Como Erdogan manipulou a cultura da Turquia para se manter no poder por 20 anos


Presidente da Turquia transformou o passado otomano em um espetáculo, usando monumentos e programas de TV para unir seus eleitores; seus oponentes culturais enfrentaram censura ou cadeia

Por Jason Farago

THE NEW YORK TIMES -No último entardecer antes do primeiro turno das eleições mais difíceis em suas duas décadas no poder, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou a Hagia Sophia para realizar as orações noturnas — e recordar os eleitores a respeito de suas realizações.

Por quase um milênio, a catedral abobadada foi o epicentro do cristianismo ortodoxo. Depois da conquista otomana de Constantinopla, em 1453, o local se tornou uma das mesquitas mais belas do mundo islâmico. Nos anos 30, a nova república turca o proclamou um museu, e por quase um século seu passado sobreposto cristão e muçulmano fez de lá um dos espaços de cultura mais visitados na Turquia.

O presidente Erdogan não foi tão ecumênico: em 2020, ele converteu o local de volta em mesquita. Quando os turcos retornarem às urnas neste domingo, no segundo turno da eleição presidencial, eles votarão em parte na ideologia política por trás dessa metamorfose cultural.

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Recep Erdogan visita a mesquita Hagia Sophia, em Istambul Foto: Kayhan Ozer/Presidential Palace/Handout

Metamorfose cultural

Juntando-se às multidões na agora Grande Mesquita de Hagia Sophia, deixando os sapatos nas novas prateleiras compridas instaladas no átrio interno, pode-se contemplar os mosaicos de Cristo e da Virgem, hoje cobertos discretamente por cortinas brancas. O famoso chão de mármore foi estofado por um grosso carpete turquesa. O som fica mais abafado. O ambiente é mais iluminado por candelabros dourados. Bem na entrada, em uma moldura simples, há uma proclamação presidencial: uma rejeição monumental ao século laico do país e uma afirmação de uma nova Turquia digna de seu passado de glória otomano.

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“Hagia Sophia é a coroação daquele sonho neo-otomanista”, afirmou o professor de história Edhem Eldem, da Universidade Bogazici, de Istambul. “É basicamente uma transposição de lutas políticas e ideológicas, debates, visões polêmicas, ao reino de um entendimento muito, muito primitivo da história e do passado.”

Se o marco da política do século 21 é a ascensão da cultura e da identidade sobre economia e classe social, poderia-se que o movimento nasceu aqui na Turquia, que abriga uma das mais duradouras guerras culturais de que se tem notícia. E ao longo dos 20 anos recentes, em grandes monumentos ou telenovelas de gosto duvidoso, em sítios arqueológicos restaurados e novas mesquitas de estilo antiquado, Erdogan tem reorientado a cultura nacional da Turquia promovendo um reavivamento nostálgico do passado otomano — às vezes em grande estilo, às vezes na expressão do mais puro kitsch.

Partidários de Erdogan participam de comício em Istambul Foto: EFE/EPA/ERDEM SAHIN
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Favoritismo no segundo turno

Depois de sobreviver a um primeiro turno apertado nas eleições, anteriormente este mês, Erdogan é agora favorito na disputa em segundo turno, neste domingo, contra Kemal Kilicdaroglu, o candidato da coalizão de oposição. A resiliência do presidente turco, quando consecutivas pesquisas previam sua derrota, certamente denota o controle sistemático de seu partido sobre os meios de comunicação e os tribunais do país (a Freedom House, entidade que classifica o estado da democracia nos países, baixou a colocação da Turquia de “parcialmente livre” para “não livre” em 2018). Mas o autoritarismo vai muito além de votos e tiros. Televisão, música, monumentos e memoriais foram as principais alavancas de um projeto político: uma campanha de ressentimento cultural e renascimento nacional que culminou em maio, nos carpetes azul-esverdeados instalados sob a abóbada de Hagia Sophia.

Fora da Turquia, essa reviravolta cultural é com frequência descrita como “islamista”, e Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento, conhecido como AKP, realmente passaram a permitir expressões de religiosidade anteriormente banidas, como as mulheres cobrirem o cabelo com véus dentro de instituições públicas. Um Museu das Civilizações Islâmicas completo, com uma “abóbada digital” e projeções de luzes ao estilo de mostras imersivas de obras de artistas consagrados, foi inaugurado em 2022 dentro da nova maior mesquita de Istambul.

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Mas esta eleição sugere que o nacionalismo, não a religião, pode ser o verdadeiro fio condutor da revolução cultural de Erdogan. Suas celebrações do passado otomano — e o ressentimento dos que supostamente o odeiam, seja no Ocidente ou dentro da Turquia — caminham ao lado de esforços nacionalistas não relacionados com o Islã. O país organizou campanhas agressivas pela devolução de antiguidades greco-romanas levadas para museus no Ocidente. Equipes estrangeiras de arqueologia tiveram permissões de trabalho canceladas. A Turquia se posiciona na vanguarda obscura de uma tendência vista por toda parte hoje, principalmente nos Estados Unidos: uma política cultural de ressentimento perpétuo, quando a indignação é mantida mesmo após a vitória.

Cerco aos artistas e à imprensa

Para os escritores, artistas, acadêmicos e cantores deste país, enfrentando censura ou coisa pior, a perspectiva de mudança de governo trata menos de preferências políticas do que de sobrevivência prática. Desde 2013, quando um movimento de protesto em estilo Occupy Wall Street se manifestou no Parque Gezi, em Istambul, atacando diretamente seu governo, Erdogan endureceu o autoritarismo. Várias personalidades da cultura permanecem presas, incluindo a arquiteta Mucella Yapici, as cineastas Mine Ozerden e Cigdem Mater e o filantropo das artes Osman Kavala. Escritores como Can Dundar e Asli Erdogan (não é parente do presidente), que foram presos durante a reação à tentativa fracassada de golpe militar contra Erdogan, em 2016, vivem exilados na Alemanha.

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Mais de uma dúzia de apresentações musicais foram canceladas no ano passado, entre elas um recital do violinista Ara Malikian, que tem ascendência armênia, e um show da cantora pop-folclórica curda Aynur Dogan. As tensões se intensificaram de maneira funesta este mês pouco após o primeiro turno da votação, quando um músico curdo foi esfaqueado até a morte em um terminal hidroviário por se recusar a cantar uma música nacionalista da Turquia.

Nos dias que se seguiram ao primeiro turno da votação, eu conheci Banu Cennetoglu, uma das mais aclamadas artistas do país, cuja homenagem a uma jornalista curda, na edição de 2017 da mostra de arte contemporânea Documenta, foi aclamada no exterior mas complicou sua vida dentro da Turquia. “O que assusta neste momento em comparação aos anos 90, que também foram difíceis, especialmente para a comunidade curda, é que naquela época a gente conseguia antever de onde vinha o mal”, disse-me ela. “E agora esse mal pode vir de qualquer pessoa, é muito mais aleatório.”

A estratégia funcionou. A mídia independente encolheu. A autocensura é geral. “Todas as instituições de arte e cultura estão extremamente silenciosas há cinco anos”, afirmou Cennetoglu. “E para mim, enquanto artista, isso é inaceitável. A minha dúvida é: quando chegará nosso limite? Quando diremos não? E por quê?”

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Nacionalismo não é nenhuma novidade na Turquia. “Todo mundo é nacionalista neste país”, observou Eldem. E os kemalistas — a elite secular que dominou a política daqui por décadas até a ascensão de Erdogan, em 2003 — também se valia de temas nacionalistas para orientar a cultura para seus objetivos políticos. Os primeiros filmes turcos glorificavam as conquistas de Mustafá Kemal Ataturk. Escavações arqueológicas de antiguidades hititas pretendiam fornecer à nova república um passado ainda mais ancestral do que as histórias da Grécia e da Itália.

Nos anos 2000, a combinação entre islamismo e reformismo de Erdogan colocou a Turquia às portas da União Europeia. Uma nova Istambul era saudada pela imprensa internacional. Mas o novo nacionalismo turco tinha uma cepa cultural distinta: orgulhosamente islâmica, com frequência antagônica e certas vezes meio paranóica.

Uma das instituições culturais sinalizadoras dos anos de Erdogan foi o Museu de História Panorama 1453, localizado em um distrito de classe trabalhadora a oeste de Hagia Sophia, onde crianças em idade escolar aprendiam a respeito da conquista otomana de Constantinopla em um ciclorama. Em certo momento, uma pintura sobre uma tela circular pode ter sido imersão suficiente, mas agora o museu foi melhorado com projeções ofuscantes de vídeos e um concurso de beleza violentamente nacionalista, no estilo do videogame “Civilization”. As crianças podem assistir ao sultão Mehmed II atacar Hagia Sophia enquanto seu cavalo empina diante de uma bola de fogo celestial.

Fiéis tiram os sapatos antes de entrar na Hagia Sophia  Foto: Bradley Secker/The New York Times

As novelas turcas

Há uma pano de fundo similar nas telenovelas turcas, que são enormemente populares não apenas aqui, mas também internacionalmente, com centenas de milhões de espectadores no mundo muçulmano, na Alemanha, no México e em toda parte. Em séries como “O grande guerreiro otomano”, sucesso internacional a respeito de um líder de clã turco, ou “Kurulus: Osman”, uma saga à la “Game of Thrones” que vai ao ar todas as quartas-feiras por aqui, passado e presente começam a se fundir.

“Eles estão impregnando as eras ancestrais com o discurso de Tayyip Erdogan”, afirmou a antropóloga cultural Ayse Cavdar, que estuda esses programas. “Se Erdogan enfrenta alguma dificuldade neste momento, o problema é reformulado em um contexto otomano, ficcional. Assim sendo, não é o conhecimento a respeito da dificuldade atual, mas a impressão sobre ela, que se espalha pela sociedade.”

Nessas telenovelas semi-históricas, os heróis são decididos, corajosos e gloriosos, mas as entidades políticas que eles lideram são frágeis, hesitantes e ameaçadas por forasteiros. Cavdar notou que frequentemente as séries de TV mostram líderes de Estados recentes e cercados de perigos. “Como se esse sujeito não estivesse governando o país há 20 anos!”, afirmou ela.

A cultura também entrou na pauta da campanha do segundo turno, com Erdogan inaugurando as novas instalações do Museu de Arte Moderna de Istambul. O presidente foi elogiado pelo novo museu à beira do Bósforo projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano — mas não conseguiu evitar criticar os feitos do século passado, que ele descreve como um abandono da tradição otomana.

Agora, o presidente promete o alvorecer de um autêntico “século turco”. Se ele vencer neste domingo, seu neo-otomanismo terá sobrevivido ao seu teste mais severo em duas décadas. As figuras da cultura que terão mais a lamentar são, evidentemente, as que estão na cadeia, mas a vitória de Erdogan seria um desfecho amargo também para acadêmicos, autores e outras personalidades que deixaram o país após os expurgos de Erdogan. “A engenharia social do AKP pode ser comparada à monocultura na agricultura industrial”, afirmou a jovem artista Asli Cavusoglu, que recentemente protagonizou uma mostra individual no New Museum, em Nova York. “Eles só investem em um tipo de vegetal. As outras plantas — os intelectuais e os artistas — não conseguem crescer, e por isso vão brotar em outros lugares.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES -No último entardecer antes do primeiro turno das eleições mais difíceis em suas duas décadas no poder, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou a Hagia Sophia para realizar as orações noturnas — e recordar os eleitores a respeito de suas realizações.

Por quase um milênio, a catedral abobadada foi o epicentro do cristianismo ortodoxo. Depois da conquista otomana de Constantinopla, em 1453, o local se tornou uma das mesquitas mais belas do mundo islâmico. Nos anos 30, a nova república turca o proclamou um museu, e por quase um século seu passado sobreposto cristão e muçulmano fez de lá um dos espaços de cultura mais visitados na Turquia.

O presidente Erdogan não foi tão ecumênico: em 2020, ele converteu o local de volta em mesquita. Quando os turcos retornarem às urnas neste domingo, no segundo turno da eleição presidencial, eles votarão em parte na ideologia política por trás dessa metamorfose cultural.

Recep Erdogan visita a mesquita Hagia Sophia, em Istambul Foto: Kayhan Ozer/Presidential Palace/Handout

Metamorfose cultural

Juntando-se às multidões na agora Grande Mesquita de Hagia Sophia, deixando os sapatos nas novas prateleiras compridas instaladas no átrio interno, pode-se contemplar os mosaicos de Cristo e da Virgem, hoje cobertos discretamente por cortinas brancas. O famoso chão de mármore foi estofado por um grosso carpete turquesa. O som fica mais abafado. O ambiente é mais iluminado por candelabros dourados. Bem na entrada, em uma moldura simples, há uma proclamação presidencial: uma rejeição monumental ao século laico do país e uma afirmação de uma nova Turquia digna de seu passado de glória otomano.

“Hagia Sophia é a coroação daquele sonho neo-otomanista”, afirmou o professor de história Edhem Eldem, da Universidade Bogazici, de Istambul. “É basicamente uma transposição de lutas políticas e ideológicas, debates, visões polêmicas, ao reino de um entendimento muito, muito primitivo da história e do passado.”

Se o marco da política do século 21 é a ascensão da cultura e da identidade sobre economia e classe social, poderia-se que o movimento nasceu aqui na Turquia, que abriga uma das mais duradouras guerras culturais de que se tem notícia. E ao longo dos 20 anos recentes, em grandes monumentos ou telenovelas de gosto duvidoso, em sítios arqueológicos restaurados e novas mesquitas de estilo antiquado, Erdogan tem reorientado a cultura nacional da Turquia promovendo um reavivamento nostálgico do passado otomano — às vezes em grande estilo, às vezes na expressão do mais puro kitsch.

Partidários de Erdogan participam de comício em Istambul Foto: EFE/EPA/ERDEM SAHIN

Favoritismo no segundo turno

Depois de sobreviver a um primeiro turno apertado nas eleições, anteriormente este mês, Erdogan é agora favorito na disputa em segundo turno, neste domingo, contra Kemal Kilicdaroglu, o candidato da coalizão de oposição. A resiliência do presidente turco, quando consecutivas pesquisas previam sua derrota, certamente denota o controle sistemático de seu partido sobre os meios de comunicação e os tribunais do país (a Freedom House, entidade que classifica o estado da democracia nos países, baixou a colocação da Turquia de “parcialmente livre” para “não livre” em 2018). Mas o autoritarismo vai muito além de votos e tiros. Televisão, música, monumentos e memoriais foram as principais alavancas de um projeto político: uma campanha de ressentimento cultural e renascimento nacional que culminou em maio, nos carpetes azul-esverdeados instalados sob a abóbada de Hagia Sophia.

Fora da Turquia, essa reviravolta cultural é com frequência descrita como “islamista”, e Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento, conhecido como AKP, realmente passaram a permitir expressões de religiosidade anteriormente banidas, como as mulheres cobrirem o cabelo com véus dentro de instituições públicas. Um Museu das Civilizações Islâmicas completo, com uma “abóbada digital” e projeções de luzes ao estilo de mostras imersivas de obras de artistas consagrados, foi inaugurado em 2022 dentro da nova maior mesquita de Istambul.

Mas esta eleição sugere que o nacionalismo, não a religião, pode ser o verdadeiro fio condutor da revolução cultural de Erdogan. Suas celebrações do passado otomano — e o ressentimento dos que supostamente o odeiam, seja no Ocidente ou dentro da Turquia — caminham ao lado de esforços nacionalistas não relacionados com o Islã. O país organizou campanhas agressivas pela devolução de antiguidades greco-romanas levadas para museus no Ocidente. Equipes estrangeiras de arqueologia tiveram permissões de trabalho canceladas. A Turquia se posiciona na vanguarda obscura de uma tendência vista por toda parte hoje, principalmente nos Estados Unidos: uma política cultural de ressentimento perpétuo, quando a indignação é mantida mesmo após a vitória.

Cerco aos artistas e à imprensa

Para os escritores, artistas, acadêmicos e cantores deste país, enfrentando censura ou coisa pior, a perspectiva de mudança de governo trata menos de preferências políticas do que de sobrevivência prática. Desde 2013, quando um movimento de protesto em estilo Occupy Wall Street se manifestou no Parque Gezi, em Istambul, atacando diretamente seu governo, Erdogan endureceu o autoritarismo. Várias personalidades da cultura permanecem presas, incluindo a arquiteta Mucella Yapici, as cineastas Mine Ozerden e Cigdem Mater e o filantropo das artes Osman Kavala. Escritores como Can Dundar e Asli Erdogan (não é parente do presidente), que foram presos durante a reação à tentativa fracassada de golpe militar contra Erdogan, em 2016, vivem exilados na Alemanha.

Mais de uma dúzia de apresentações musicais foram canceladas no ano passado, entre elas um recital do violinista Ara Malikian, que tem ascendência armênia, e um show da cantora pop-folclórica curda Aynur Dogan. As tensões se intensificaram de maneira funesta este mês pouco após o primeiro turno da votação, quando um músico curdo foi esfaqueado até a morte em um terminal hidroviário por se recusar a cantar uma música nacionalista da Turquia.

Nos dias que se seguiram ao primeiro turno da votação, eu conheci Banu Cennetoglu, uma das mais aclamadas artistas do país, cuja homenagem a uma jornalista curda, na edição de 2017 da mostra de arte contemporânea Documenta, foi aclamada no exterior mas complicou sua vida dentro da Turquia. “O que assusta neste momento em comparação aos anos 90, que também foram difíceis, especialmente para a comunidade curda, é que naquela época a gente conseguia antever de onde vinha o mal”, disse-me ela. “E agora esse mal pode vir de qualquer pessoa, é muito mais aleatório.”

A estratégia funcionou. A mídia independente encolheu. A autocensura é geral. “Todas as instituições de arte e cultura estão extremamente silenciosas há cinco anos”, afirmou Cennetoglu. “E para mim, enquanto artista, isso é inaceitável. A minha dúvida é: quando chegará nosso limite? Quando diremos não? E por quê?”

Nacionalismo não é nenhuma novidade na Turquia. “Todo mundo é nacionalista neste país”, observou Eldem. E os kemalistas — a elite secular que dominou a política daqui por décadas até a ascensão de Erdogan, em 2003 — também se valia de temas nacionalistas para orientar a cultura para seus objetivos políticos. Os primeiros filmes turcos glorificavam as conquistas de Mustafá Kemal Ataturk. Escavações arqueológicas de antiguidades hititas pretendiam fornecer à nova república um passado ainda mais ancestral do que as histórias da Grécia e da Itália.

Nos anos 2000, a combinação entre islamismo e reformismo de Erdogan colocou a Turquia às portas da União Europeia. Uma nova Istambul era saudada pela imprensa internacional. Mas o novo nacionalismo turco tinha uma cepa cultural distinta: orgulhosamente islâmica, com frequência antagônica e certas vezes meio paranóica.

Uma das instituições culturais sinalizadoras dos anos de Erdogan foi o Museu de História Panorama 1453, localizado em um distrito de classe trabalhadora a oeste de Hagia Sophia, onde crianças em idade escolar aprendiam a respeito da conquista otomana de Constantinopla em um ciclorama. Em certo momento, uma pintura sobre uma tela circular pode ter sido imersão suficiente, mas agora o museu foi melhorado com projeções ofuscantes de vídeos e um concurso de beleza violentamente nacionalista, no estilo do videogame “Civilization”. As crianças podem assistir ao sultão Mehmed II atacar Hagia Sophia enquanto seu cavalo empina diante de uma bola de fogo celestial.

Fiéis tiram os sapatos antes de entrar na Hagia Sophia  Foto: Bradley Secker/The New York Times

As novelas turcas

Há uma pano de fundo similar nas telenovelas turcas, que são enormemente populares não apenas aqui, mas também internacionalmente, com centenas de milhões de espectadores no mundo muçulmano, na Alemanha, no México e em toda parte. Em séries como “O grande guerreiro otomano”, sucesso internacional a respeito de um líder de clã turco, ou “Kurulus: Osman”, uma saga à la “Game of Thrones” que vai ao ar todas as quartas-feiras por aqui, passado e presente começam a se fundir.

“Eles estão impregnando as eras ancestrais com o discurso de Tayyip Erdogan”, afirmou a antropóloga cultural Ayse Cavdar, que estuda esses programas. “Se Erdogan enfrenta alguma dificuldade neste momento, o problema é reformulado em um contexto otomano, ficcional. Assim sendo, não é o conhecimento a respeito da dificuldade atual, mas a impressão sobre ela, que se espalha pela sociedade.”

Nessas telenovelas semi-históricas, os heróis são decididos, corajosos e gloriosos, mas as entidades políticas que eles lideram são frágeis, hesitantes e ameaçadas por forasteiros. Cavdar notou que frequentemente as séries de TV mostram líderes de Estados recentes e cercados de perigos. “Como se esse sujeito não estivesse governando o país há 20 anos!”, afirmou ela.

A cultura também entrou na pauta da campanha do segundo turno, com Erdogan inaugurando as novas instalações do Museu de Arte Moderna de Istambul. O presidente foi elogiado pelo novo museu à beira do Bósforo projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano — mas não conseguiu evitar criticar os feitos do século passado, que ele descreve como um abandono da tradição otomana.

Agora, o presidente promete o alvorecer de um autêntico “século turco”. Se ele vencer neste domingo, seu neo-otomanismo terá sobrevivido ao seu teste mais severo em duas décadas. As figuras da cultura que terão mais a lamentar são, evidentemente, as que estão na cadeia, mas a vitória de Erdogan seria um desfecho amargo também para acadêmicos, autores e outras personalidades que deixaram o país após os expurgos de Erdogan. “A engenharia social do AKP pode ser comparada à monocultura na agricultura industrial”, afirmou a jovem artista Asli Cavusoglu, que recentemente protagonizou uma mostra individual no New Museum, em Nova York. “Eles só investem em um tipo de vegetal. As outras plantas — os intelectuais e os artistas — não conseguem crescer, e por isso vão brotar em outros lugares.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES -No último entardecer antes do primeiro turno das eleições mais difíceis em suas duas décadas no poder, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou a Hagia Sophia para realizar as orações noturnas — e recordar os eleitores a respeito de suas realizações.

Por quase um milênio, a catedral abobadada foi o epicentro do cristianismo ortodoxo. Depois da conquista otomana de Constantinopla, em 1453, o local se tornou uma das mesquitas mais belas do mundo islâmico. Nos anos 30, a nova república turca o proclamou um museu, e por quase um século seu passado sobreposto cristão e muçulmano fez de lá um dos espaços de cultura mais visitados na Turquia.

O presidente Erdogan não foi tão ecumênico: em 2020, ele converteu o local de volta em mesquita. Quando os turcos retornarem às urnas neste domingo, no segundo turno da eleição presidencial, eles votarão em parte na ideologia política por trás dessa metamorfose cultural.

Recep Erdogan visita a mesquita Hagia Sophia, em Istambul Foto: Kayhan Ozer/Presidential Palace/Handout

Metamorfose cultural

Juntando-se às multidões na agora Grande Mesquita de Hagia Sophia, deixando os sapatos nas novas prateleiras compridas instaladas no átrio interno, pode-se contemplar os mosaicos de Cristo e da Virgem, hoje cobertos discretamente por cortinas brancas. O famoso chão de mármore foi estofado por um grosso carpete turquesa. O som fica mais abafado. O ambiente é mais iluminado por candelabros dourados. Bem na entrada, em uma moldura simples, há uma proclamação presidencial: uma rejeição monumental ao século laico do país e uma afirmação de uma nova Turquia digna de seu passado de glória otomano.

“Hagia Sophia é a coroação daquele sonho neo-otomanista”, afirmou o professor de história Edhem Eldem, da Universidade Bogazici, de Istambul. “É basicamente uma transposição de lutas políticas e ideológicas, debates, visões polêmicas, ao reino de um entendimento muito, muito primitivo da história e do passado.”

Se o marco da política do século 21 é a ascensão da cultura e da identidade sobre economia e classe social, poderia-se que o movimento nasceu aqui na Turquia, que abriga uma das mais duradouras guerras culturais de que se tem notícia. E ao longo dos 20 anos recentes, em grandes monumentos ou telenovelas de gosto duvidoso, em sítios arqueológicos restaurados e novas mesquitas de estilo antiquado, Erdogan tem reorientado a cultura nacional da Turquia promovendo um reavivamento nostálgico do passado otomano — às vezes em grande estilo, às vezes na expressão do mais puro kitsch.

Partidários de Erdogan participam de comício em Istambul Foto: EFE/EPA/ERDEM SAHIN

Favoritismo no segundo turno

Depois de sobreviver a um primeiro turno apertado nas eleições, anteriormente este mês, Erdogan é agora favorito na disputa em segundo turno, neste domingo, contra Kemal Kilicdaroglu, o candidato da coalizão de oposição. A resiliência do presidente turco, quando consecutivas pesquisas previam sua derrota, certamente denota o controle sistemático de seu partido sobre os meios de comunicação e os tribunais do país (a Freedom House, entidade que classifica o estado da democracia nos países, baixou a colocação da Turquia de “parcialmente livre” para “não livre” em 2018). Mas o autoritarismo vai muito além de votos e tiros. Televisão, música, monumentos e memoriais foram as principais alavancas de um projeto político: uma campanha de ressentimento cultural e renascimento nacional que culminou em maio, nos carpetes azul-esverdeados instalados sob a abóbada de Hagia Sophia.

Fora da Turquia, essa reviravolta cultural é com frequência descrita como “islamista”, e Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento, conhecido como AKP, realmente passaram a permitir expressões de religiosidade anteriormente banidas, como as mulheres cobrirem o cabelo com véus dentro de instituições públicas. Um Museu das Civilizações Islâmicas completo, com uma “abóbada digital” e projeções de luzes ao estilo de mostras imersivas de obras de artistas consagrados, foi inaugurado em 2022 dentro da nova maior mesquita de Istambul.

Mas esta eleição sugere que o nacionalismo, não a religião, pode ser o verdadeiro fio condutor da revolução cultural de Erdogan. Suas celebrações do passado otomano — e o ressentimento dos que supostamente o odeiam, seja no Ocidente ou dentro da Turquia — caminham ao lado de esforços nacionalistas não relacionados com o Islã. O país organizou campanhas agressivas pela devolução de antiguidades greco-romanas levadas para museus no Ocidente. Equipes estrangeiras de arqueologia tiveram permissões de trabalho canceladas. A Turquia se posiciona na vanguarda obscura de uma tendência vista por toda parte hoje, principalmente nos Estados Unidos: uma política cultural de ressentimento perpétuo, quando a indignação é mantida mesmo após a vitória.

Cerco aos artistas e à imprensa

Para os escritores, artistas, acadêmicos e cantores deste país, enfrentando censura ou coisa pior, a perspectiva de mudança de governo trata menos de preferências políticas do que de sobrevivência prática. Desde 2013, quando um movimento de protesto em estilo Occupy Wall Street se manifestou no Parque Gezi, em Istambul, atacando diretamente seu governo, Erdogan endureceu o autoritarismo. Várias personalidades da cultura permanecem presas, incluindo a arquiteta Mucella Yapici, as cineastas Mine Ozerden e Cigdem Mater e o filantropo das artes Osman Kavala. Escritores como Can Dundar e Asli Erdogan (não é parente do presidente), que foram presos durante a reação à tentativa fracassada de golpe militar contra Erdogan, em 2016, vivem exilados na Alemanha.

Mais de uma dúzia de apresentações musicais foram canceladas no ano passado, entre elas um recital do violinista Ara Malikian, que tem ascendência armênia, e um show da cantora pop-folclórica curda Aynur Dogan. As tensões se intensificaram de maneira funesta este mês pouco após o primeiro turno da votação, quando um músico curdo foi esfaqueado até a morte em um terminal hidroviário por se recusar a cantar uma música nacionalista da Turquia.

Nos dias que se seguiram ao primeiro turno da votação, eu conheci Banu Cennetoglu, uma das mais aclamadas artistas do país, cuja homenagem a uma jornalista curda, na edição de 2017 da mostra de arte contemporânea Documenta, foi aclamada no exterior mas complicou sua vida dentro da Turquia. “O que assusta neste momento em comparação aos anos 90, que também foram difíceis, especialmente para a comunidade curda, é que naquela época a gente conseguia antever de onde vinha o mal”, disse-me ela. “E agora esse mal pode vir de qualquer pessoa, é muito mais aleatório.”

A estratégia funcionou. A mídia independente encolheu. A autocensura é geral. “Todas as instituições de arte e cultura estão extremamente silenciosas há cinco anos”, afirmou Cennetoglu. “E para mim, enquanto artista, isso é inaceitável. A minha dúvida é: quando chegará nosso limite? Quando diremos não? E por quê?”

Nacionalismo não é nenhuma novidade na Turquia. “Todo mundo é nacionalista neste país”, observou Eldem. E os kemalistas — a elite secular que dominou a política daqui por décadas até a ascensão de Erdogan, em 2003 — também se valia de temas nacionalistas para orientar a cultura para seus objetivos políticos. Os primeiros filmes turcos glorificavam as conquistas de Mustafá Kemal Ataturk. Escavações arqueológicas de antiguidades hititas pretendiam fornecer à nova república um passado ainda mais ancestral do que as histórias da Grécia e da Itália.

Nos anos 2000, a combinação entre islamismo e reformismo de Erdogan colocou a Turquia às portas da União Europeia. Uma nova Istambul era saudada pela imprensa internacional. Mas o novo nacionalismo turco tinha uma cepa cultural distinta: orgulhosamente islâmica, com frequência antagônica e certas vezes meio paranóica.

Uma das instituições culturais sinalizadoras dos anos de Erdogan foi o Museu de História Panorama 1453, localizado em um distrito de classe trabalhadora a oeste de Hagia Sophia, onde crianças em idade escolar aprendiam a respeito da conquista otomana de Constantinopla em um ciclorama. Em certo momento, uma pintura sobre uma tela circular pode ter sido imersão suficiente, mas agora o museu foi melhorado com projeções ofuscantes de vídeos e um concurso de beleza violentamente nacionalista, no estilo do videogame “Civilization”. As crianças podem assistir ao sultão Mehmed II atacar Hagia Sophia enquanto seu cavalo empina diante de uma bola de fogo celestial.

Fiéis tiram os sapatos antes de entrar na Hagia Sophia  Foto: Bradley Secker/The New York Times

As novelas turcas

Há uma pano de fundo similar nas telenovelas turcas, que são enormemente populares não apenas aqui, mas também internacionalmente, com centenas de milhões de espectadores no mundo muçulmano, na Alemanha, no México e em toda parte. Em séries como “O grande guerreiro otomano”, sucesso internacional a respeito de um líder de clã turco, ou “Kurulus: Osman”, uma saga à la “Game of Thrones” que vai ao ar todas as quartas-feiras por aqui, passado e presente começam a se fundir.

“Eles estão impregnando as eras ancestrais com o discurso de Tayyip Erdogan”, afirmou a antropóloga cultural Ayse Cavdar, que estuda esses programas. “Se Erdogan enfrenta alguma dificuldade neste momento, o problema é reformulado em um contexto otomano, ficcional. Assim sendo, não é o conhecimento a respeito da dificuldade atual, mas a impressão sobre ela, que se espalha pela sociedade.”

Nessas telenovelas semi-históricas, os heróis são decididos, corajosos e gloriosos, mas as entidades políticas que eles lideram são frágeis, hesitantes e ameaçadas por forasteiros. Cavdar notou que frequentemente as séries de TV mostram líderes de Estados recentes e cercados de perigos. “Como se esse sujeito não estivesse governando o país há 20 anos!”, afirmou ela.

A cultura também entrou na pauta da campanha do segundo turno, com Erdogan inaugurando as novas instalações do Museu de Arte Moderna de Istambul. O presidente foi elogiado pelo novo museu à beira do Bósforo projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano — mas não conseguiu evitar criticar os feitos do século passado, que ele descreve como um abandono da tradição otomana.

Agora, o presidente promete o alvorecer de um autêntico “século turco”. Se ele vencer neste domingo, seu neo-otomanismo terá sobrevivido ao seu teste mais severo em duas décadas. As figuras da cultura que terão mais a lamentar são, evidentemente, as que estão na cadeia, mas a vitória de Erdogan seria um desfecho amargo também para acadêmicos, autores e outras personalidades que deixaram o país após os expurgos de Erdogan. “A engenharia social do AKP pode ser comparada à monocultura na agricultura industrial”, afirmou a jovem artista Asli Cavusoglu, que recentemente protagonizou uma mostra individual no New Museum, em Nova York. “Eles só investem em um tipo de vegetal. As outras plantas — os intelectuais e os artistas — não conseguem crescer, e por isso vão brotar em outros lugares.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

THE NEW YORK TIMES -No último entardecer antes do primeiro turno das eleições mais difíceis em suas duas décadas no poder, o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, visitou a Hagia Sophia para realizar as orações noturnas — e recordar os eleitores a respeito de suas realizações.

Por quase um milênio, a catedral abobadada foi o epicentro do cristianismo ortodoxo. Depois da conquista otomana de Constantinopla, em 1453, o local se tornou uma das mesquitas mais belas do mundo islâmico. Nos anos 30, a nova república turca o proclamou um museu, e por quase um século seu passado sobreposto cristão e muçulmano fez de lá um dos espaços de cultura mais visitados na Turquia.

O presidente Erdogan não foi tão ecumênico: em 2020, ele converteu o local de volta em mesquita. Quando os turcos retornarem às urnas neste domingo, no segundo turno da eleição presidencial, eles votarão em parte na ideologia política por trás dessa metamorfose cultural.

Recep Erdogan visita a mesquita Hagia Sophia, em Istambul Foto: Kayhan Ozer/Presidential Palace/Handout

Metamorfose cultural

Juntando-se às multidões na agora Grande Mesquita de Hagia Sophia, deixando os sapatos nas novas prateleiras compridas instaladas no átrio interno, pode-se contemplar os mosaicos de Cristo e da Virgem, hoje cobertos discretamente por cortinas brancas. O famoso chão de mármore foi estofado por um grosso carpete turquesa. O som fica mais abafado. O ambiente é mais iluminado por candelabros dourados. Bem na entrada, em uma moldura simples, há uma proclamação presidencial: uma rejeição monumental ao século laico do país e uma afirmação de uma nova Turquia digna de seu passado de glória otomano.

“Hagia Sophia é a coroação daquele sonho neo-otomanista”, afirmou o professor de história Edhem Eldem, da Universidade Bogazici, de Istambul. “É basicamente uma transposição de lutas políticas e ideológicas, debates, visões polêmicas, ao reino de um entendimento muito, muito primitivo da história e do passado.”

Se o marco da política do século 21 é a ascensão da cultura e da identidade sobre economia e classe social, poderia-se que o movimento nasceu aqui na Turquia, que abriga uma das mais duradouras guerras culturais de que se tem notícia. E ao longo dos 20 anos recentes, em grandes monumentos ou telenovelas de gosto duvidoso, em sítios arqueológicos restaurados e novas mesquitas de estilo antiquado, Erdogan tem reorientado a cultura nacional da Turquia promovendo um reavivamento nostálgico do passado otomano — às vezes em grande estilo, às vezes na expressão do mais puro kitsch.

Partidários de Erdogan participam de comício em Istambul Foto: EFE/EPA/ERDEM SAHIN

Favoritismo no segundo turno

Depois de sobreviver a um primeiro turno apertado nas eleições, anteriormente este mês, Erdogan é agora favorito na disputa em segundo turno, neste domingo, contra Kemal Kilicdaroglu, o candidato da coalizão de oposição. A resiliência do presidente turco, quando consecutivas pesquisas previam sua derrota, certamente denota o controle sistemático de seu partido sobre os meios de comunicação e os tribunais do país (a Freedom House, entidade que classifica o estado da democracia nos países, baixou a colocação da Turquia de “parcialmente livre” para “não livre” em 2018). Mas o autoritarismo vai muito além de votos e tiros. Televisão, música, monumentos e memoriais foram as principais alavancas de um projeto político: uma campanha de ressentimento cultural e renascimento nacional que culminou em maio, nos carpetes azul-esverdeados instalados sob a abóbada de Hagia Sophia.

Fora da Turquia, essa reviravolta cultural é com frequência descrita como “islamista”, e Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento, conhecido como AKP, realmente passaram a permitir expressões de religiosidade anteriormente banidas, como as mulheres cobrirem o cabelo com véus dentro de instituições públicas. Um Museu das Civilizações Islâmicas completo, com uma “abóbada digital” e projeções de luzes ao estilo de mostras imersivas de obras de artistas consagrados, foi inaugurado em 2022 dentro da nova maior mesquita de Istambul.

Mas esta eleição sugere que o nacionalismo, não a religião, pode ser o verdadeiro fio condutor da revolução cultural de Erdogan. Suas celebrações do passado otomano — e o ressentimento dos que supostamente o odeiam, seja no Ocidente ou dentro da Turquia — caminham ao lado de esforços nacionalistas não relacionados com o Islã. O país organizou campanhas agressivas pela devolução de antiguidades greco-romanas levadas para museus no Ocidente. Equipes estrangeiras de arqueologia tiveram permissões de trabalho canceladas. A Turquia se posiciona na vanguarda obscura de uma tendência vista por toda parte hoje, principalmente nos Estados Unidos: uma política cultural de ressentimento perpétuo, quando a indignação é mantida mesmo após a vitória.

Cerco aos artistas e à imprensa

Para os escritores, artistas, acadêmicos e cantores deste país, enfrentando censura ou coisa pior, a perspectiva de mudança de governo trata menos de preferências políticas do que de sobrevivência prática. Desde 2013, quando um movimento de protesto em estilo Occupy Wall Street se manifestou no Parque Gezi, em Istambul, atacando diretamente seu governo, Erdogan endureceu o autoritarismo. Várias personalidades da cultura permanecem presas, incluindo a arquiteta Mucella Yapici, as cineastas Mine Ozerden e Cigdem Mater e o filantropo das artes Osman Kavala. Escritores como Can Dundar e Asli Erdogan (não é parente do presidente), que foram presos durante a reação à tentativa fracassada de golpe militar contra Erdogan, em 2016, vivem exilados na Alemanha.

Mais de uma dúzia de apresentações musicais foram canceladas no ano passado, entre elas um recital do violinista Ara Malikian, que tem ascendência armênia, e um show da cantora pop-folclórica curda Aynur Dogan. As tensões se intensificaram de maneira funesta este mês pouco após o primeiro turno da votação, quando um músico curdo foi esfaqueado até a morte em um terminal hidroviário por se recusar a cantar uma música nacionalista da Turquia.

Nos dias que se seguiram ao primeiro turno da votação, eu conheci Banu Cennetoglu, uma das mais aclamadas artistas do país, cuja homenagem a uma jornalista curda, na edição de 2017 da mostra de arte contemporânea Documenta, foi aclamada no exterior mas complicou sua vida dentro da Turquia. “O que assusta neste momento em comparação aos anos 90, que também foram difíceis, especialmente para a comunidade curda, é que naquela época a gente conseguia antever de onde vinha o mal”, disse-me ela. “E agora esse mal pode vir de qualquer pessoa, é muito mais aleatório.”

A estratégia funcionou. A mídia independente encolheu. A autocensura é geral. “Todas as instituições de arte e cultura estão extremamente silenciosas há cinco anos”, afirmou Cennetoglu. “E para mim, enquanto artista, isso é inaceitável. A minha dúvida é: quando chegará nosso limite? Quando diremos não? E por quê?”

Nacionalismo não é nenhuma novidade na Turquia. “Todo mundo é nacionalista neste país”, observou Eldem. E os kemalistas — a elite secular que dominou a política daqui por décadas até a ascensão de Erdogan, em 2003 — também se valia de temas nacionalistas para orientar a cultura para seus objetivos políticos. Os primeiros filmes turcos glorificavam as conquistas de Mustafá Kemal Ataturk. Escavações arqueológicas de antiguidades hititas pretendiam fornecer à nova república um passado ainda mais ancestral do que as histórias da Grécia e da Itália.

Nos anos 2000, a combinação entre islamismo e reformismo de Erdogan colocou a Turquia às portas da União Europeia. Uma nova Istambul era saudada pela imprensa internacional. Mas o novo nacionalismo turco tinha uma cepa cultural distinta: orgulhosamente islâmica, com frequência antagônica e certas vezes meio paranóica.

Uma das instituições culturais sinalizadoras dos anos de Erdogan foi o Museu de História Panorama 1453, localizado em um distrito de classe trabalhadora a oeste de Hagia Sophia, onde crianças em idade escolar aprendiam a respeito da conquista otomana de Constantinopla em um ciclorama. Em certo momento, uma pintura sobre uma tela circular pode ter sido imersão suficiente, mas agora o museu foi melhorado com projeções ofuscantes de vídeos e um concurso de beleza violentamente nacionalista, no estilo do videogame “Civilization”. As crianças podem assistir ao sultão Mehmed II atacar Hagia Sophia enquanto seu cavalo empina diante de uma bola de fogo celestial.

Fiéis tiram os sapatos antes de entrar na Hagia Sophia  Foto: Bradley Secker/The New York Times

As novelas turcas

Há uma pano de fundo similar nas telenovelas turcas, que são enormemente populares não apenas aqui, mas também internacionalmente, com centenas de milhões de espectadores no mundo muçulmano, na Alemanha, no México e em toda parte. Em séries como “O grande guerreiro otomano”, sucesso internacional a respeito de um líder de clã turco, ou “Kurulus: Osman”, uma saga à la “Game of Thrones” que vai ao ar todas as quartas-feiras por aqui, passado e presente começam a se fundir.

“Eles estão impregnando as eras ancestrais com o discurso de Tayyip Erdogan”, afirmou a antropóloga cultural Ayse Cavdar, que estuda esses programas. “Se Erdogan enfrenta alguma dificuldade neste momento, o problema é reformulado em um contexto otomano, ficcional. Assim sendo, não é o conhecimento a respeito da dificuldade atual, mas a impressão sobre ela, que se espalha pela sociedade.”

Nessas telenovelas semi-históricas, os heróis são decididos, corajosos e gloriosos, mas as entidades políticas que eles lideram são frágeis, hesitantes e ameaçadas por forasteiros. Cavdar notou que frequentemente as séries de TV mostram líderes de Estados recentes e cercados de perigos. “Como se esse sujeito não estivesse governando o país há 20 anos!”, afirmou ela.

A cultura também entrou na pauta da campanha do segundo turno, com Erdogan inaugurando as novas instalações do Museu de Arte Moderna de Istambul. O presidente foi elogiado pelo novo museu à beira do Bósforo projetado pelo arquiteto italiano Renzo Piano — mas não conseguiu evitar criticar os feitos do século passado, que ele descreve como um abandono da tradição otomana.

Agora, o presidente promete o alvorecer de um autêntico “século turco”. Se ele vencer neste domingo, seu neo-otomanismo terá sobrevivido ao seu teste mais severo em duas décadas. As figuras da cultura que terão mais a lamentar são, evidentemente, as que estão na cadeia, mas a vitória de Erdogan seria um desfecho amargo também para acadêmicos, autores e outras personalidades que deixaram o país após os expurgos de Erdogan. “A engenharia social do AKP pode ser comparada à monocultura na agricultura industrial”, afirmou a jovem artista Asli Cavusoglu, que recentemente protagonizou uma mostra individual no New Museum, em Nova York. “Eles só investem em um tipo de vegetal. As outras plantas — os intelectuais e os artistas — não conseguem crescer, e por isso vão brotar em outros lugares.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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