observadores podem ter certeza de que Ortiz seguirá a figura implicante mais proeminente na máquina política do país. Ela afirmou que prevê uma escalada em violações de normas com objetivo de minar o equilíbrio dos poderes — assim como a transparência das instituições eleitorais. Ortiz e a oposição criticaram Bukele veementemente por lotar tribunais superiores com seus aliados, por seus ataques à liberdade de imprensa e, mais recentemente, por aberrações ocorridas durante a apuração dos votos da última eleição. “Muitas instituições estão sofrendo, vendo decair seu capital político e sua credibilidade junto ao povo”, afirmou Ortiz à AQ.
Ortiz e um pequeno grupo de aliados continuarão a soar alarmes sobre incidentes desse tipo. Assim como Bukele, Ortiz veicula em redes sociais conteúdos envolventes, com alto nível de produção— e tem respeitáveis 87 mil seguidores no TikTok. Ela se mostrou capaz de atrair a atenção de meios de imprensa internacionais. Mas suas denúncias poderão surtir pouco efeito: as queixas de Ortiz sobre problemas na contagem dos votos, apesar de circularem amplamente em El Salvador e no exterior, não foram respondidas.
Tudo isso faz dela um alvo. Durante a campanha para as eleições de fevereiro, o governo aprovou reformas eleitorais que buscaram erodir a base de Ortiz. As reformas alteraram a maneira que os assentos são distribuídos no Congresso e obrigaram que todos os votos depositados no exterior — que favoreceram pesadamente Bukele e seu partido — fossem atribuídos à circunscrição eleitoral da opositora. Esse tipo de artimanha eleitoreira deverá se repetir, apresentando mais barreiras à oposição.
Bukele e sua notória máquina nas redes sociais também empreenderam uma campanha digital de críticas e intimidações para qualificar Ortiz como aliada das gangues, afirmou Villaherrera. “A campanha presidencial tratou de segurança… e quando atacaram ela e outros partidos políticos, a acusação foi que seu objetivo era libertar os líderes das gangues. Muita gente realmente acredita nisso”, afirmou ele. Ortiz continua um dos principais alvos dos perfis de memes pró-Bukele, onde vídeos ridicularizando-a estão entre os posts mais populares. Até memes de Ortiz coberta de tatuagens similares às dos criminosos circularam amplamente. Essas campanhas de difamação nas redes sociais quase certamente se intensificarão nos próximos anos.
“É um governo que não aceita dissidentes”, afirmou Ortiz. Dado o domínio eleitoral de Bukele, levará tempo para qualquer oposição efetiva se articular. Ortiz deverá figurar no centro desse movimento. “(Uma) alternativa não pode ser construída por uma só pessoa ou um só partido”, afirmou o presidente do partido opositor Nosso Tempo, Andy Failer. “Mas acredito que Claudia será essencial nesse processo.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO