Como espiões ucranianos com laços com a CIA tramaram a morte da filha do mentor de Putin


O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro

Por Greg Miller e Isabelle Khurshudyan

KIEV — O carro abarrotado que transportava uma mãe e sua filha de 12 anos não parecia merecer atenção das autoridades russas conforme se aproximava de um posto de controle fronteiriço. Mas a bagagem mais chamativa, uma caixa de transporte de bichos de estimação, era parte de uma conspiração elaborada e letal. Operadores ucranianos tinham instalado um compartimento oculto na caixa, de acordo com autoridades de segurança cientes da operação, usado para esconder componentes de uma bomba.

Quatro semanas depois, o artefato explodiu nas proximidades de Moscou, no SUV conduzido pela filha de um nacionalista russo que instava seu país a “matar, matar e matar” os ucranianos; explosão que sinalizou que a capital russa não seria poupada da carnificina da guerra.

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A operação foi orquestrada pelo serviço de segurança doméstica da Ucrânia (SBU), de acordo com autoridades que forneceram detalhes, incluindo o uso da caixa de transporte de animais, anteriormente não revelados. O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, pilotaram drones que se aproximaram do Kremlin e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro.

Aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, Alexander Dugin comparece ao funeral de sua filha, Daria Dugina, que morreu em Moscou após uma bomba explodir em seu carro  Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP

Essas operações foram classificadas como medidas extremas que a Ucrânia foi forçada a adotar em resposta à invasão da Rússia, iniciada no ano passado. Na realidade, mostram capacidades que as agências de espionagem ucranianas desenvolveram ao longo de quase uma década, desde que a Rússia tomou território ucraniano pela primeira vez, em 2014, um período no qual os serviços ucranianos também forjaram novos laços com a CIA.

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As missões envolveram equipes de elite de operadores ucranianos que atuavam em diretorados que foram formados, treinados e equipados em parceria próxima com a CIA, de acordo com autoridades e ex-autoridades da Ucrânia e dos EUA. Desde 2015, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para transformar serviços ucranianos formados na era soviética em potentes aliados contra Moscou, afirmaram autoridades. A agência americana forneceu aos ucranianos avançados sistemas de vigilância, treinou recrutas em campos na Ucrânia e nos EUA, construiu novas instalações para departamentos da agência de inteligência militar da Ucrânia e compartilhou informações de inteligência numa escala inimaginável antes da Rússia anexar ilegalmente a Crimeia e fomentar uma guerra separatista no leste ucraniano. A CIA mantém uma presença significativa em Kiev, afirmaram autoridades.

A profundidade do envolvimento da CIA nos serviços de segurança da Ucrânia não havia sido revelada anteriormente. Autoridades de inteligência dos EUA enfatizaram que a agência não tem nenhum envolvimento em operações de assassinato seletivo praticadas pelas agências ucranianas e que seu trabalho tem colocado foco em auxiliar e dar recursos à capacidade dos serviços de reunir informações de inteligência de um adversário perigoso. Uma graduada autoridade de inteligência afirmou que “qualquer preocupação operacional era transmitida claramente para os serviços ucranianos”.

Motoristas registram ataque a ponte da Crimeia, que liga a Rússia a Península da Crimeia  Foto: Reuters/Reuters
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Muitas das operações clandestinas da Ucrânia têm objetivos militares claros e contribuíram para a defesa do país. A operação com carro-bomba que matou Daria Dugina, contudo, sublinhou a aceitação da Ucrânia ao que autoridades em Kiev descrevem como “aniquilações” enquanto ferramentas de guerra. Ao longo dos 20 meses recentes, o SBU e sua contraparte militar, a Diretoria Principal de Inteligência (GUR), realizaram dezenas de assassinatos de autoridades russas em territórios ocupados, de supostos colaboradores ucranianos, de oficiais militares russos atrás das linhas de combate e de apoiadores proeminentes da guerra dentro da Rússia. Os mortos incluem um ex-comandante de submarino russo assassinado a tiros enquanto corria em um parque na cidade russa de Krasnodar e um blogueiro militante morto numa explosão em um café de São Petersburgo, de acordo com autoridades ucranianas e ocidentais.

A afinidade da Ucrânia com operações letais complicou sua colaboração com a CIA, levantando preocupações sobre a cumplicidade da agência americana e criando desconforto entre algumas autoridades em Kiev e Washington.

Mesmo aqueles que consideram operações de assassinato defensáveis em tempos de guerra questionam a utilidade de certos ataques e decisões que produziram alvos civis, como Dugina ou seu pai, Alexander Dugin — que autoridades afirmam ter sido o objetivo pretendido — em vez de russos ligados mais diretamente à guerra.

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Policiais russos limpam escombros após a explosão de uma bomba em um café em São Petersburgo, Rússia Foto: Olga Maltseva/AFP

“Nós temos inimigos demais cuja neutralização é mais importante”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência da Ucrânia. “Indivíduos que lançam mísseis, indivíduos que cometeram atrocidades em Bucha”. Matar a filha de um ativista defensor da guerra é “muito cinismo”, disse a fonte.

Outras autoridades citaram preocupações a respeito das táticas de assassinato da Ucrânia poderem parecer justificáveis agora — especialmente contra um país acusado de atrocidades de guerra generalizadas — mas posteriormente se provarem difíceis de controlar.

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“Nós estamos vendo o nascimento de um conjunto de serviços de inteligência parecido com o Mossad nos anos 70″, afirmou uma ex-autoridade da CIA, referindo-se à agência de espionagem israelense há muito acusada de realizar assassinatos em outros países. A proficiência da Ucrânia em operações desse tipo “tem riscos para a Rússia”, afirmou a fonte, “mas também ocasiona riscos maiores”.

“Se as operações de inteligência da Ucrânia tornarem-se ainda mais ousadas — mirando russos em países terceiros, por exemplo — é possível imaginar como isso poderia causar fissuras entre parceiros e tensionar seriamente objetivos maiores da Ucrânia”, afirmou a autoridade. Entre esses objetivos está a adesão à Otan e à União Europeia.

Esta reportagem tem como base entrevistas concedidas por mais de duas dúzias de autoridades de inteligência e segurança ucranianas, americanas e ocidentais, que falaram sob condição de anonimato citando preocupações de segurança e a sensibilidade do tema. A pressão sobre Kiev para vencer a Rússia e encontrar maneiras de dissuadir futuras agressões cria incentivos para exageros dos registros e capacidades dos serviços ucranianos. O Post confirmou detalhes importantes com múltiplas fontes e acesso a diferentes dados de inteligência.

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A CIA recusou-se a comentar.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma visita a Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Kevin Lamarque/AFP

A parceria CIA-Ucrânia

Autoridades do SBU e da GUR descrevem suas funções operacionais em expansão como resultado de circunstâncias excepcionais. “Todos os alvos atingidos pelo SBU são completamente legais”, afirmou o diretor da agência, Vasil Maliuk, em um comunicado ao Post. O comunicado não se referiu especificamente a operações de assassinato, mas Maliuk, que se reuniu com altas autoridades da CIA e de outras agências governamentais americanas em Washington, no mês passado, afirmando que a Ucrânia “faz tudo para garantir que a punição justa ‘alcance’ todos os traidores, criminosos de guerra e colaboradores”.

Autoridades e ex-autoridades americanas afirmaram que ambos os lados buscaram manter uma distância cuidadosa entre a CIA e as operações letais realizadas por seus parceiros em Kiev. Autoridades da CIA expressaram objeções após algumas operações, afirmam autoridades, mas a agência americana não retirou seu apoio.

“Nós nunca envolvemos nossos parceiros internacionais em operações secretas, especialmente atrás das linhas de combate”, afirmou uma ex-autoridade ucraniana graduada de segurança. Operadores do SBU e da GUR não agiram acompanhados de contrapartes da CIA. A Ucrânia evitou usar armas ou equipamentos que possam ser rastreados até fontes americanas, e até fluxos de financiamento secreto foram segregados.

“Nós tínhamos muitas restrições a respeito de trabalhar com os ucranianos operacionalmente”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA. A ênfase era “mais em comunicações seguras e intercâmbios” e em perseguir novos fluxos de inteligência dentro da Rússia, “em vez de ‘vejam como se explode um prefeito’. Eu nunca tive a sensação de que estávamos envolvidos em projetar suas operações”.

Uma foto de 2014 de Yevgeny Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia, que foi morto a tiros em 2016 em um restaurante de Moscou, Rússia Foto: Sergiy Bobok/AFP

Mesmo assim, autoridades reconheceram que os limites ocasionalmente se confundiram. Oficiais da CIA em Kiev foram informados a respeito de planos ambiciosos de ataques da Ucrânia. Em alguns casos, incluindo no bombardeio à Ponte Kerch, autoridades americanas registraram preocupações.

Os espiões ucranianos desenvolveram suas próprias diretrizes a respeito de quais operações discutir e sobre quais silenciar. “Havia certas coisas que nós talvez não conversássemos” com contrapartes da CIA, afirmou uma segunda autoridade ucraniana envolvida nesse tipo de missão. Ele afirmou que cruzar esses limites levaria a respostas secas dos americanos: “Nós não queremos participar disso de nenhuma maneira”.

A profunda parceria da CIA com a Ucrânia, que persistiu mesmo quando o país foi envolvido no escândalo em torno do impeachment do ex-presidente Donald Trump, representa uma reviravolta dramática para agências que passaram décadas de lados opostos da Guerra Fria. Em parte por causa desse legado, afirmaram autoridades, somente no ano passado a CIA removeu a Ucrânia da lista de países “sem amizade” com a agência, considerados tão arriscados em termos de segurança que qualquer contato com seus cidadãos por parte de funcionários da agência é proibido sem permissão prévia.

A colaboração CIA-Ucrânia criou raízes na esteira dos protestos políticos de 2014 na Ucrânia, que resultaram na fuga do país do então presidente, Viktor Yanukovich, pró-Rússia, seguida pela anexação da Crimeia por Moscou, que passou a armar separatistas nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano.

A silhueta de um policial do Capitólio é mostrada diante de um registro uma ligação entre o então presidente americano Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski Foto: Loren Elliott/Reuters

As fases iniciais de cooperação foram acanhadas, afirmaram autoridades, dadas as preocupações em ambos os lados de que os serviços ucranianos ainda fossem pesadamente impregnados pela FSB — a agência russa constituída como principal sucessora da KGB. Para gerir o risco de segurança, a CIA trabalhou com o SBU para criar um diretorado completamente novo, afirmaram autoridades, que colocasse foco nas chamadas operações de “medidas ativas” contra a Rússia e ficaria isolado de outros departamentos do serviço ucraniano de inteligência.

A nova unidade foi batizada informalmente de “Quinto Diretorado”, para distingui-la das outras quatro antigas unidades do SBU. Um sexto diretorado foi adicionado desde então, afirmaram autoridades, para trabalhar com a agência britânica de espionagem MI6.

Campos de treinamento foram instalados nas imediações de Kiev, onde recrutas escolhidos a dedo foram treinados por operadores da CIA, afirmaram autoridades. O plano era formar unidades “capazes de operar atrás das linhas de combate e trabalhar como grupos secretos”, afirmou uma autoridade ucraniana envolvida no esforço.

A agência forneceu equipamentos seguros de comunicação, dispositivos de escuta que permitiram à Ucrânia interceptar telefonemas e e-mails dos russos e até disfarces e uniformes de separatistas, possibilitando aos operadores inserir-se mais facilmente em cidades ocupadas.

As primeiras missões tiveram como foco recrutar informantes entre as forças que apoiam a Rússia e medidas de vigilância cibernética e eletrônica, afirmaram autoridades. O SBU também começou a montar operações de sabotagem e missões de captura a líderes separatistas e colaboradores ucranianos, alguns deles foram levados para centros de detenção secretos.

Mas as operações logo tomaram o rumo da letalidade. Ao longo de três anos, pelo menos meia dúzia de operadores russos, comandantes separatistas de alta patente ou colaboradores foram mortos com violência em ações frequentemente atribuídas a acertos de contas internos mas que na realidade foram obra do SBU, afirmaram autoridades ucranianas.

Entre os mortos estava Yevgeni Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia assassinado a tiros em um restaurante de Moscou, em 2016. Um ano depois, um comandante rebelde conhecido como “Givi” foi morto em Donetsk numa operação na qual uma mulher que o acusava de estupro foi recrutada para plantar uma bomba ao lado dele, de acordo com uma ex-autoridade envolvida na missão.

Autoridades ucranianas afirmaram que a opção de seu país por métodos mais letais foi motivada pela agressão russa, por atrocidades cometidas por seus apoiadores e pelo desespero para encontrar maneiras de enfraquecer o adversário mais poderoso. Muitos também citaram o suposto histórico de assassinatos da Rússia em Kiev.

“Em razão dessa guerra híbrida nós encaramos uma realidade absolutamente nova”, afirmou o parlamentar ucraniano Valentin Nalivaichenko, que era diretor do SBU em 2015, quando o Quinto Diretorado foi criado. “Nós fomos forçados a treinar nosso pessoal de outra maneira.”

Autoridades russas investigam a cena após o carro-bomba que matou Daria Dugina em 2022 Foto: Comitê Investigativo Russo/AFP

Transformando a inteligência militar ucraniana

Mesmo enquanto ajudava a construir o novo diretorado do SBU, a CIA embarcou em um projeto muito mais ambicioso.

Com menos de 5 mil empregados, a GUR tinha uma fração do tamanho do SBU e um foco mais estreito sobre espionagem e operações de medidas ativas contra a Rússia. Tinha também uma força de trabalho mais jovem, com menos remanescentes dos tempos soviéticos, enquanto o SBU ainda era percebido como impregnado pela inteligência russa.

“Nós calculamos que a GUR era uma organização menor e mais ágil, onde poderíamos surtir um impacto maior”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA que trabalhou na Ucrânia. “A GUR era o nosso bebê. Nós lhes dávamos todos os novos equipamentos e treinamentos.” Os oficiais da GUR “eram caras jovens, não generais KGB da era soviética”, afirmou a autoridade, “e o SBU era grande demais para reformar”.

Desdobramentos recentes pareceram validar essas preocupações. O ex-diretor da SBU Ivan Bakanov foi forçado a deixar o emprego no ano passado em meio a críticas de que a agência não estava se movimentando agressivamente o suficiente contra traidores internos. O SBU também descobriu no ano passado que modems de fabricação russa ainda eram usados nas redes da agência, ocasionando um alvoroço para desplugar os equipamentos.

Senador americano Mark Kelly posa para foto com soldado ucraniano ao lado de tanques russos quebrados em Kiev, Ucrânia  Foto: Efrem Lukatsky / AP

A GUR começou a recrutar operadores para seu próprio departamento de medidas ativas, afirmaram autoridades. Em instalações dentro da Ucrânia e, posteriormente, nos EUA, operadores da GUR foram treinados em capacidades como manobras clandestinas por trás de linhas inimigas e plataformas de armas e explosivos. Autoridades americanas afirmaram que o treinamento teve como objetivo ajudar operadores ucranianos a proteger a si mesmos em ambientes perigosos controlados por russos, em vez de atingir alvos russos.

Alguns dos recrutas mais novos da GUR transferiram-se do SBU, afirmaram autoridades, atraídos pelo serviço rival repleto de novas autoridades e recursos. Entre eles estava Vasil Burba, que havia coordenado o Quinto Diretorado do SBU antes de se juntar à GUR e dirigir a agência entre 2016 e 2020. Burba tornou-se um aliado tão próximo da CIA — e percebido como um alvo por Moscou — que ao ser demitido da função, após o presidente Volodmir Zelenski se eleger, recebeu da agência um carro blindado, afirmaram autoridades. Burba recusou-se a conversar com a reportagem.

A CIA ajudou a GUR a obter sistemas avançados de vigilância e escutas eletrônicas, afirmaram autoridades, que incluíram equipamentos móveis capazes de ser instalados em linhas controladas pelos russos no leste da Ucrânia, e também ferramentas de software usadas para explorar telefones de autoridades do Kremlin em visita a territórios ocupados. Oficiais ucranianos operaram os sistemas, afirmaram autoridades, mas toda informação levantada era compartilhada com os americanos.

Preocupados com a possibilidade das antigas instalações da GUR estarem comprometidas por grampos da inteligência russa, a CIA bancou a construção de novos escritórios para nova divisão paramilitar “spetsnaz” da GUR e um diretorado separado responsável por espionagem eletrônica.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu gabinete em Moscou, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/ AP

As novas capacidades foram transformadoras, afirmam autoridades. “Em um só dia nós conseguimos interceptar de 250 mil a 300 mil comunicações distintas” de militares russos e unidades da FSB, afirmou uma ex-autoridade graduada da GUR. “Tinha tanta informação que nós não conseguíamos dar conta sozinhos.”

Torrentes de dados foram retransmitidas para Washington por meio do novo escritório construído pela CIA. Nos EUA, as informações foram examinadas por analistas da CIA e da NSA, afirmaram autoridades.

“Nós estávamos dando a eles a capacidade — por meio das nossas — de coletar dados sobre” alvos russos, afirmou a ex-autoridade da GUR. Questionada a respeito do montante do investimento da CIA, a fonte afirmou: “foram milhões de dólares”.

Com o tempo, a GUR também desenvolveu uma rede de fontes no aparato de segurança da Rússia, incluindo na unidade da FSB responsável pelas operações na Ucrânia. Numa mostra de confiança entre EUA e Ucrânia, afirmaram autoridades, foi permitido à CIA contato direto com agentes recrutados e operados pela inteligência ucraniana.

O fruto inesperado em inteligência que resultou dessa relação esteve quase totalmente fora da visão do público, com exceções intermitentes. O SBU começou a postar interceptações de comunicações incriminatórias ou embaraçosas, incluindo uma na qual comandantes russos foram flagrados debatendo a culpabilidade de seu país na derrubada do avião comercial da Malaysian Airlines, em 2014.

Mesmo assim, autoridades afirmaram que dados de inteligência obtidos por meio da cooperação EUA-Ucrânia tem seus limites. Os alertas preliminares do governo Biden a respeito da determinação do presidente russo, Vladimir Putin, de derrubar o governo em Kiev, por exemplo, tiveram base principalmente em fluxos de inteligência distintos, dos quais a Ucrânia não esteve a par inicialmente.

De algumas maneiras, afirmam autoridades, os próprios esforços de coleta de inteligência da Ucrânia alimentaram um ceticismo que Zelenski e outros tinham a respeito dos planos de Putin porque os americanos estavam espionando militares e unidades da FSB que os ucranianos não conheciam até a véspera da guerra. “Eles estavam conseguindo um retrato acurado de pessoas que também estavam no escuro”, afirmou uma autoridade dos EUA.

Exército russo treina no sul do país em meio a guerra contra a Ucrânia  Foto: Ministério da Defesa da Rússia / AFP

Moscou na mira dos drones

As forças russas não conseguiram tomar Kiev. Mas ambas as estruturas da GUR que a CIA financiou estiveram entre as dezenas de instalações importantes na mira dos ataques da Rússia nos primeiros dias da guerra, afirmaram autoridades enfatizando que os edifícios resistiram e continuam a funcionar.

As novas capacidades de inteligência da Ucrânia provaram-se valiosas desde o início da guerra. O SBU, por exemplo, obteve informações de inteligência a respeito de alvos russos valiosos, possibilitando ataques que mataram vários comandantes e quase liquidaram o comandante das Forças Armadas da Rússia, Valeri Gerasimov.

Ao longo do ano recente, as missões dos serviços ucranianos de inteligência têm se centrado cada vez mais em alvos não apenas próximos às linhas inimigas, mas também no interior da Rússia.

Para o SBU, nenhum alvo teve mais prioridade que a Ponte Kerch, que conecta a Rússia continental à Península da Crimeia anexada. A ponte é um corredor militar crucial e carrega tanto significado simbólico para Putin que ele próprio a inaugurou, em 2018.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o Chefe das Forças Armadas, Valeri Gerasimov, que quase foi assassinado pela Ucrânia  Foto: Gabriil Grigorov/ AP

O SBU atingiu a ponte duas vezes no ano passado, incluindo em um bombardeio em outubro de 2022 que matou cinco pessoas e abriu um buraco na pista sentido oeste.

Zelenski inicialmente negou responsabilidade da Ucrânia, mas o diretor do SBU, Maliuk, descreveu a operação em extremo detalhe numa entrevista que concedeu este ano, reconhecendo que seu serviço tinha colocado um poderoso explosivo em um caminhão que transportava rolos industriais de celofane.

Como em outras sabotagens do SBU, essa operação envolveu cúmplices inconscientes, entre eles o motorista do caminhão morto na explosão. “Nós atravessamos os sete círculos do inferno mantendo tanta gente no escuro”, afirmou Maliuk numa entrevista a respeito da operação, que, segundo ele, dependeu da susceptibilidade de “contrabandistas russos comuns”.

Autoridades dos EUA informadas anteriormente expressaram preocupações a respeito do ataque, afirmaram autoridades, temendo uma escalada por parte da Rússia. Essas apreensões tinham presumivelmente se dissipado quando o SBU lançou um segundo ataque contra a ponte nove meses depois, usando drones navais desenvolvidos como parte de uma operação ultrassecreta envolvendo a CIA e outros serviços ocidentais de inteligência.

O relato detalhado da operação desafia a praxe da espionagem, mas serve à necessidade de Kiev de reivindicar sucessos e reflete uma rivalidade incipiente entre o SBU e a GUR. O chefe de inteligência da Ucrânia, Kirilo Budanov, tornou hábito promover as conquistas de sua agência e insultar Moscou.

Bolhas de gás são vistas após o vazamento do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico  Foto: Comando de Defesa da Dinamarca/Reuters

Os dois serviços apresentam certo grau de redundâncias operacionais, mas as autoridades do SBU tendem a perseguir missões mais complexas, com investigações mais extensas, enquanto a GUR tende a trabalhar num ritmo mais acelerado. Autoridades ucranianas negaram envolvimento direto das agências no ataque de setembro de 2022 contra o gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, mas agências de inteligência dos EUA e de outros países ocidentais concluíram que a Ucrânia está ligada à operação de sabotagem.

A GUR tem usado sua própria frota de drones para lançar dezenas de ataques em território russo, incluindo ações que atravessaram defesas antiaéreas russas e atingiram prédios em Moscou; entre elas, uma operação em maio deste ano que incendiou brevemente parte do telhado do Kremlin.

Esses ataques envolveram drones de longo alcance lançados do território ucraniano, assim como times de operadores e partisans trabalhando dentro da Rússia, afirmaram autoridades. Os motores de alguns drones foram comprados de fornecedores chineses, com financiamento privado que não pôde ser ligado a fontes ucranianas, de acordo com uma autoridade que afirmou ter se envolvido nas transações.

Assassinatos na Rússia

A GUR também entrou no ramo dos assassinatos, afirmaram autoridades.

Em julho, o ex-comandante de submarinos russo Stanislav Rzhitski foi morto com quatro tiros no tórax e nas costas em Krasnodar, onde, segundo relatos, ele trabalhava como recrutador militar. Rzhitski, de 42 anos, era conhecido por usar o aplicativo de exercícios Strava para registrar suas rotas diárias de corrida, um hábito que pode ter revelado sua localização.

A GUR emitiu uma declaração tímida desviando da responsabilidade mas citando em detalhes precisos as circunstâncias da morte de Rzhitski e notando que, “em razão da chuva forte, o parque estava vazio” e não houve testemunhas. Autoridades em Kiev confirmaram que a GUR foi responsável pelo assassinato.

Ainda que reconheçam responsabilidade por essas ações, as autoridades ucranianas reivindicam uma nobreza moral sobre a Rússia. O SBU e a GUR têm buscado evitar ferir transeuntes inocentes mesmo em operações letais, afirmaram autoridades, enquanto os ataques arrasadores e indiscriminados da Rússia têm matado ou ferido milhares de civis.

Autoridades de segurança afirmaram que nenhuma grande operação do SBU ou da GUR vai adiante sem aprovação — tácita ou explícita — de Zelenski. Um porta-voz do presidente ucraniano não respondeu a pedidos de comentário.

Céticos, não obstante, preocupam-se com a possibilidade do uso que a Ucrânia faz de operações de assassinato e ataques de drones contra os edifícios altos de Moscou não ajudar nem a causa ucraniana contra a Rússia nem suas aspirações a médio prazo para adesão à Otan e à UE.

Uma graduada autoridade ucraniana que trabalhou proximamente com governos ocidentais coordenando o apoio à Ucrânia afirmou que os ataques contra não combatentes e os bombardeios contra edifícios de Moscou alimentam a narrativa falsa de Putin de que a Ucrânia representava um perigo crescente para os russos comuns. “Isso colabora com suas mentiras de que os ucranianos estão indo pegar os russos”, afirmou a autoridade.

Essa visão parece minoritária. Outros consideram que os ataques estão melhorando o moral entre ucranianos sitiados e adquirem um ar de justiçamento vigilante para os supostos crimes de guerra da Rússia, que, na visão de muitos ucranianos, nunca serão submetidos a sanções das Nações Unidas ou de cortes internacionais.

O atentado com carro-bomba que matou Dugina no ano passado continua a se sobressair como um dos casos mais extremos de vingança letal — não apenas direcionada contra não combatentes, mas que envolveu uma mulher ucraniana e uma pré-adolescente presumivelmente sem conhecimento da ação.

Alexander Dugin, aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o funeral de sua filha, Daria Dugina  Foto: Maxim Shemetov/Reuters

As autoridades russas mal acabavam de limpar os destroços quando a FSB identificou Natalia Vovk, de 42 anos, como a principal suspeita. Ela entrou na Rússia a partir da Estônia em julho, de acordo com a FSB, viveu num apartamento no mesmo condomínio que Dugina, passou semanas realizando vigilância e, depois da explosão, voltou com a filha para a Estônia.

A FSB também identificou um suposto cúmplice que, segundo a Rússia, forneceu placas veiculares do Cazaquistão para que Vovk usasse em seu carro, um Mini Cooper, enquanto viajava pela Rússia, ajudou a montar a bomba e fugiu para a Estônia antes do ataque.

As autoridades ucranianas afirmaram que Vovk foi motivada em parte pelo cerco da Rússia à sua cidade, Mariupol. E se recusaram a comentar a natureza de sua relação com o SBU ou seu paradeiro atual.

O ataque tinha intenção de matar Dugin quando ele e sua filha deixassem um festival cultural onde o ideólogo pró-guerra, às vezes chamado de “cérebro de Putin”, tinha dado palestra. Esperava-se que ambos saíssem juntos do evento, mas Dugin entrou em outro carro. Vovk, segundo a FSB, também compareceu ao festival.

Na época, a Ucrânia negou vigorosamente envolvimento no ataque. “A Ucrânia não tem absolutamente nada a ver com isso, porque nós não somos um Estado criminoso nem terrorista como a Rússia”, afirmou Mikhailo Podoliak, um dos conselheiro de Zelenski.

Autoridades reconheceram em entrevistas recentes em Kiev, contudo, que essas negativas eram falsas — e confirmaram que o SBU planejou e executou a operação afirmando que, mesmo que Dugin fosse o alvo principal, sua filha, também apoiadora fervente da invasão, não foi uma vítima inocente.

“Ela é filha do pai da propaganda russa”, afirmou uma autoridade de segurança. O atentado com carro-bomba e outras operações dentro da Rússia “trabalham narrativas”, mostrando aos inimigos da Ucrânia que “a punição é iminente mesmo para quem acha que é intocável”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

KIEV — O carro abarrotado que transportava uma mãe e sua filha de 12 anos não parecia merecer atenção das autoridades russas conforme se aproximava de um posto de controle fronteiriço. Mas a bagagem mais chamativa, uma caixa de transporte de bichos de estimação, era parte de uma conspiração elaborada e letal. Operadores ucranianos tinham instalado um compartimento oculto na caixa, de acordo com autoridades de segurança cientes da operação, usado para esconder componentes de uma bomba.

Quatro semanas depois, o artefato explodiu nas proximidades de Moscou, no SUV conduzido pela filha de um nacionalista russo que instava seu país a “matar, matar e matar” os ucranianos; explosão que sinalizou que a capital russa não seria poupada da carnificina da guerra.

A operação foi orquestrada pelo serviço de segurança doméstica da Ucrânia (SBU), de acordo com autoridades que forneceram detalhes, incluindo o uso da caixa de transporte de animais, anteriormente não revelados. O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, pilotaram drones que se aproximaram do Kremlin e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro.

Aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, Alexander Dugin comparece ao funeral de sua filha, Daria Dugina, que morreu em Moscou após uma bomba explodir em seu carro  Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP

Essas operações foram classificadas como medidas extremas que a Ucrânia foi forçada a adotar em resposta à invasão da Rússia, iniciada no ano passado. Na realidade, mostram capacidades que as agências de espionagem ucranianas desenvolveram ao longo de quase uma década, desde que a Rússia tomou território ucraniano pela primeira vez, em 2014, um período no qual os serviços ucranianos também forjaram novos laços com a CIA.

As missões envolveram equipes de elite de operadores ucranianos que atuavam em diretorados que foram formados, treinados e equipados em parceria próxima com a CIA, de acordo com autoridades e ex-autoridades da Ucrânia e dos EUA. Desde 2015, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para transformar serviços ucranianos formados na era soviética em potentes aliados contra Moscou, afirmaram autoridades. A agência americana forneceu aos ucranianos avançados sistemas de vigilância, treinou recrutas em campos na Ucrânia e nos EUA, construiu novas instalações para departamentos da agência de inteligência militar da Ucrânia e compartilhou informações de inteligência numa escala inimaginável antes da Rússia anexar ilegalmente a Crimeia e fomentar uma guerra separatista no leste ucraniano. A CIA mantém uma presença significativa em Kiev, afirmaram autoridades.

A profundidade do envolvimento da CIA nos serviços de segurança da Ucrânia não havia sido revelada anteriormente. Autoridades de inteligência dos EUA enfatizaram que a agência não tem nenhum envolvimento em operações de assassinato seletivo praticadas pelas agências ucranianas e que seu trabalho tem colocado foco em auxiliar e dar recursos à capacidade dos serviços de reunir informações de inteligência de um adversário perigoso. Uma graduada autoridade de inteligência afirmou que “qualquer preocupação operacional era transmitida claramente para os serviços ucranianos”.

Motoristas registram ataque a ponte da Crimeia, que liga a Rússia a Península da Crimeia  Foto: Reuters/Reuters

Muitas das operações clandestinas da Ucrânia têm objetivos militares claros e contribuíram para a defesa do país. A operação com carro-bomba que matou Daria Dugina, contudo, sublinhou a aceitação da Ucrânia ao que autoridades em Kiev descrevem como “aniquilações” enquanto ferramentas de guerra. Ao longo dos 20 meses recentes, o SBU e sua contraparte militar, a Diretoria Principal de Inteligência (GUR), realizaram dezenas de assassinatos de autoridades russas em territórios ocupados, de supostos colaboradores ucranianos, de oficiais militares russos atrás das linhas de combate e de apoiadores proeminentes da guerra dentro da Rússia. Os mortos incluem um ex-comandante de submarino russo assassinado a tiros enquanto corria em um parque na cidade russa de Krasnodar e um blogueiro militante morto numa explosão em um café de São Petersburgo, de acordo com autoridades ucranianas e ocidentais.

A afinidade da Ucrânia com operações letais complicou sua colaboração com a CIA, levantando preocupações sobre a cumplicidade da agência americana e criando desconforto entre algumas autoridades em Kiev e Washington.

Mesmo aqueles que consideram operações de assassinato defensáveis em tempos de guerra questionam a utilidade de certos ataques e decisões que produziram alvos civis, como Dugina ou seu pai, Alexander Dugin — que autoridades afirmam ter sido o objetivo pretendido — em vez de russos ligados mais diretamente à guerra.

Policiais russos limpam escombros após a explosão de uma bomba em um café em São Petersburgo, Rússia Foto: Olga Maltseva/AFP

“Nós temos inimigos demais cuja neutralização é mais importante”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência da Ucrânia. “Indivíduos que lançam mísseis, indivíduos que cometeram atrocidades em Bucha”. Matar a filha de um ativista defensor da guerra é “muito cinismo”, disse a fonte.

Outras autoridades citaram preocupações a respeito das táticas de assassinato da Ucrânia poderem parecer justificáveis agora — especialmente contra um país acusado de atrocidades de guerra generalizadas — mas posteriormente se provarem difíceis de controlar.

“Nós estamos vendo o nascimento de um conjunto de serviços de inteligência parecido com o Mossad nos anos 70″, afirmou uma ex-autoridade da CIA, referindo-se à agência de espionagem israelense há muito acusada de realizar assassinatos em outros países. A proficiência da Ucrânia em operações desse tipo “tem riscos para a Rússia”, afirmou a fonte, “mas também ocasiona riscos maiores”.

“Se as operações de inteligência da Ucrânia tornarem-se ainda mais ousadas — mirando russos em países terceiros, por exemplo — é possível imaginar como isso poderia causar fissuras entre parceiros e tensionar seriamente objetivos maiores da Ucrânia”, afirmou a autoridade. Entre esses objetivos está a adesão à Otan e à União Europeia.

Esta reportagem tem como base entrevistas concedidas por mais de duas dúzias de autoridades de inteligência e segurança ucranianas, americanas e ocidentais, que falaram sob condição de anonimato citando preocupações de segurança e a sensibilidade do tema. A pressão sobre Kiev para vencer a Rússia e encontrar maneiras de dissuadir futuras agressões cria incentivos para exageros dos registros e capacidades dos serviços ucranianos. O Post confirmou detalhes importantes com múltiplas fontes e acesso a diferentes dados de inteligência.

A CIA recusou-se a comentar.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma visita a Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Kevin Lamarque/AFP

A parceria CIA-Ucrânia

Autoridades do SBU e da GUR descrevem suas funções operacionais em expansão como resultado de circunstâncias excepcionais. “Todos os alvos atingidos pelo SBU são completamente legais”, afirmou o diretor da agência, Vasil Maliuk, em um comunicado ao Post. O comunicado não se referiu especificamente a operações de assassinato, mas Maliuk, que se reuniu com altas autoridades da CIA e de outras agências governamentais americanas em Washington, no mês passado, afirmando que a Ucrânia “faz tudo para garantir que a punição justa ‘alcance’ todos os traidores, criminosos de guerra e colaboradores”.

Autoridades e ex-autoridades americanas afirmaram que ambos os lados buscaram manter uma distância cuidadosa entre a CIA e as operações letais realizadas por seus parceiros em Kiev. Autoridades da CIA expressaram objeções após algumas operações, afirmam autoridades, mas a agência americana não retirou seu apoio.

“Nós nunca envolvemos nossos parceiros internacionais em operações secretas, especialmente atrás das linhas de combate”, afirmou uma ex-autoridade ucraniana graduada de segurança. Operadores do SBU e da GUR não agiram acompanhados de contrapartes da CIA. A Ucrânia evitou usar armas ou equipamentos que possam ser rastreados até fontes americanas, e até fluxos de financiamento secreto foram segregados.

“Nós tínhamos muitas restrições a respeito de trabalhar com os ucranianos operacionalmente”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA. A ênfase era “mais em comunicações seguras e intercâmbios” e em perseguir novos fluxos de inteligência dentro da Rússia, “em vez de ‘vejam como se explode um prefeito’. Eu nunca tive a sensação de que estávamos envolvidos em projetar suas operações”.

Uma foto de 2014 de Yevgeny Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia, que foi morto a tiros em 2016 em um restaurante de Moscou, Rússia Foto: Sergiy Bobok/AFP

Mesmo assim, autoridades reconheceram que os limites ocasionalmente se confundiram. Oficiais da CIA em Kiev foram informados a respeito de planos ambiciosos de ataques da Ucrânia. Em alguns casos, incluindo no bombardeio à Ponte Kerch, autoridades americanas registraram preocupações.

Os espiões ucranianos desenvolveram suas próprias diretrizes a respeito de quais operações discutir e sobre quais silenciar. “Havia certas coisas que nós talvez não conversássemos” com contrapartes da CIA, afirmou uma segunda autoridade ucraniana envolvida nesse tipo de missão. Ele afirmou que cruzar esses limites levaria a respostas secas dos americanos: “Nós não queremos participar disso de nenhuma maneira”.

A profunda parceria da CIA com a Ucrânia, que persistiu mesmo quando o país foi envolvido no escândalo em torno do impeachment do ex-presidente Donald Trump, representa uma reviravolta dramática para agências que passaram décadas de lados opostos da Guerra Fria. Em parte por causa desse legado, afirmaram autoridades, somente no ano passado a CIA removeu a Ucrânia da lista de países “sem amizade” com a agência, considerados tão arriscados em termos de segurança que qualquer contato com seus cidadãos por parte de funcionários da agência é proibido sem permissão prévia.

A colaboração CIA-Ucrânia criou raízes na esteira dos protestos políticos de 2014 na Ucrânia, que resultaram na fuga do país do então presidente, Viktor Yanukovich, pró-Rússia, seguida pela anexação da Crimeia por Moscou, que passou a armar separatistas nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano.

A silhueta de um policial do Capitólio é mostrada diante de um registro uma ligação entre o então presidente americano Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski Foto: Loren Elliott/Reuters

As fases iniciais de cooperação foram acanhadas, afirmaram autoridades, dadas as preocupações em ambos os lados de que os serviços ucranianos ainda fossem pesadamente impregnados pela FSB — a agência russa constituída como principal sucessora da KGB. Para gerir o risco de segurança, a CIA trabalhou com o SBU para criar um diretorado completamente novo, afirmaram autoridades, que colocasse foco nas chamadas operações de “medidas ativas” contra a Rússia e ficaria isolado de outros departamentos do serviço ucraniano de inteligência.

A nova unidade foi batizada informalmente de “Quinto Diretorado”, para distingui-la das outras quatro antigas unidades do SBU. Um sexto diretorado foi adicionado desde então, afirmaram autoridades, para trabalhar com a agência britânica de espionagem MI6.

Campos de treinamento foram instalados nas imediações de Kiev, onde recrutas escolhidos a dedo foram treinados por operadores da CIA, afirmaram autoridades. O plano era formar unidades “capazes de operar atrás das linhas de combate e trabalhar como grupos secretos”, afirmou uma autoridade ucraniana envolvida no esforço.

A agência forneceu equipamentos seguros de comunicação, dispositivos de escuta que permitiram à Ucrânia interceptar telefonemas e e-mails dos russos e até disfarces e uniformes de separatistas, possibilitando aos operadores inserir-se mais facilmente em cidades ocupadas.

As primeiras missões tiveram como foco recrutar informantes entre as forças que apoiam a Rússia e medidas de vigilância cibernética e eletrônica, afirmaram autoridades. O SBU também começou a montar operações de sabotagem e missões de captura a líderes separatistas e colaboradores ucranianos, alguns deles foram levados para centros de detenção secretos.

Mas as operações logo tomaram o rumo da letalidade. Ao longo de três anos, pelo menos meia dúzia de operadores russos, comandantes separatistas de alta patente ou colaboradores foram mortos com violência em ações frequentemente atribuídas a acertos de contas internos mas que na realidade foram obra do SBU, afirmaram autoridades ucranianas.

Entre os mortos estava Yevgeni Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia assassinado a tiros em um restaurante de Moscou, em 2016. Um ano depois, um comandante rebelde conhecido como “Givi” foi morto em Donetsk numa operação na qual uma mulher que o acusava de estupro foi recrutada para plantar uma bomba ao lado dele, de acordo com uma ex-autoridade envolvida na missão.

Autoridades ucranianas afirmaram que a opção de seu país por métodos mais letais foi motivada pela agressão russa, por atrocidades cometidas por seus apoiadores e pelo desespero para encontrar maneiras de enfraquecer o adversário mais poderoso. Muitos também citaram o suposto histórico de assassinatos da Rússia em Kiev.

“Em razão dessa guerra híbrida nós encaramos uma realidade absolutamente nova”, afirmou o parlamentar ucraniano Valentin Nalivaichenko, que era diretor do SBU em 2015, quando o Quinto Diretorado foi criado. “Nós fomos forçados a treinar nosso pessoal de outra maneira.”

Autoridades russas investigam a cena após o carro-bomba que matou Daria Dugina em 2022 Foto: Comitê Investigativo Russo/AFP

Transformando a inteligência militar ucraniana

Mesmo enquanto ajudava a construir o novo diretorado do SBU, a CIA embarcou em um projeto muito mais ambicioso.

Com menos de 5 mil empregados, a GUR tinha uma fração do tamanho do SBU e um foco mais estreito sobre espionagem e operações de medidas ativas contra a Rússia. Tinha também uma força de trabalho mais jovem, com menos remanescentes dos tempos soviéticos, enquanto o SBU ainda era percebido como impregnado pela inteligência russa.

“Nós calculamos que a GUR era uma organização menor e mais ágil, onde poderíamos surtir um impacto maior”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA que trabalhou na Ucrânia. “A GUR era o nosso bebê. Nós lhes dávamos todos os novos equipamentos e treinamentos.” Os oficiais da GUR “eram caras jovens, não generais KGB da era soviética”, afirmou a autoridade, “e o SBU era grande demais para reformar”.

Desdobramentos recentes pareceram validar essas preocupações. O ex-diretor da SBU Ivan Bakanov foi forçado a deixar o emprego no ano passado em meio a críticas de que a agência não estava se movimentando agressivamente o suficiente contra traidores internos. O SBU também descobriu no ano passado que modems de fabricação russa ainda eram usados nas redes da agência, ocasionando um alvoroço para desplugar os equipamentos.

Senador americano Mark Kelly posa para foto com soldado ucraniano ao lado de tanques russos quebrados em Kiev, Ucrânia  Foto: Efrem Lukatsky / AP

A GUR começou a recrutar operadores para seu próprio departamento de medidas ativas, afirmaram autoridades. Em instalações dentro da Ucrânia e, posteriormente, nos EUA, operadores da GUR foram treinados em capacidades como manobras clandestinas por trás de linhas inimigas e plataformas de armas e explosivos. Autoridades americanas afirmaram que o treinamento teve como objetivo ajudar operadores ucranianos a proteger a si mesmos em ambientes perigosos controlados por russos, em vez de atingir alvos russos.

Alguns dos recrutas mais novos da GUR transferiram-se do SBU, afirmaram autoridades, atraídos pelo serviço rival repleto de novas autoridades e recursos. Entre eles estava Vasil Burba, que havia coordenado o Quinto Diretorado do SBU antes de se juntar à GUR e dirigir a agência entre 2016 e 2020. Burba tornou-se um aliado tão próximo da CIA — e percebido como um alvo por Moscou — que ao ser demitido da função, após o presidente Volodmir Zelenski se eleger, recebeu da agência um carro blindado, afirmaram autoridades. Burba recusou-se a conversar com a reportagem.

A CIA ajudou a GUR a obter sistemas avançados de vigilância e escutas eletrônicas, afirmaram autoridades, que incluíram equipamentos móveis capazes de ser instalados em linhas controladas pelos russos no leste da Ucrânia, e também ferramentas de software usadas para explorar telefones de autoridades do Kremlin em visita a territórios ocupados. Oficiais ucranianos operaram os sistemas, afirmaram autoridades, mas toda informação levantada era compartilhada com os americanos.

Preocupados com a possibilidade das antigas instalações da GUR estarem comprometidas por grampos da inteligência russa, a CIA bancou a construção de novos escritórios para nova divisão paramilitar “spetsnaz” da GUR e um diretorado separado responsável por espionagem eletrônica.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu gabinete em Moscou, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/ AP

As novas capacidades foram transformadoras, afirmam autoridades. “Em um só dia nós conseguimos interceptar de 250 mil a 300 mil comunicações distintas” de militares russos e unidades da FSB, afirmou uma ex-autoridade graduada da GUR. “Tinha tanta informação que nós não conseguíamos dar conta sozinhos.”

Torrentes de dados foram retransmitidas para Washington por meio do novo escritório construído pela CIA. Nos EUA, as informações foram examinadas por analistas da CIA e da NSA, afirmaram autoridades.

“Nós estávamos dando a eles a capacidade — por meio das nossas — de coletar dados sobre” alvos russos, afirmou a ex-autoridade da GUR. Questionada a respeito do montante do investimento da CIA, a fonte afirmou: “foram milhões de dólares”.

Com o tempo, a GUR também desenvolveu uma rede de fontes no aparato de segurança da Rússia, incluindo na unidade da FSB responsável pelas operações na Ucrânia. Numa mostra de confiança entre EUA e Ucrânia, afirmaram autoridades, foi permitido à CIA contato direto com agentes recrutados e operados pela inteligência ucraniana.

O fruto inesperado em inteligência que resultou dessa relação esteve quase totalmente fora da visão do público, com exceções intermitentes. O SBU começou a postar interceptações de comunicações incriminatórias ou embaraçosas, incluindo uma na qual comandantes russos foram flagrados debatendo a culpabilidade de seu país na derrubada do avião comercial da Malaysian Airlines, em 2014.

Mesmo assim, autoridades afirmaram que dados de inteligência obtidos por meio da cooperação EUA-Ucrânia tem seus limites. Os alertas preliminares do governo Biden a respeito da determinação do presidente russo, Vladimir Putin, de derrubar o governo em Kiev, por exemplo, tiveram base principalmente em fluxos de inteligência distintos, dos quais a Ucrânia não esteve a par inicialmente.

De algumas maneiras, afirmam autoridades, os próprios esforços de coleta de inteligência da Ucrânia alimentaram um ceticismo que Zelenski e outros tinham a respeito dos planos de Putin porque os americanos estavam espionando militares e unidades da FSB que os ucranianos não conheciam até a véspera da guerra. “Eles estavam conseguindo um retrato acurado de pessoas que também estavam no escuro”, afirmou uma autoridade dos EUA.

Exército russo treina no sul do país em meio a guerra contra a Ucrânia  Foto: Ministério da Defesa da Rússia / AFP

Moscou na mira dos drones

As forças russas não conseguiram tomar Kiev. Mas ambas as estruturas da GUR que a CIA financiou estiveram entre as dezenas de instalações importantes na mira dos ataques da Rússia nos primeiros dias da guerra, afirmaram autoridades enfatizando que os edifícios resistiram e continuam a funcionar.

As novas capacidades de inteligência da Ucrânia provaram-se valiosas desde o início da guerra. O SBU, por exemplo, obteve informações de inteligência a respeito de alvos russos valiosos, possibilitando ataques que mataram vários comandantes e quase liquidaram o comandante das Forças Armadas da Rússia, Valeri Gerasimov.

Ao longo do ano recente, as missões dos serviços ucranianos de inteligência têm se centrado cada vez mais em alvos não apenas próximos às linhas inimigas, mas também no interior da Rússia.

Para o SBU, nenhum alvo teve mais prioridade que a Ponte Kerch, que conecta a Rússia continental à Península da Crimeia anexada. A ponte é um corredor militar crucial e carrega tanto significado simbólico para Putin que ele próprio a inaugurou, em 2018.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o Chefe das Forças Armadas, Valeri Gerasimov, que quase foi assassinado pela Ucrânia  Foto: Gabriil Grigorov/ AP

O SBU atingiu a ponte duas vezes no ano passado, incluindo em um bombardeio em outubro de 2022 que matou cinco pessoas e abriu um buraco na pista sentido oeste.

Zelenski inicialmente negou responsabilidade da Ucrânia, mas o diretor do SBU, Maliuk, descreveu a operação em extremo detalhe numa entrevista que concedeu este ano, reconhecendo que seu serviço tinha colocado um poderoso explosivo em um caminhão que transportava rolos industriais de celofane.

Como em outras sabotagens do SBU, essa operação envolveu cúmplices inconscientes, entre eles o motorista do caminhão morto na explosão. “Nós atravessamos os sete círculos do inferno mantendo tanta gente no escuro”, afirmou Maliuk numa entrevista a respeito da operação, que, segundo ele, dependeu da susceptibilidade de “contrabandistas russos comuns”.

Autoridades dos EUA informadas anteriormente expressaram preocupações a respeito do ataque, afirmaram autoridades, temendo uma escalada por parte da Rússia. Essas apreensões tinham presumivelmente se dissipado quando o SBU lançou um segundo ataque contra a ponte nove meses depois, usando drones navais desenvolvidos como parte de uma operação ultrassecreta envolvendo a CIA e outros serviços ocidentais de inteligência.

O relato detalhado da operação desafia a praxe da espionagem, mas serve à necessidade de Kiev de reivindicar sucessos e reflete uma rivalidade incipiente entre o SBU e a GUR. O chefe de inteligência da Ucrânia, Kirilo Budanov, tornou hábito promover as conquistas de sua agência e insultar Moscou.

Bolhas de gás são vistas após o vazamento do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico  Foto: Comando de Defesa da Dinamarca/Reuters

Os dois serviços apresentam certo grau de redundâncias operacionais, mas as autoridades do SBU tendem a perseguir missões mais complexas, com investigações mais extensas, enquanto a GUR tende a trabalhar num ritmo mais acelerado. Autoridades ucranianas negaram envolvimento direto das agências no ataque de setembro de 2022 contra o gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, mas agências de inteligência dos EUA e de outros países ocidentais concluíram que a Ucrânia está ligada à operação de sabotagem.

A GUR tem usado sua própria frota de drones para lançar dezenas de ataques em território russo, incluindo ações que atravessaram defesas antiaéreas russas e atingiram prédios em Moscou; entre elas, uma operação em maio deste ano que incendiou brevemente parte do telhado do Kremlin.

Esses ataques envolveram drones de longo alcance lançados do território ucraniano, assim como times de operadores e partisans trabalhando dentro da Rússia, afirmaram autoridades. Os motores de alguns drones foram comprados de fornecedores chineses, com financiamento privado que não pôde ser ligado a fontes ucranianas, de acordo com uma autoridade que afirmou ter se envolvido nas transações.

Assassinatos na Rússia

A GUR também entrou no ramo dos assassinatos, afirmaram autoridades.

Em julho, o ex-comandante de submarinos russo Stanislav Rzhitski foi morto com quatro tiros no tórax e nas costas em Krasnodar, onde, segundo relatos, ele trabalhava como recrutador militar. Rzhitski, de 42 anos, era conhecido por usar o aplicativo de exercícios Strava para registrar suas rotas diárias de corrida, um hábito que pode ter revelado sua localização.

A GUR emitiu uma declaração tímida desviando da responsabilidade mas citando em detalhes precisos as circunstâncias da morte de Rzhitski e notando que, “em razão da chuva forte, o parque estava vazio” e não houve testemunhas. Autoridades em Kiev confirmaram que a GUR foi responsável pelo assassinato.

Ainda que reconheçam responsabilidade por essas ações, as autoridades ucranianas reivindicam uma nobreza moral sobre a Rússia. O SBU e a GUR têm buscado evitar ferir transeuntes inocentes mesmo em operações letais, afirmaram autoridades, enquanto os ataques arrasadores e indiscriminados da Rússia têm matado ou ferido milhares de civis.

Autoridades de segurança afirmaram que nenhuma grande operação do SBU ou da GUR vai adiante sem aprovação — tácita ou explícita — de Zelenski. Um porta-voz do presidente ucraniano não respondeu a pedidos de comentário.

Céticos, não obstante, preocupam-se com a possibilidade do uso que a Ucrânia faz de operações de assassinato e ataques de drones contra os edifícios altos de Moscou não ajudar nem a causa ucraniana contra a Rússia nem suas aspirações a médio prazo para adesão à Otan e à UE.

Uma graduada autoridade ucraniana que trabalhou proximamente com governos ocidentais coordenando o apoio à Ucrânia afirmou que os ataques contra não combatentes e os bombardeios contra edifícios de Moscou alimentam a narrativa falsa de Putin de que a Ucrânia representava um perigo crescente para os russos comuns. “Isso colabora com suas mentiras de que os ucranianos estão indo pegar os russos”, afirmou a autoridade.

Essa visão parece minoritária. Outros consideram que os ataques estão melhorando o moral entre ucranianos sitiados e adquirem um ar de justiçamento vigilante para os supostos crimes de guerra da Rússia, que, na visão de muitos ucranianos, nunca serão submetidos a sanções das Nações Unidas ou de cortes internacionais.

O atentado com carro-bomba que matou Dugina no ano passado continua a se sobressair como um dos casos mais extremos de vingança letal — não apenas direcionada contra não combatentes, mas que envolveu uma mulher ucraniana e uma pré-adolescente presumivelmente sem conhecimento da ação.

Alexander Dugin, aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o funeral de sua filha, Daria Dugina  Foto: Maxim Shemetov/Reuters

As autoridades russas mal acabavam de limpar os destroços quando a FSB identificou Natalia Vovk, de 42 anos, como a principal suspeita. Ela entrou na Rússia a partir da Estônia em julho, de acordo com a FSB, viveu num apartamento no mesmo condomínio que Dugina, passou semanas realizando vigilância e, depois da explosão, voltou com a filha para a Estônia.

A FSB também identificou um suposto cúmplice que, segundo a Rússia, forneceu placas veiculares do Cazaquistão para que Vovk usasse em seu carro, um Mini Cooper, enquanto viajava pela Rússia, ajudou a montar a bomba e fugiu para a Estônia antes do ataque.

As autoridades ucranianas afirmaram que Vovk foi motivada em parte pelo cerco da Rússia à sua cidade, Mariupol. E se recusaram a comentar a natureza de sua relação com o SBU ou seu paradeiro atual.

O ataque tinha intenção de matar Dugin quando ele e sua filha deixassem um festival cultural onde o ideólogo pró-guerra, às vezes chamado de “cérebro de Putin”, tinha dado palestra. Esperava-se que ambos saíssem juntos do evento, mas Dugin entrou em outro carro. Vovk, segundo a FSB, também compareceu ao festival.

Na época, a Ucrânia negou vigorosamente envolvimento no ataque. “A Ucrânia não tem absolutamente nada a ver com isso, porque nós não somos um Estado criminoso nem terrorista como a Rússia”, afirmou Mikhailo Podoliak, um dos conselheiro de Zelenski.

Autoridades reconheceram em entrevistas recentes em Kiev, contudo, que essas negativas eram falsas — e confirmaram que o SBU planejou e executou a operação afirmando que, mesmo que Dugin fosse o alvo principal, sua filha, também apoiadora fervente da invasão, não foi uma vítima inocente.

“Ela é filha do pai da propaganda russa”, afirmou uma autoridade de segurança. O atentado com carro-bomba e outras operações dentro da Rússia “trabalham narrativas”, mostrando aos inimigos da Ucrânia que “a punição é iminente mesmo para quem acha que é intocável”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

KIEV — O carro abarrotado que transportava uma mãe e sua filha de 12 anos não parecia merecer atenção das autoridades russas conforme se aproximava de um posto de controle fronteiriço. Mas a bagagem mais chamativa, uma caixa de transporte de bichos de estimação, era parte de uma conspiração elaborada e letal. Operadores ucranianos tinham instalado um compartimento oculto na caixa, de acordo com autoridades de segurança cientes da operação, usado para esconder componentes de uma bomba.

Quatro semanas depois, o artefato explodiu nas proximidades de Moscou, no SUV conduzido pela filha de um nacionalista russo que instava seu país a “matar, matar e matar” os ucranianos; explosão que sinalizou que a capital russa não seria poupada da carnificina da guerra.

A operação foi orquestrada pelo serviço de segurança doméstica da Ucrânia (SBU), de acordo com autoridades que forneceram detalhes, incluindo o uso da caixa de transporte de animais, anteriormente não revelados. O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, pilotaram drones que se aproximaram do Kremlin e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro.

Aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, Alexander Dugin comparece ao funeral de sua filha, Daria Dugina, que morreu em Moscou após uma bomba explodir em seu carro  Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP

Essas operações foram classificadas como medidas extremas que a Ucrânia foi forçada a adotar em resposta à invasão da Rússia, iniciada no ano passado. Na realidade, mostram capacidades que as agências de espionagem ucranianas desenvolveram ao longo de quase uma década, desde que a Rússia tomou território ucraniano pela primeira vez, em 2014, um período no qual os serviços ucranianos também forjaram novos laços com a CIA.

As missões envolveram equipes de elite de operadores ucranianos que atuavam em diretorados que foram formados, treinados e equipados em parceria próxima com a CIA, de acordo com autoridades e ex-autoridades da Ucrânia e dos EUA. Desde 2015, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para transformar serviços ucranianos formados na era soviética em potentes aliados contra Moscou, afirmaram autoridades. A agência americana forneceu aos ucranianos avançados sistemas de vigilância, treinou recrutas em campos na Ucrânia e nos EUA, construiu novas instalações para departamentos da agência de inteligência militar da Ucrânia e compartilhou informações de inteligência numa escala inimaginável antes da Rússia anexar ilegalmente a Crimeia e fomentar uma guerra separatista no leste ucraniano. A CIA mantém uma presença significativa em Kiev, afirmaram autoridades.

A profundidade do envolvimento da CIA nos serviços de segurança da Ucrânia não havia sido revelada anteriormente. Autoridades de inteligência dos EUA enfatizaram que a agência não tem nenhum envolvimento em operações de assassinato seletivo praticadas pelas agências ucranianas e que seu trabalho tem colocado foco em auxiliar e dar recursos à capacidade dos serviços de reunir informações de inteligência de um adversário perigoso. Uma graduada autoridade de inteligência afirmou que “qualquer preocupação operacional era transmitida claramente para os serviços ucranianos”.

Motoristas registram ataque a ponte da Crimeia, que liga a Rússia a Península da Crimeia  Foto: Reuters/Reuters

Muitas das operações clandestinas da Ucrânia têm objetivos militares claros e contribuíram para a defesa do país. A operação com carro-bomba que matou Daria Dugina, contudo, sublinhou a aceitação da Ucrânia ao que autoridades em Kiev descrevem como “aniquilações” enquanto ferramentas de guerra. Ao longo dos 20 meses recentes, o SBU e sua contraparte militar, a Diretoria Principal de Inteligência (GUR), realizaram dezenas de assassinatos de autoridades russas em territórios ocupados, de supostos colaboradores ucranianos, de oficiais militares russos atrás das linhas de combate e de apoiadores proeminentes da guerra dentro da Rússia. Os mortos incluem um ex-comandante de submarino russo assassinado a tiros enquanto corria em um parque na cidade russa de Krasnodar e um blogueiro militante morto numa explosão em um café de São Petersburgo, de acordo com autoridades ucranianas e ocidentais.

A afinidade da Ucrânia com operações letais complicou sua colaboração com a CIA, levantando preocupações sobre a cumplicidade da agência americana e criando desconforto entre algumas autoridades em Kiev e Washington.

Mesmo aqueles que consideram operações de assassinato defensáveis em tempos de guerra questionam a utilidade de certos ataques e decisões que produziram alvos civis, como Dugina ou seu pai, Alexander Dugin — que autoridades afirmam ter sido o objetivo pretendido — em vez de russos ligados mais diretamente à guerra.

Policiais russos limpam escombros após a explosão de uma bomba em um café em São Petersburgo, Rússia Foto: Olga Maltseva/AFP

“Nós temos inimigos demais cuja neutralização é mais importante”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência da Ucrânia. “Indivíduos que lançam mísseis, indivíduos que cometeram atrocidades em Bucha”. Matar a filha de um ativista defensor da guerra é “muito cinismo”, disse a fonte.

Outras autoridades citaram preocupações a respeito das táticas de assassinato da Ucrânia poderem parecer justificáveis agora — especialmente contra um país acusado de atrocidades de guerra generalizadas — mas posteriormente se provarem difíceis de controlar.

“Nós estamos vendo o nascimento de um conjunto de serviços de inteligência parecido com o Mossad nos anos 70″, afirmou uma ex-autoridade da CIA, referindo-se à agência de espionagem israelense há muito acusada de realizar assassinatos em outros países. A proficiência da Ucrânia em operações desse tipo “tem riscos para a Rússia”, afirmou a fonte, “mas também ocasiona riscos maiores”.

“Se as operações de inteligência da Ucrânia tornarem-se ainda mais ousadas — mirando russos em países terceiros, por exemplo — é possível imaginar como isso poderia causar fissuras entre parceiros e tensionar seriamente objetivos maiores da Ucrânia”, afirmou a autoridade. Entre esses objetivos está a adesão à Otan e à União Europeia.

Esta reportagem tem como base entrevistas concedidas por mais de duas dúzias de autoridades de inteligência e segurança ucranianas, americanas e ocidentais, que falaram sob condição de anonimato citando preocupações de segurança e a sensibilidade do tema. A pressão sobre Kiev para vencer a Rússia e encontrar maneiras de dissuadir futuras agressões cria incentivos para exageros dos registros e capacidades dos serviços ucranianos. O Post confirmou detalhes importantes com múltiplas fontes e acesso a diferentes dados de inteligência.

A CIA recusou-se a comentar.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma visita a Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Kevin Lamarque/AFP

A parceria CIA-Ucrânia

Autoridades do SBU e da GUR descrevem suas funções operacionais em expansão como resultado de circunstâncias excepcionais. “Todos os alvos atingidos pelo SBU são completamente legais”, afirmou o diretor da agência, Vasil Maliuk, em um comunicado ao Post. O comunicado não se referiu especificamente a operações de assassinato, mas Maliuk, que se reuniu com altas autoridades da CIA e de outras agências governamentais americanas em Washington, no mês passado, afirmando que a Ucrânia “faz tudo para garantir que a punição justa ‘alcance’ todos os traidores, criminosos de guerra e colaboradores”.

Autoridades e ex-autoridades americanas afirmaram que ambos os lados buscaram manter uma distância cuidadosa entre a CIA e as operações letais realizadas por seus parceiros em Kiev. Autoridades da CIA expressaram objeções após algumas operações, afirmam autoridades, mas a agência americana não retirou seu apoio.

“Nós nunca envolvemos nossos parceiros internacionais em operações secretas, especialmente atrás das linhas de combate”, afirmou uma ex-autoridade ucraniana graduada de segurança. Operadores do SBU e da GUR não agiram acompanhados de contrapartes da CIA. A Ucrânia evitou usar armas ou equipamentos que possam ser rastreados até fontes americanas, e até fluxos de financiamento secreto foram segregados.

“Nós tínhamos muitas restrições a respeito de trabalhar com os ucranianos operacionalmente”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA. A ênfase era “mais em comunicações seguras e intercâmbios” e em perseguir novos fluxos de inteligência dentro da Rússia, “em vez de ‘vejam como se explode um prefeito’. Eu nunca tive a sensação de que estávamos envolvidos em projetar suas operações”.

Uma foto de 2014 de Yevgeny Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia, que foi morto a tiros em 2016 em um restaurante de Moscou, Rússia Foto: Sergiy Bobok/AFP

Mesmo assim, autoridades reconheceram que os limites ocasionalmente se confundiram. Oficiais da CIA em Kiev foram informados a respeito de planos ambiciosos de ataques da Ucrânia. Em alguns casos, incluindo no bombardeio à Ponte Kerch, autoridades americanas registraram preocupações.

Os espiões ucranianos desenvolveram suas próprias diretrizes a respeito de quais operações discutir e sobre quais silenciar. “Havia certas coisas que nós talvez não conversássemos” com contrapartes da CIA, afirmou uma segunda autoridade ucraniana envolvida nesse tipo de missão. Ele afirmou que cruzar esses limites levaria a respostas secas dos americanos: “Nós não queremos participar disso de nenhuma maneira”.

A profunda parceria da CIA com a Ucrânia, que persistiu mesmo quando o país foi envolvido no escândalo em torno do impeachment do ex-presidente Donald Trump, representa uma reviravolta dramática para agências que passaram décadas de lados opostos da Guerra Fria. Em parte por causa desse legado, afirmaram autoridades, somente no ano passado a CIA removeu a Ucrânia da lista de países “sem amizade” com a agência, considerados tão arriscados em termos de segurança que qualquer contato com seus cidadãos por parte de funcionários da agência é proibido sem permissão prévia.

A colaboração CIA-Ucrânia criou raízes na esteira dos protestos políticos de 2014 na Ucrânia, que resultaram na fuga do país do então presidente, Viktor Yanukovich, pró-Rússia, seguida pela anexação da Crimeia por Moscou, que passou a armar separatistas nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano.

A silhueta de um policial do Capitólio é mostrada diante de um registro uma ligação entre o então presidente americano Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski Foto: Loren Elliott/Reuters

As fases iniciais de cooperação foram acanhadas, afirmaram autoridades, dadas as preocupações em ambos os lados de que os serviços ucranianos ainda fossem pesadamente impregnados pela FSB — a agência russa constituída como principal sucessora da KGB. Para gerir o risco de segurança, a CIA trabalhou com o SBU para criar um diretorado completamente novo, afirmaram autoridades, que colocasse foco nas chamadas operações de “medidas ativas” contra a Rússia e ficaria isolado de outros departamentos do serviço ucraniano de inteligência.

A nova unidade foi batizada informalmente de “Quinto Diretorado”, para distingui-la das outras quatro antigas unidades do SBU. Um sexto diretorado foi adicionado desde então, afirmaram autoridades, para trabalhar com a agência britânica de espionagem MI6.

Campos de treinamento foram instalados nas imediações de Kiev, onde recrutas escolhidos a dedo foram treinados por operadores da CIA, afirmaram autoridades. O plano era formar unidades “capazes de operar atrás das linhas de combate e trabalhar como grupos secretos”, afirmou uma autoridade ucraniana envolvida no esforço.

A agência forneceu equipamentos seguros de comunicação, dispositivos de escuta que permitiram à Ucrânia interceptar telefonemas e e-mails dos russos e até disfarces e uniformes de separatistas, possibilitando aos operadores inserir-se mais facilmente em cidades ocupadas.

As primeiras missões tiveram como foco recrutar informantes entre as forças que apoiam a Rússia e medidas de vigilância cibernética e eletrônica, afirmaram autoridades. O SBU também começou a montar operações de sabotagem e missões de captura a líderes separatistas e colaboradores ucranianos, alguns deles foram levados para centros de detenção secretos.

Mas as operações logo tomaram o rumo da letalidade. Ao longo de três anos, pelo menos meia dúzia de operadores russos, comandantes separatistas de alta patente ou colaboradores foram mortos com violência em ações frequentemente atribuídas a acertos de contas internos mas que na realidade foram obra do SBU, afirmaram autoridades ucranianas.

Entre os mortos estava Yevgeni Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia assassinado a tiros em um restaurante de Moscou, em 2016. Um ano depois, um comandante rebelde conhecido como “Givi” foi morto em Donetsk numa operação na qual uma mulher que o acusava de estupro foi recrutada para plantar uma bomba ao lado dele, de acordo com uma ex-autoridade envolvida na missão.

Autoridades ucranianas afirmaram que a opção de seu país por métodos mais letais foi motivada pela agressão russa, por atrocidades cometidas por seus apoiadores e pelo desespero para encontrar maneiras de enfraquecer o adversário mais poderoso. Muitos também citaram o suposto histórico de assassinatos da Rússia em Kiev.

“Em razão dessa guerra híbrida nós encaramos uma realidade absolutamente nova”, afirmou o parlamentar ucraniano Valentin Nalivaichenko, que era diretor do SBU em 2015, quando o Quinto Diretorado foi criado. “Nós fomos forçados a treinar nosso pessoal de outra maneira.”

Autoridades russas investigam a cena após o carro-bomba que matou Daria Dugina em 2022 Foto: Comitê Investigativo Russo/AFP

Transformando a inteligência militar ucraniana

Mesmo enquanto ajudava a construir o novo diretorado do SBU, a CIA embarcou em um projeto muito mais ambicioso.

Com menos de 5 mil empregados, a GUR tinha uma fração do tamanho do SBU e um foco mais estreito sobre espionagem e operações de medidas ativas contra a Rússia. Tinha também uma força de trabalho mais jovem, com menos remanescentes dos tempos soviéticos, enquanto o SBU ainda era percebido como impregnado pela inteligência russa.

“Nós calculamos que a GUR era uma organização menor e mais ágil, onde poderíamos surtir um impacto maior”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA que trabalhou na Ucrânia. “A GUR era o nosso bebê. Nós lhes dávamos todos os novos equipamentos e treinamentos.” Os oficiais da GUR “eram caras jovens, não generais KGB da era soviética”, afirmou a autoridade, “e o SBU era grande demais para reformar”.

Desdobramentos recentes pareceram validar essas preocupações. O ex-diretor da SBU Ivan Bakanov foi forçado a deixar o emprego no ano passado em meio a críticas de que a agência não estava se movimentando agressivamente o suficiente contra traidores internos. O SBU também descobriu no ano passado que modems de fabricação russa ainda eram usados nas redes da agência, ocasionando um alvoroço para desplugar os equipamentos.

Senador americano Mark Kelly posa para foto com soldado ucraniano ao lado de tanques russos quebrados em Kiev, Ucrânia  Foto: Efrem Lukatsky / AP

A GUR começou a recrutar operadores para seu próprio departamento de medidas ativas, afirmaram autoridades. Em instalações dentro da Ucrânia e, posteriormente, nos EUA, operadores da GUR foram treinados em capacidades como manobras clandestinas por trás de linhas inimigas e plataformas de armas e explosivos. Autoridades americanas afirmaram que o treinamento teve como objetivo ajudar operadores ucranianos a proteger a si mesmos em ambientes perigosos controlados por russos, em vez de atingir alvos russos.

Alguns dos recrutas mais novos da GUR transferiram-se do SBU, afirmaram autoridades, atraídos pelo serviço rival repleto de novas autoridades e recursos. Entre eles estava Vasil Burba, que havia coordenado o Quinto Diretorado do SBU antes de se juntar à GUR e dirigir a agência entre 2016 e 2020. Burba tornou-se um aliado tão próximo da CIA — e percebido como um alvo por Moscou — que ao ser demitido da função, após o presidente Volodmir Zelenski se eleger, recebeu da agência um carro blindado, afirmaram autoridades. Burba recusou-se a conversar com a reportagem.

A CIA ajudou a GUR a obter sistemas avançados de vigilância e escutas eletrônicas, afirmaram autoridades, que incluíram equipamentos móveis capazes de ser instalados em linhas controladas pelos russos no leste da Ucrânia, e também ferramentas de software usadas para explorar telefones de autoridades do Kremlin em visita a territórios ocupados. Oficiais ucranianos operaram os sistemas, afirmaram autoridades, mas toda informação levantada era compartilhada com os americanos.

Preocupados com a possibilidade das antigas instalações da GUR estarem comprometidas por grampos da inteligência russa, a CIA bancou a construção de novos escritórios para nova divisão paramilitar “spetsnaz” da GUR e um diretorado separado responsável por espionagem eletrônica.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu gabinete em Moscou, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/ AP

As novas capacidades foram transformadoras, afirmam autoridades. “Em um só dia nós conseguimos interceptar de 250 mil a 300 mil comunicações distintas” de militares russos e unidades da FSB, afirmou uma ex-autoridade graduada da GUR. “Tinha tanta informação que nós não conseguíamos dar conta sozinhos.”

Torrentes de dados foram retransmitidas para Washington por meio do novo escritório construído pela CIA. Nos EUA, as informações foram examinadas por analistas da CIA e da NSA, afirmaram autoridades.

“Nós estávamos dando a eles a capacidade — por meio das nossas — de coletar dados sobre” alvos russos, afirmou a ex-autoridade da GUR. Questionada a respeito do montante do investimento da CIA, a fonte afirmou: “foram milhões de dólares”.

Com o tempo, a GUR também desenvolveu uma rede de fontes no aparato de segurança da Rússia, incluindo na unidade da FSB responsável pelas operações na Ucrânia. Numa mostra de confiança entre EUA e Ucrânia, afirmaram autoridades, foi permitido à CIA contato direto com agentes recrutados e operados pela inteligência ucraniana.

O fruto inesperado em inteligência que resultou dessa relação esteve quase totalmente fora da visão do público, com exceções intermitentes. O SBU começou a postar interceptações de comunicações incriminatórias ou embaraçosas, incluindo uma na qual comandantes russos foram flagrados debatendo a culpabilidade de seu país na derrubada do avião comercial da Malaysian Airlines, em 2014.

Mesmo assim, autoridades afirmaram que dados de inteligência obtidos por meio da cooperação EUA-Ucrânia tem seus limites. Os alertas preliminares do governo Biden a respeito da determinação do presidente russo, Vladimir Putin, de derrubar o governo em Kiev, por exemplo, tiveram base principalmente em fluxos de inteligência distintos, dos quais a Ucrânia não esteve a par inicialmente.

De algumas maneiras, afirmam autoridades, os próprios esforços de coleta de inteligência da Ucrânia alimentaram um ceticismo que Zelenski e outros tinham a respeito dos planos de Putin porque os americanos estavam espionando militares e unidades da FSB que os ucranianos não conheciam até a véspera da guerra. “Eles estavam conseguindo um retrato acurado de pessoas que também estavam no escuro”, afirmou uma autoridade dos EUA.

Exército russo treina no sul do país em meio a guerra contra a Ucrânia  Foto: Ministério da Defesa da Rússia / AFP

Moscou na mira dos drones

As forças russas não conseguiram tomar Kiev. Mas ambas as estruturas da GUR que a CIA financiou estiveram entre as dezenas de instalações importantes na mira dos ataques da Rússia nos primeiros dias da guerra, afirmaram autoridades enfatizando que os edifícios resistiram e continuam a funcionar.

As novas capacidades de inteligência da Ucrânia provaram-se valiosas desde o início da guerra. O SBU, por exemplo, obteve informações de inteligência a respeito de alvos russos valiosos, possibilitando ataques que mataram vários comandantes e quase liquidaram o comandante das Forças Armadas da Rússia, Valeri Gerasimov.

Ao longo do ano recente, as missões dos serviços ucranianos de inteligência têm se centrado cada vez mais em alvos não apenas próximos às linhas inimigas, mas também no interior da Rússia.

Para o SBU, nenhum alvo teve mais prioridade que a Ponte Kerch, que conecta a Rússia continental à Península da Crimeia anexada. A ponte é um corredor militar crucial e carrega tanto significado simbólico para Putin que ele próprio a inaugurou, em 2018.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o Chefe das Forças Armadas, Valeri Gerasimov, que quase foi assassinado pela Ucrânia  Foto: Gabriil Grigorov/ AP

O SBU atingiu a ponte duas vezes no ano passado, incluindo em um bombardeio em outubro de 2022 que matou cinco pessoas e abriu um buraco na pista sentido oeste.

Zelenski inicialmente negou responsabilidade da Ucrânia, mas o diretor do SBU, Maliuk, descreveu a operação em extremo detalhe numa entrevista que concedeu este ano, reconhecendo que seu serviço tinha colocado um poderoso explosivo em um caminhão que transportava rolos industriais de celofane.

Como em outras sabotagens do SBU, essa operação envolveu cúmplices inconscientes, entre eles o motorista do caminhão morto na explosão. “Nós atravessamos os sete círculos do inferno mantendo tanta gente no escuro”, afirmou Maliuk numa entrevista a respeito da operação, que, segundo ele, dependeu da susceptibilidade de “contrabandistas russos comuns”.

Autoridades dos EUA informadas anteriormente expressaram preocupações a respeito do ataque, afirmaram autoridades, temendo uma escalada por parte da Rússia. Essas apreensões tinham presumivelmente se dissipado quando o SBU lançou um segundo ataque contra a ponte nove meses depois, usando drones navais desenvolvidos como parte de uma operação ultrassecreta envolvendo a CIA e outros serviços ocidentais de inteligência.

O relato detalhado da operação desafia a praxe da espionagem, mas serve à necessidade de Kiev de reivindicar sucessos e reflete uma rivalidade incipiente entre o SBU e a GUR. O chefe de inteligência da Ucrânia, Kirilo Budanov, tornou hábito promover as conquistas de sua agência e insultar Moscou.

Bolhas de gás são vistas após o vazamento do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico  Foto: Comando de Defesa da Dinamarca/Reuters

Os dois serviços apresentam certo grau de redundâncias operacionais, mas as autoridades do SBU tendem a perseguir missões mais complexas, com investigações mais extensas, enquanto a GUR tende a trabalhar num ritmo mais acelerado. Autoridades ucranianas negaram envolvimento direto das agências no ataque de setembro de 2022 contra o gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, mas agências de inteligência dos EUA e de outros países ocidentais concluíram que a Ucrânia está ligada à operação de sabotagem.

A GUR tem usado sua própria frota de drones para lançar dezenas de ataques em território russo, incluindo ações que atravessaram defesas antiaéreas russas e atingiram prédios em Moscou; entre elas, uma operação em maio deste ano que incendiou brevemente parte do telhado do Kremlin.

Esses ataques envolveram drones de longo alcance lançados do território ucraniano, assim como times de operadores e partisans trabalhando dentro da Rússia, afirmaram autoridades. Os motores de alguns drones foram comprados de fornecedores chineses, com financiamento privado que não pôde ser ligado a fontes ucranianas, de acordo com uma autoridade que afirmou ter se envolvido nas transações.

Assassinatos na Rússia

A GUR também entrou no ramo dos assassinatos, afirmaram autoridades.

Em julho, o ex-comandante de submarinos russo Stanislav Rzhitski foi morto com quatro tiros no tórax e nas costas em Krasnodar, onde, segundo relatos, ele trabalhava como recrutador militar. Rzhitski, de 42 anos, era conhecido por usar o aplicativo de exercícios Strava para registrar suas rotas diárias de corrida, um hábito que pode ter revelado sua localização.

A GUR emitiu uma declaração tímida desviando da responsabilidade mas citando em detalhes precisos as circunstâncias da morte de Rzhitski e notando que, “em razão da chuva forte, o parque estava vazio” e não houve testemunhas. Autoridades em Kiev confirmaram que a GUR foi responsável pelo assassinato.

Ainda que reconheçam responsabilidade por essas ações, as autoridades ucranianas reivindicam uma nobreza moral sobre a Rússia. O SBU e a GUR têm buscado evitar ferir transeuntes inocentes mesmo em operações letais, afirmaram autoridades, enquanto os ataques arrasadores e indiscriminados da Rússia têm matado ou ferido milhares de civis.

Autoridades de segurança afirmaram que nenhuma grande operação do SBU ou da GUR vai adiante sem aprovação — tácita ou explícita — de Zelenski. Um porta-voz do presidente ucraniano não respondeu a pedidos de comentário.

Céticos, não obstante, preocupam-se com a possibilidade do uso que a Ucrânia faz de operações de assassinato e ataques de drones contra os edifícios altos de Moscou não ajudar nem a causa ucraniana contra a Rússia nem suas aspirações a médio prazo para adesão à Otan e à UE.

Uma graduada autoridade ucraniana que trabalhou proximamente com governos ocidentais coordenando o apoio à Ucrânia afirmou que os ataques contra não combatentes e os bombardeios contra edifícios de Moscou alimentam a narrativa falsa de Putin de que a Ucrânia representava um perigo crescente para os russos comuns. “Isso colabora com suas mentiras de que os ucranianos estão indo pegar os russos”, afirmou a autoridade.

Essa visão parece minoritária. Outros consideram que os ataques estão melhorando o moral entre ucranianos sitiados e adquirem um ar de justiçamento vigilante para os supostos crimes de guerra da Rússia, que, na visão de muitos ucranianos, nunca serão submetidos a sanções das Nações Unidas ou de cortes internacionais.

O atentado com carro-bomba que matou Dugina no ano passado continua a se sobressair como um dos casos mais extremos de vingança letal — não apenas direcionada contra não combatentes, mas que envolveu uma mulher ucraniana e uma pré-adolescente presumivelmente sem conhecimento da ação.

Alexander Dugin, aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o funeral de sua filha, Daria Dugina  Foto: Maxim Shemetov/Reuters

As autoridades russas mal acabavam de limpar os destroços quando a FSB identificou Natalia Vovk, de 42 anos, como a principal suspeita. Ela entrou na Rússia a partir da Estônia em julho, de acordo com a FSB, viveu num apartamento no mesmo condomínio que Dugina, passou semanas realizando vigilância e, depois da explosão, voltou com a filha para a Estônia.

A FSB também identificou um suposto cúmplice que, segundo a Rússia, forneceu placas veiculares do Cazaquistão para que Vovk usasse em seu carro, um Mini Cooper, enquanto viajava pela Rússia, ajudou a montar a bomba e fugiu para a Estônia antes do ataque.

As autoridades ucranianas afirmaram que Vovk foi motivada em parte pelo cerco da Rússia à sua cidade, Mariupol. E se recusaram a comentar a natureza de sua relação com o SBU ou seu paradeiro atual.

O ataque tinha intenção de matar Dugin quando ele e sua filha deixassem um festival cultural onde o ideólogo pró-guerra, às vezes chamado de “cérebro de Putin”, tinha dado palestra. Esperava-se que ambos saíssem juntos do evento, mas Dugin entrou em outro carro. Vovk, segundo a FSB, também compareceu ao festival.

Na época, a Ucrânia negou vigorosamente envolvimento no ataque. “A Ucrânia não tem absolutamente nada a ver com isso, porque nós não somos um Estado criminoso nem terrorista como a Rússia”, afirmou Mikhailo Podoliak, um dos conselheiro de Zelenski.

Autoridades reconheceram em entrevistas recentes em Kiev, contudo, que essas negativas eram falsas — e confirmaram que o SBU planejou e executou a operação afirmando que, mesmo que Dugin fosse o alvo principal, sua filha, também apoiadora fervente da invasão, não foi uma vítima inocente.

“Ela é filha do pai da propaganda russa”, afirmou uma autoridade de segurança. O atentado com carro-bomba e outras operações dentro da Rússia “trabalham narrativas”, mostrando aos inimigos da Ucrânia que “a punição é iminente mesmo para quem acha que é intocável”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

KIEV — O carro abarrotado que transportava uma mãe e sua filha de 12 anos não parecia merecer atenção das autoridades russas conforme se aproximava de um posto de controle fronteiriço. Mas a bagagem mais chamativa, uma caixa de transporte de bichos de estimação, era parte de uma conspiração elaborada e letal. Operadores ucranianos tinham instalado um compartimento oculto na caixa, de acordo com autoridades de segurança cientes da operação, usado para esconder componentes de uma bomba.

Quatro semanas depois, o artefato explodiu nas proximidades de Moscou, no SUV conduzido pela filha de um nacionalista russo que instava seu país a “matar, matar e matar” os ucranianos; explosão que sinalizou que a capital russa não seria poupada da carnificina da guerra.

A operação foi orquestrada pelo serviço de segurança doméstica da Ucrânia (SBU), de acordo com autoridades que forneceram detalhes, incluindo o uso da caixa de transporte de animais, anteriormente não revelados. O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, pilotaram drones que se aproximaram do Kremlin e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro.

Aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, Alexander Dugin comparece ao funeral de sua filha, Daria Dugina, que morreu em Moscou após uma bomba explodir em seu carro  Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP

Essas operações foram classificadas como medidas extremas que a Ucrânia foi forçada a adotar em resposta à invasão da Rússia, iniciada no ano passado. Na realidade, mostram capacidades que as agências de espionagem ucranianas desenvolveram ao longo de quase uma década, desde que a Rússia tomou território ucraniano pela primeira vez, em 2014, um período no qual os serviços ucranianos também forjaram novos laços com a CIA.

As missões envolveram equipes de elite de operadores ucranianos que atuavam em diretorados que foram formados, treinados e equipados em parceria próxima com a CIA, de acordo com autoridades e ex-autoridades da Ucrânia e dos EUA. Desde 2015, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para transformar serviços ucranianos formados na era soviética em potentes aliados contra Moscou, afirmaram autoridades. A agência americana forneceu aos ucranianos avançados sistemas de vigilância, treinou recrutas em campos na Ucrânia e nos EUA, construiu novas instalações para departamentos da agência de inteligência militar da Ucrânia e compartilhou informações de inteligência numa escala inimaginável antes da Rússia anexar ilegalmente a Crimeia e fomentar uma guerra separatista no leste ucraniano. A CIA mantém uma presença significativa em Kiev, afirmaram autoridades.

A profundidade do envolvimento da CIA nos serviços de segurança da Ucrânia não havia sido revelada anteriormente. Autoridades de inteligência dos EUA enfatizaram que a agência não tem nenhum envolvimento em operações de assassinato seletivo praticadas pelas agências ucranianas e que seu trabalho tem colocado foco em auxiliar e dar recursos à capacidade dos serviços de reunir informações de inteligência de um adversário perigoso. Uma graduada autoridade de inteligência afirmou que “qualquer preocupação operacional era transmitida claramente para os serviços ucranianos”.

Motoristas registram ataque a ponte da Crimeia, que liga a Rússia a Península da Crimeia  Foto: Reuters/Reuters

Muitas das operações clandestinas da Ucrânia têm objetivos militares claros e contribuíram para a defesa do país. A operação com carro-bomba que matou Daria Dugina, contudo, sublinhou a aceitação da Ucrânia ao que autoridades em Kiev descrevem como “aniquilações” enquanto ferramentas de guerra. Ao longo dos 20 meses recentes, o SBU e sua contraparte militar, a Diretoria Principal de Inteligência (GUR), realizaram dezenas de assassinatos de autoridades russas em territórios ocupados, de supostos colaboradores ucranianos, de oficiais militares russos atrás das linhas de combate e de apoiadores proeminentes da guerra dentro da Rússia. Os mortos incluem um ex-comandante de submarino russo assassinado a tiros enquanto corria em um parque na cidade russa de Krasnodar e um blogueiro militante morto numa explosão em um café de São Petersburgo, de acordo com autoridades ucranianas e ocidentais.

A afinidade da Ucrânia com operações letais complicou sua colaboração com a CIA, levantando preocupações sobre a cumplicidade da agência americana e criando desconforto entre algumas autoridades em Kiev e Washington.

Mesmo aqueles que consideram operações de assassinato defensáveis em tempos de guerra questionam a utilidade de certos ataques e decisões que produziram alvos civis, como Dugina ou seu pai, Alexander Dugin — que autoridades afirmam ter sido o objetivo pretendido — em vez de russos ligados mais diretamente à guerra.

Policiais russos limpam escombros após a explosão de uma bomba em um café em São Petersburgo, Rússia Foto: Olga Maltseva/AFP

“Nós temos inimigos demais cuja neutralização é mais importante”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência da Ucrânia. “Indivíduos que lançam mísseis, indivíduos que cometeram atrocidades em Bucha”. Matar a filha de um ativista defensor da guerra é “muito cinismo”, disse a fonte.

Outras autoridades citaram preocupações a respeito das táticas de assassinato da Ucrânia poderem parecer justificáveis agora — especialmente contra um país acusado de atrocidades de guerra generalizadas — mas posteriormente se provarem difíceis de controlar.

“Nós estamos vendo o nascimento de um conjunto de serviços de inteligência parecido com o Mossad nos anos 70″, afirmou uma ex-autoridade da CIA, referindo-se à agência de espionagem israelense há muito acusada de realizar assassinatos em outros países. A proficiência da Ucrânia em operações desse tipo “tem riscos para a Rússia”, afirmou a fonte, “mas também ocasiona riscos maiores”.

“Se as operações de inteligência da Ucrânia tornarem-se ainda mais ousadas — mirando russos em países terceiros, por exemplo — é possível imaginar como isso poderia causar fissuras entre parceiros e tensionar seriamente objetivos maiores da Ucrânia”, afirmou a autoridade. Entre esses objetivos está a adesão à Otan e à União Europeia.

Esta reportagem tem como base entrevistas concedidas por mais de duas dúzias de autoridades de inteligência e segurança ucranianas, americanas e ocidentais, que falaram sob condição de anonimato citando preocupações de segurança e a sensibilidade do tema. A pressão sobre Kiev para vencer a Rússia e encontrar maneiras de dissuadir futuras agressões cria incentivos para exageros dos registros e capacidades dos serviços ucranianos. O Post confirmou detalhes importantes com múltiplas fontes e acesso a diferentes dados de inteligência.

A CIA recusou-se a comentar.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma visita a Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Kevin Lamarque/AFP

A parceria CIA-Ucrânia

Autoridades do SBU e da GUR descrevem suas funções operacionais em expansão como resultado de circunstâncias excepcionais. “Todos os alvos atingidos pelo SBU são completamente legais”, afirmou o diretor da agência, Vasil Maliuk, em um comunicado ao Post. O comunicado não se referiu especificamente a operações de assassinato, mas Maliuk, que se reuniu com altas autoridades da CIA e de outras agências governamentais americanas em Washington, no mês passado, afirmando que a Ucrânia “faz tudo para garantir que a punição justa ‘alcance’ todos os traidores, criminosos de guerra e colaboradores”.

Autoridades e ex-autoridades americanas afirmaram que ambos os lados buscaram manter uma distância cuidadosa entre a CIA e as operações letais realizadas por seus parceiros em Kiev. Autoridades da CIA expressaram objeções após algumas operações, afirmam autoridades, mas a agência americana não retirou seu apoio.

“Nós nunca envolvemos nossos parceiros internacionais em operações secretas, especialmente atrás das linhas de combate”, afirmou uma ex-autoridade ucraniana graduada de segurança. Operadores do SBU e da GUR não agiram acompanhados de contrapartes da CIA. A Ucrânia evitou usar armas ou equipamentos que possam ser rastreados até fontes americanas, e até fluxos de financiamento secreto foram segregados.

“Nós tínhamos muitas restrições a respeito de trabalhar com os ucranianos operacionalmente”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA. A ênfase era “mais em comunicações seguras e intercâmbios” e em perseguir novos fluxos de inteligência dentro da Rússia, “em vez de ‘vejam como se explode um prefeito’. Eu nunca tive a sensação de que estávamos envolvidos em projetar suas operações”.

Uma foto de 2014 de Yevgeny Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia, que foi morto a tiros em 2016 em um restaurante de Moscou, Rússia Foto: Sergiy Bobok/AFP

Mesmo assim, autoridades reconheceram que os limites ocasionalmente se confundiram. Oficiais da CIA em Kiev foram informados a respeito de planos ambiciosos de ataques da Ucrânia. Em alguns casos, incluindo no bombardeio à Ponte Kerch, autoridades americanas registraram preocupações.

Os espiões ucranianos desenvolveram suas próprias diretrizes a respeito de quais operações discutir e sobre quais silenciar. “Havia certas coisas que nós talvez não conversássemos” com contrapartes da CIA, afirmou uma segunda autoridade ucraniana envolvida nesse tipo de missão. Ele afirmou que cruzar esses limites levaria a respostas secas dos americanos: “Nós não queremos participar disso de nenhuma maneira”.

A profunda parceria da CIA com a Ucrânia, que persistiu mesmo quando o país foi envolvido no escândalo em torno do impeachment do ex-presidente Donald Trump, representa uma reviravolta dramática para agências que passaram décadas de lados opostos da Guerra Fria. Em parte por causa desse legado, afirmaram autoridades, somente no ano passado a CIA removeu a Ucrânia da lista de países “sem amizade” com a agência, considerados tão arriscados em termos de segurança que qualquer contato com seus cidadãos por parte de funcionários da agência é proibido sem permissão prévia.

A colaboração CIA-Ucrânia criou raízes na esteira dos protestos políticos de 2014 na Ucrânia, que resultaram na fuga do país do então presidente, Viktor Yanukovich, pró-Rússia, seguida pela anexação da Crimeia por Moscou, que passou a armar separatistas nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano.

A silhueta de um policial do Capitólio é mostrada diante de um registro uma ligação entre o então presidente americano Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski Foto: Loren Elliott/Reuters

As fases iniciais de cooperação foram acanhadas, afirmaram autoridades, dadas as preocupações em ambos os lados de que os serviços ucranianos ainda fossem pesadamente impregnados pela FSB — a agência russa constituída como principal sucessora da KGB. Para gerir o risco de segurança, a CIA trabalhou com o SBU para criar um diretorado completamente novo, afirmaram autoridades, que colocasse foco nas chamadas operações de “medidas ativas” contra a Rússia e ficaria isolado de outros departamentos do serviço ucraniano de inteligência.

A nova unidade foi batizada informalmente de “Quinto Diretorado”, para distingui-la das outras quatro antigas unidades do SBU. Um sexto diretorado foi adicionado desde então, afirmaram autoridades, para trabalhar com a agência britânica de espionagem MI6.

Campos de treinamento foram instalados nas imediações de Kiev, onde recrutas escolhidos a dedo foram treinados por operadores da CIA, afirmaram autoridades. O plano era formar unidades “capazes de operar atrás das linhas de combate e trabalhar como grupos secretos”, afirmou uma autoridade ucraniana envolvida no esforço.

A agência forneceu equipamentos seguros de comunicação, dispositivos de escuta que permitiram à Ucrânia interceptar telefonemas e e-mails dos russos e até disfarces e uniformes de separatistas, possibilitando aos operadores inserir-se mais facilmente em cidades ocupadas.

As primeiras missões tiveram como foco recrutar informantes entre as forças que apoiam a Rússia e medidas de vigilância cibernética e eletrônica, afirmaram autoridades. O SBU também começou a montar operações de sabotagem e missões de captura a líderes separatistas e colaboradores ucranianos, alguns deles foram levados para centros de detenção secretos.

Mas as operações logo tomaram o rumo da letalidade. Ao longo de três anos, pelo menos meia dúzia de operadores russos, comandantes separatistas de alta patente ou colaboradores foram mortos com violência em ações frequentemente atribuídas a acertos de contas internos mas que na realidade foram obra do SBU, afirmaram autoridades ucranianas.

Entre os mortos estava Yevgeni Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia assassinado a tiros em um restaurante de Moscou, em 2016. Um ano depois, um comandante rebelde conhecido como “Givi” foi morto em Donetsk numa operação na qual uma mulher que o acusava de estupro foi recrutada para plantar uma bomba ao lado dele, de acordo com uma ex-autoridade envolvida na missão.

Autoridades ucranianas afirmaram que a opção de seu país por métodos mais letais foi motivada pela agressão russa, por atrocidades cometidas por seus apoiadores e pelo desespero para encontrar maneiras de enfraquecer o adversário mais poderoso. Muitos também citaram o suposto histórico de assassinatos da Rússia em Kiev.

“Em razão dessa guerra híbrida nós encaramos uma realidade absolutamente nova”, afirmou o parlamentar ucraniano Valentin Nalivaichenko, que era diretor do SBU em 2015, quando o Quinto Diretorado foi criado. “Nós fomos forçados a treinar nosso pessoal de outra maneira.”

Autoridades russas investigam a cena após o carro-bomba que matou Daria Dugina em 2022 Foto: Comitê Investigativo Russo/AFP

Transformando a inteligência militar ucraniana

Mesmo enquanto ajudava a construir o novo diretorado do SBU, a CIA embarcou em um projeto muito mais ambicioso.

Com menos de 5 mil empregados, a GUR tinha uma fração do tamanho do SBU e um foco mais estreito sobre espionagem e operações de medidas ativas contra a Rússia. Tinha também uma força de trabalho mais jovem, com menos remanescentes dos tempos soviéticos, enquanto o SBU ainda era percebido como impregnado pela inteligência russa.

“Nós calculamos que a GUR era uma organização menor e mais ágil, onde poderíamos surtir um impacto maior”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA que trabalhou na Ucrânia. “A GUR era o nosso bebê. Nós lhes dávamos todos os novos equipamentos e treinamentos.” Os oficiais da GUR “eram caras jovens, não generais KGB da era soviética”, afirmou a autoridade, “e o SBU era grande demais para reformar”.

Desdobramentos recentes pareceram validar essas preocupações. O ex-diretor da SBU Ivan Bakanov foi forçado a deixar o emprego no ano passado em meio a críticas de que a agência não estava se movimentando agressivamente o suficiente contra traidores internos. O SBU também descobriu no ano passado que modems de fabricação russa ainda eram usados nas redes da agência, ocasionando um alvoroço para desplugar os equipamentos.

Senador americano Mark Kelly posa para foto com soldado ucraniano ao lado de tanques russos quebrados em Kiev, Ucrânia  Foto: Efrem Lukatsky / AP

A GUR começou a recrutar operadores para seu próprio departamento de medidas ativas, afirmaram autoridades. Em instalações dentro da Ucrânia e, posteriormente, nos EUA, operadores da GUR foram treinados em capacidades como manobras clandestinas por trás de linhas inimigas e plataformas de armas e explosivos. Autoridades americanas afirmaram que o treinamento teve como objetivo ajudar operadores ucranianos a proteger a si mesmos em ambientes perigosos controlados por russos, em vez de atingir alvos russos.

Alguns dos recrutas mais novos da GUR transferiram-se do SBU, afirmaram autoridades, atraídos pelo serviço rival repleto de novas autoridades e recursos. Entre eles estava Vasil Burba, que havia coordenado o Quinto Diretorado do SBU antes de se juntar à GUR e dirigir a agência entre 2016 e 2020. Burba tornou-se um aliado tão próximo da CIA — e percebido como um alvo por Moscou — que ao ser demitido da função, após o presidente Volodmir Zelenski se eleger, recebeu da agência um carro blindado, afirmaram autoridades. Burba recusou-se a conversar com a reportagem.

A CIA ajudou a GUR a obter sistemas avançados de vigilância e escutas eletrônicas, afirmaram autoridades, que incluíram equipamentos móveis capazes de ser instalados em linhas controladas pelos russos no leste da Ucrânia, e também ferramentas de software usadas para explorar telefones de autoridades do Kremlin em visita a territórios ocupados. Oficiais ucranianos operaram os sistemas, afirmaram autoridades, mas toda informação levantada era compartilhada com os americanos.

Preocupados com a possibilidade das antigas instalações da GUR estarem comprometidas por grampos da inteligência russa, a CIA bancou a construção de novos escritórios para nova divisão paramilitar “spetsnaz” da GUR e um diretorado separado responsável por espionagem eletrônica.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu gabinete em Moscou, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/ AP

As novas capacidades foram transformadoras, afirmam autoridades. “Em um só dia nós conseguimos interceptar de 250 mil a 300 mil comunicações distintas” de militares russos e unidades da FSB, afirmou uma ex-autoridade graduada da GUR. “Tinha tanta informação que nós não conseguíamos dar conta sozinhos.”

Torrentes de dados foram retransmitidas para Washington por meio do novo escritório construído pela CIA. Nos EUA, as informações foram examinadas por analistas da CIA e da NSA, afirmaram autoridades.

“Nós estávamos dando a eles a capacidade — por meio das nossas — de coletar dados sobre” alvos russos, afirmou a ex-autoridade da GUR. Questionada a respeito do montante do investimento da CIA, a fonte afirmou: “foram milhões de dólares”.

Com o tempo, a GUR também desenvolveu uma rede de fontes no aparato de segurança da Rússia, incluindo na unidade da FSB responsável pelas operações na Ucrânia. Numa mostra de confiança entre EUA e Ucrânia, afirmaram autoridades, foi permitido à CIA contato direto com agentes recrutados e operados pela inteligência ucraniana.

O fruto inesperado em inteligência que resultou dessa relação esteve quase totalmente fora da visão do público, com exceções intermitentes. O SBU começou a postar interceptações de comunicações incriminatórias ou embaraçosas, incluindo uma na qual comandantes russos foram flagrados debatendo a culpabilidade de seu país na derrubada do avião comercial da Malaysian Airlines, em 2014.

Mesmo assim, autoridades afirmaram que dados de inteligência obtidos por meio da cooperação EUA-Ucrânia tem seus limites. Os alertas preliminares do governo Biden a respeito da determinação do presidente russo, Vladimir Putin, de derrubar o governo em Kiev, por exemplo, tiveram base principalmente em fluxos de inteligência distintos, dos quais a Ucrânia não esteve a par inicialmente.

De algumas maneiras, afirmam autoridades, os próprios esforços de coleta de inteligência da Ucrânia alimentaram um ceticismo que Zelenski e outros tinham a respeito dos planos de Putin porque os americanos estavam espionando militares e unidades da FSB que os ucranianos não conheciam até a véspera da guerra. “Eles estavam conseguindo um retrato acurado de pessoas que também estavam no escuro”, afirmou uma autoridade dos EUA.

Exército russo treina no sul do país em meio a guerra contra a Ucrânia  Foto: Ministério da Defesa da Rússia / AFP

Moscou na mira dos drones

As forças russas não conseguiram tomar Kiev. Mas ambas as estruturas da GUR que a CIA financiou estiveram entre as dezenas de instalações importantes na mira dos ataques da Rússia nos primeiros dias da guerra, afirmaram autoridades enfatizando que os edifícios resistiram e continuam a funcionar.

As novas capacidades de inteligência da Ucrânia provaram-se valiosas desde o início da guerra. O SBU, por exemplo, obteve informações de inteligência a respeito de alvos russos valiosos, possibilitando ataques que mataram vários comandantes e quase liquidaram o comandante das Forças Armadas da Rússia, Valeri Gerasimov.

Ao longo do ano recente, as missões dos serviços ucranianos de inteligência têm se centrado cada vez mais em alvos não apenas próximos às linhas inimigas, mas também no interior da Rússia.

Para o SBU, nenhum alvo teve mais prioridade que a Ponte Kerch, que conecta a Rússia continental à Península da Crimeia anexada. A ponte é um corredor militar crucial e carrega tanto significado simbólico para Putin que ele próprio a inaugurou, em 2018.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o Chefe das Forças Armadas, Valeri Gerasimov, que quase foi assassinado pela Ucrânia  Foto: Gabriil Grigorov/ AP

O SBU atingiu a ponte duas vezes no ano passado, incluindo em um bombardeio em outubro de 2022 que matou cinco pessoas e abriu um buraco na pista sentido oeste.

Zelenski inicialmente negou responsabilidade da Ucrânia, mas o diretor do SBU, Maliuk, descreveu a operação em extremo detalhe numa entrevista que concedeu este ano, reconhecendo que seu serviço tinha colocado um poderoso explosivo em um caminhão que transportava rolos industriais de celofane.

Como em outras sabotagens do SBU, essa operação envolveu cúmplices inconscientes, entre eles o motorista do caminhão morto na explosão. “Nós atravessamos os sete círculos do inferno mantendo tanta gente no escuro”, afirmou Maliuk numa entrevista a respeito da operação, que, segundo ele, dependeu da susceptibilidade de “contrabandistas russos comuns”.

Autoridades dos EUA informadas anteriormente expressaram preocupações a respeito do ataque, afirmaram autoridades, temendo uma escalada por parte da Rússia. Essas apreensões tinham presumivelmente se dissipado quando o SBU lançou um segundo ataque contra a ponte nove meses depois, usando drones navais desenvolvidos como parte de uma operação ultrassecreta envolvendo a CIA e outros serviços ocidentais de inteligência.

O relato detalhado da operação desafia a praxe da espionagem, mas serve à necessidade de Kiev de reivindicar sucessos e reflete uma rivalidade incipiente entre o SBU e a GUR. O chefe de inteligência da Ucrânia, Kirilo Budanov, tornou hábito promover as conquistas de sua agência e insultar Moscou.

Bolhas de gás são vistas após o vazamento do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico  Foto: Comando de Defesa da Dinamarca/Reuters

Os dois serviços apresentam certo grau de redundâncias operacionais, mas as autoridades do SBU tendem a perseguir missões mais complexas, com investigações mais extensas, enquanto a GUR tende a trabalhar num ritmo mais acelerado. Autoridades ucranianas negaram envolvimento direto das agências no ataque de setembro de 2022 contra o gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, mas agências de inteligência dos EUA e de outros países ocidentais concluíram que a Ucrânia está ligada à operação de sabotagem.

A GUR tem usado sua própria frota de drones para lançar dezenas de ataques em território russo, incluindo ações que atravessaram defesas antiaéreas russas e atingiram prédios em Moscou; entre elas, uma operação em maio deste ano que incendiou brevemente parte do telhado do Kremlin.

Esses ataques envolveram drones de longo alcance lançados do território ucraniano, assim como times de operadores e partisans trabalhando dentro da Rússia, afirmaram autoridades. Os motores de alguns drones foram comprados de fornecedores chineses, com financiamento privado que não pôde ser ligado a fontes ucranianas, de acordo com uma autoridade que afirmou ter se envolvido nas transações.

Assassinatos na Rússia

A GUR também entrou no ramo dos assassinatos, afirmaram autoridades.

Em julho, o ex-comandante de submarinos russo Stanislav Rzhitski foi morto com quatro tiros no tórax e nas costas em Krasnodar, onde, segundo relatos, ele trabalhava como recrutador militar. Rzhitski, de 42 anos, era conhecido por usar o aplicativo de exercícios Strava para registrar suas rotas diárias de corrida, um hábito que pode ter revelado sua localização.

A GUR emitiu uma declaração tímida desviando da responsabilidade mas citando em detalhes precisos as circunstâncias da morte de Rzhitski e notando que, “em razão da chuva forte, o parque estava vazio” e não houve testemunhas. Autoridades em Kiev confirmaram que a GUR foi responsável pelo assassinato.

Ainda que reconheçam responsabilidade por essas ações, as autoridades ucranianas reivindicam uma nobreza moral sobre a Rússia. O SBU e a GUR têm buscado evitar ferir transeuntes inocentes mesmo em operações letais, afirmaram autoridades, enquanto os ataques arrasadores e indiscriminados da Rússia têm matado ou ferido milhares de civis.

Autoridades de segurança afirmaram que nenhuma grande operação do SBU ou da GUR vai adiante sem aprovação — tácita ou explícita — de Zelenski. Um porta-voz do presidente ucraniano não respondeu a pedidos de comentário.

Céticos, não obstante, preocupam-se com a possibilidade do uso que a Ucrânia faz de operações de assassinato e ataques de drones contra os edifícios altos de Moscou não ajudar nem a causa ucraniana contra a Rússia nem suas aspirações a médio prazo para adesão à Otan e à UE.

Uma graduada autoridade ucraniana que trabalhou proximamente com governos ocidentais coordenando o apoio à Ucrânia afirmou que os ataques contra não combatentes e os bombardeios contra edifícios de Moscou alimentam a narrativa falsa de Putin de que a Ucrânia representava um perigo crescente para os russos comuns. “Isso colabora com suas mentiras de que os ucranianos estão indo pegar os russos”, afirmou a autoridade.

Essa visão parece minoritária. Outros consideram que os ataques estão melhorando o moral entre ucranianos sitiados e adquirem um ar de justiçamento vigilante para os supostos crimes de guerra da Rússia, que, na visão de muitos ucranianos, nunca serão submetidos a sanções das Nações Unidas ou de cortes internacionais.

O atentado com carro-bomba que matou Dugina no ano passado continua a se sobressair como um dos casos mais extremos de vingança letal — não apenas direcionada contra não combatentes, mas que envolveu uma mulher ucraniana e uma pré-adolescente presumivelmente sem conhecimento da ação.

Alexander Dugin, aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o funeral de sua filha, Daria Dugina  Foto: Maxim Shemetov/Reuters

As autoridades russas mal acabavam de limpar os destroços quando a FSB identificou Natalia Vovk, de 42 anos, como a principal suspeita. Ela entrou na Rússia a partir da Estônia em julho, de acordo com a FSB, viveu num apartamento no mesmo condomínio que Dugina, passou semanas realizando vigilância e, depois da explosão, voltou com a filha para a Estônia.

A FSB também identificou um suposto cúmplice que, segundo a Rússia, forneceu placas veiculares do Cazaquistão para que Vovk usasse em seu carro, um Mini Cooper, enquanto viajava pela Rússia, ajudou a montar a bomba e fugiu para a Estônia antes do ataque.

As autoridades ucranianas afirmaram que Vovk foi motivada em parte pelo cerco da Rússia à sua cidade, Mariupol. E se recusaram a comentar a natureza de sua relação com o SBU ou seu paradeiro atual.

O ataque tinha intenção de matar Dugin quando ele e sua filha deixassem um festival cultural onde o ideólogo pró-guerra, às vezes chamado de “cérebro de Putin”, tinha dado palestra. Esperava-se que ambos saíssem juntos do evento, mas Dugin entrou em outro carro. Vovk, segundo a FSB, também compareceu ao festival.

Na época, a Ucrânia negou vigorosamente envolvimento no ataque. “A Ucrânia não tem absolutamente nada a ver com isso, porque nós não somos um Estado criminoso nem terrorista como a Rússia”, afirmou Mikhailo Podoliak, um dos conselheiro de Zelenski.

Autoridades reconheceram em entrevistas recentes em Kiev, contudo, que essas negativas eram falsas — e confirmaram que o SBU planejou e executou a operação afirmando que, mesmo que Dugin fosse o alvo principal, sua filha, também apoiadora fervente da invasão, não foi uma vítima inocente.

“Ela é filha do pai da propaganda russa”, afirmou uma autoridade de segurança. O atentado com carro-bomba e outras operações dentro da Rússia “trabalham narrativas”, mostrando aos inimigos da Ucrânia que “a punição é iminente mesmo para quem acha que é intocável”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

KIEV — O carro abarrotado que transportava uma mãe e sua filha de 12 anos não parecia merecer atenção das autoridades russas conforme se aproximava de um posto de controle fronteiriço. Mas a bagagem mais chamativa, uma caixa de transporte de bichos de estimação, era parte de uma conspiração elaborada e letal. Operadores ucranianos tinham instalado um compartimento oculto na caixa, de acordo com autoridades de segurança cientes da operação, usado para esconder componentes de uma bomba.

Quatro semanas depois, o artefato explodiu nas proximidades de Moscou, no SUV conduzido pela filha de um nacionalista russo que instava seu país a “matar, matar e matar” os ucranianos; explosão que sinalizou que a capital russa não seria poupada da carnificina da guerra.

A operação foi orquestrada pelo serviço de segurança doméstica da Ucrânia (SBU), de acordo com autoridades que forneceram detalhes, incluindo o uso da caixa de transporte de animais, anteriormente não revelados. O ataque de 2022 foi parte de uma guerra travada nas sombras na qual serviços ucranianos de espionagem também bombardearam duas vezes a ponte que conecta a Rússia à Crimeia ocupada, pilotaram drones que se aproximaram do Kremlin e abriram buracos nos cascos de embarcações russas no Mar Negro.

Aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, Alexander Dugin comparece ao funeral de sua filha, Daria Dugina, que morreu em Moscou após uma bomba explodir em seu carro  Foto: Kirill Kudryavtsev/AFP

Essas operações foram classificadas como medidas extremas que a Ucrânia foi forçada a adotar em resposta à invasão da Rússia, iniciada no ano passado. Na realidade, mostram capacidades que as agências de espionagem ucranianas desenvolveram ao longo de quase uma década, desde que a Rússia tomou território ucraniano pela primeira vez, em 2014, um período no qual os serviços ucranianos também forjaram novos laços com a CIA.

As missões envolveram equipes de elite de operadores ucranianos que atuavam em diretorados que foram formados, treinados e equipados em parceria próxima com a CIA, de acordo com autoridades e ex-autoridades da Ucrânia e dos EUA. Desde 2015, a CIA gastou dezenas de milhões de dólares para transformar serviços ucranianos formados na era soviética em potentes aliados contra Moscou, afirmaram autoridades. A agência americana forneceu aos ucranianos avançados sistemas de vigilância, treinou recrutas em campos na Ucrânia e nos EUA, construiu novas instalações para departamentos da agência de inteligência militar da Ucrânia e compartilhou informações de inteligência numa escala inimaginável antes da Rússia anexar ilegalmente a Crimeia e fomentar uma guerra separatista no leste ucraniano. A CIA mantém uma presença significativa em Kiev, afirmaram autoridades.

A profundidade do envolvimento da CIA nos serviços de segurança da Ucrânia não havia sido revelada anteriormente. Autoridades de inteligência dos EUA enfatizaram que a agência não tem nenhum envolvimento em operações de assassinato seletivo praticadas pelas agências ucranianas e que seu trabalho tem colocado foco em auxiliar e dar recursos à capacidade dos serviços de reunir informações de inteligência de um adversário perigoso. Uma graduada autoridade de inteligência afirmou que “qualquer preocupação operacional era transmitida claramente para os serviços ucranianos”.

Motoristas registram ataque a ponte da Crimeia, que liga a Rússia a Península da Crimeia  Foto: Reuters/Reuters

Muitas das operações clandestinas da Ucrânia têm objetivos militares claros e contribuíram para a defesa do país. A operação com carro-bomba que matou Daria Dugina, contudo, sublinhou a aceitação da Ucrânia ao que autoridades em Kiev descrevem como “aniquilações” enquanto ferramentas de guerra. Ao longo dos 20 meses recentes, o SBU e sua contraparte militar, a Diretoria Principal de Inteligência (GUR), realizaram dezenas de assassinatos de autoridades russas em territórios ocupados, de supostos colaboradores ucranianos, de oficiais militares russos atrás das linhas de combate e de apoiadores proeminentes da guerra dentro da Rússia. Os mortos incluem um ex-comandante de submarino russo assassinado a tiros enquanto corria em um parque na cidade russa de Krasnodar e um blogueiro militante morto numa explosão em um café de São Petersburgo, de acordo com autoridades ucranianas e ocidentais.

A afinidade da Ucrânia com operações letais complicou sua colaboração com a CIA, levantando preocupações sobre a cumplicidade da agência americana e criando desconforto entre algumas autoridades em Kiev e Washington.

Mesmo aqueles que consideram operações de assassinato defensáveis em tempos de guerra questionam a utilidade de certos ataques e decisões que produziram alvos civis, como Dugina ou seu pai, Alexander Dugin — que autoridades afirmam ter sido o objetivo pretendido — em vez de russos ligados mais diretamente à guerra.

Policiais russos limpam escombros após a explosão de uma bomba em um café em São Petersburgo, Rússia Foto: Olga Maltseva/AFP

“Nós temos inimigos demais cuja neutralização é mais importante”, afirmou uma graduada autoridade de inteligência da Ucrânia. “Indivíduos que lançam mísseis, indivíduos que cometeram atrocidades em Bucha”. Matar a filha de um ativista defensor da guerra é “muito cinismo”, disse a fonte.

Outras autoridades citaram preocupações a respeito das táticas de assassinato da Ucrânia poderem parecer justificáveis agora — especialmente contra um país acusado de atrocidades de guerra generalizadas — mas posteriormente se provarem difíceis de controlar.

“Nós estamos vendo o nascimento de um conjunto de serviços de inteligência parecido com o Mossad nos anos 70″, afirmou uma ex-autoridade da CIA, referindo-se à agência de espionagem israelense há muito acusada de realizar assassinatos em outros países. A proficiência da Ucrânia em operações desse tipo “tem riscos para a Rússia”, afirmou a fonte, “mas também ocasiona riscos maiores”.

“Se as operações de inteligência da Ucrânia tornarem-se ainda mais ousadas — mirando russos em países terceiros, por exemplo — é possível imaginar como isso poderia causar fissuras entre parceiros e tensionar seriamente objetivos maiores da Ucrânia”, afirmou a autoridade. Entre esses objetivos está a adesão à Otan e à União Europeia.

Esta reportagem tem como base entrevistas concedidas por mais de duas dúzias de autoridades de inteligência e segurança ucranianas, americanas e ocidentais, que falaram sob condição de anonimato citando preocupações de segurança e a sensibilidade do tema. A pressão sobre Kiev para vencer a Rússia e encontrar maneiras de dissuadir futuras agressões cria incentivos para exageros dos registros e capacidades dos serviços ucranianos. O Post confirmou detalhes importantes com múltiplas fontes e acesso a diferentes dados de inteligência.

A CIA recusou-se a comentar.

O presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, conversa com o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, durante uma visita a Casa Branca, em Washington, Estados Unidos  Foto: Kevin Lamarque/AFP

A parceria CIA-Ucrânia

Autoridades do SBU e da GUR descrevem suas funções operacionais em expansão como resultado de circunstâncias excepcionais. “Todos os alvos atingidos pelo SBU são completamente legais”, afirmou o diretor da agência, Vasil Maliuk, em um comunicado ao Post. O comunicado não se referiu especificamente a operações de assassinato, mas Maliuk, que se reuniu com altas autoridades da CIA e de outras agências governamentais americanas em Washington, no mês passado, afirmando que a Ucrânia “faz tudo para garantir que a punição justa ‘alcance’ todos os traidores, criminosos de guerra e colaboradores”.

Autoridades e ex-autoridades americanas afirmaram que ambos os lados buscaram manter uma distância cuidadosa entre a CIA e as operações letais realizadas por seus parceiros em Kiev. Autoridades da CIA expressaram objeções após algumas operações, afirmam autoridades, mas a agência americana não retirou seu apoio.

“Nós nunca envolvemos nossos parceiros internacionais em operações secretas, especialmente atrás das linhas de combate”, afirmou uma ex-autoridade ucraniana graduada de segurança. Operadores do SBU e da GUR não agiram acompanhados de contrapartes da CIA. A Ucrânia evitou usar armas ou equipamentos que possam ser rastreados até fontes americanas, e até fluxos de financiamento secreto foram segregados.

“Nós tínhamos muitas restrições a respeito de trabalhar com os ucranianos operacionalmente”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA. A ênfase era “mais em comunicações seguras e intercâmbios” e em perseguir novos fluxos de inteligência dentro da Rússia, “em vez de ‘vejam como se explode um prefeito’. Eu nunca tive a sensação de que estávamos envolvidos em projetar suas operações”.

Uma foto de 2014 de Yevgeny Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia, que foi morto a tiros em 2016 em um restaurante de Moscou, Rússia Foto: Sergiy Bobok/AFP

Mesmo assim, autoridades reconheceram que os limites ocasionalmente se confundiram. Oficiais da CIA em Kiev foram informados a respeito de planos ambiciosos de ataques da Ucrânia. Em alguns casos, incluindo no bombardeio à Ponte Kerch, autoridades americanas registraram preocupações.

Os espiões ucranianos desenvolveram suas próprias diretrizes a respeito de quais operações discutir e sobre quais silenciar. “Havia certas coisas que nós talvez não conversássemos” com contrapartes da CIA, afirmou uma segunda autoridade ucraniana envolvida nesse tipo de missão. Ele afirmou que cruzar esses limites levaria a respostas secas dos americanos: “Nós não queremos participar disso de nenhuma maneira”.

A profunda parceria da CIA com a Ucrânia, que persistiu mesmo quando o país foi envolvido no escândalo em torno do impeachment do ex-presidente Donald Trump, representa uma reviravolta dramática para agências que passaram décadas de lados opostos da Guerra Fria. Em parte por causa desse legado, afirmaram autoridades, somente no ano passado a CIA removeu a Ucrânia da lista de países “sem amizade” com a agência, considerados tão arriscados em termos de segurança que qualquer contato com seus cidadãos por parte de funcionários da agência é proibido sem permissão prévia.

A colaboração CIA-Ucrânia criou raízes na esteira dos protestos políticos de 2014 na Ucrânia, que resultaram na fuga do país do então presidente, Viktor Yanukovich, pró-Rússia, seguida pela anexação da Crimeia por Moscou, que passou a armar separatistas nas regiões de Donetsk e Luhansk, no leste ucraniano.

A silhueta de um policial do Capitólio é mostrada diante de um registro uma ligação entre o então presidente americano Donald Trump e o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski Foto: Loren Elliott/Reuters

As fases iniciais de cooperação foram acanhadas, afirmaram autoridades, dadas as preocupações em ambos os lados de que os serviços ucranianos ainda fossem pesadamente impregnados pela FSB — a agência russa constituída como principal sucessora da KGB. Para gerir o risco de segurança, a CIA trabalhou com o SBU para criar um diretorado completamente novo, afirmaram autoridades, que colocasse foco nas chamadas operações de “medidas ativas” contra a Rússia e ficaria isolado de outros departamentos do serviço ucraniano de inteligência.

A nova unidade foi batizada informalmente de “Quinto Diretorado”, para distingui-la das outras quatro antigas unidades do SBU. Um sexto diretorado foi adicionado desde então, afirmaram autoridades, para trabalhar com a agência britânica de espionagem MI6.

Campos de treinamento foram instalados nas imediações de Kiev, onde recrutas escolhidos a dedo foram treinados por operadores da CIA, afirmaram autoridades. O plano era formar unidades “capazes de operar atrás das linhas de combate e trabalhar como grupos secretos”, afirmou uma autoridade ucraniana envolvida no esforço.

A agência forneceu equipamentos seguros de comunicação, dispositivos de escuta que permitiram à Ucrânia interceptar telefonemas e e-mails dos russos e até disfarces e uniformes de separatistas, possibilitando aos operadores inserir-se mais facilmente em cidades ocupadas.

As primeiras missões tiveram como foco recrutar informantes entre as forças que apoiam a Rússia e medidas de vigilância cibernética e eletrônica, afirmaram autoridades. O SBU também começou a montar operações de sabotagem e missões de captura a líderes separatistas e colaboradores ucranianos, alguns deles foram levados para centros de detenção secretos.

Mas as operações logo tomaram o rumo da letalidade. Ao longo de três anos, pelo menos meia dúzia de operadores russos, comandantes separatistas de alta patente ou colaboradores foram mortos com violência em ações frequentemente atribuídas a acertos de contas internos mas que na realidade foram obra do SBU, afirmaram autoridades ucranianas.

Entre os mortos estava Yevgeni Zhilin, líder de um grupo militante pró-Rússia no leste da Ucrânia assassinado a tiros em um restaurante de Moscou, em 2016. Um ano depois, um comandante rebelde conhecido como “Givi” foi morto em Donetsk numa operação na qual uma mulher que o acusava de estupro foi recrutada para plantar uma bomba ao lado dele, de acordo com uma ex-autoridade envolvida na missão.

Autoridades ucranianas afirmaram que a opção de seu país por métodos mais letais foi motivada pela agressão russa, por atrocidades cometidas por seus apoiadores e pelo desespero para encontrar maneiras de enfraquecer o adversário mais poderoso. Muitos também citaram o suposto histórico de assassinatos da Rússia em Kiev.

“Em razão dessa guerra híbrida nós encaramos uma realidade absolutamente nova”, afirmou o parlamentar ucraniano Valentin Nalivaichenko, que era diretor do SBU em 2015, quando o Quinto Diretorado foi criado. “Nós fomos forçados a treinar nosso pessoal de outra maneira.”

Autoridades russas investigam a cena após o carro-bomba que matou Daria Dugina em 2022 Foto: Comitê Investigativo Russo/AFP

Transformando a inteligência militar ucraniana

Mesmo enquanto ajudava a construir o novo diretorado do SBU, a CIA embarcou em um projeto muito mais ambicioso.

Com menos de 5 mil empregados, a GUR tinha uma fração do tamanho do SBU e um foco mais estreito sobre espionagem e operações de medidas ativas contra a Rússia. Tinha também uma força de trabalho mais jovem, com menos remanescentes dos tempos soviéticos, enquanto o SBU ainda era percebido como impregnado pela inteligência russa.

“Nós calculamos que a GUR era uma organização menor e mais ágil, onde poderíamos surtir um impacto maior”, afirmou uma ex-autoridade de inteligência dos EUA que trabalhou na Ucrânia. “A GUR era o nosso bebê. Nós lhes dávamos todos os novos equipamentos e treinamentos.” Os oficiais da GUR “eram caras jovens, não generais KGB da era soviética”, afirmou a autoridade, “e o SBU era grande demais para reformar”.

Desdobramentos recentes pareceram validar essas preocupações. O ex-diretor da SBU Ivan Bakanov foi forçado a deixar o emprego no ano passado em meio a críticas de que a agência não estava se movimentando agressivamente o suficiente contra traidores internos. O SBU também descobriu no ano passado que modems de fabricação russa ainda eram usados nas redes da agência, ocasionando um alvoroço para desplugar os equipamentos.

Senador americano Mark Kelly posa para foto com soldado ucraniano ao lado de tanques russos quebrados em Kiev, Ucrânia  Foto: Efrem Lukatsky / AP

A GUR começou a recrutar operadores para seu próprio departamento de medidas ativas, afirmaram autoridades. Em instalações dentro da Ucrânia e, posteriormente, nos EUA, operadores da GUR foram treinados em capacidades como manobras clandestinas por trás de linhas inimigas e plataformas de armas e explosivos. Autoridades americanas afirmaram que o treinamento teve como objetivo ajudar operadores ucranianos a proteger a si mesmos em ambientes perigosos controlados por russos, em vez de atingir alvos russos.

Alguns dos recrutas mais novos da GUR transferiram-se do SBU, afirmaram autoridades, atraídos pelo serviço rival repleto de novas autoridades e recursos. Entre eles estava Vasil Burba, que havia coordenado o Quinto Diretorado do SBU antes de se juntar à GUR e dirigir a agência entre 2016 e 2020. Burba tornou-se um aliado tão próximo da CIA — e percebido como um alvo por Moscou — que ao ser demitido da função, após o presidente Volodmir Zelenski se eleger, recebeu da agência um carro blindado, afirmaram autoridades. Burba recusou-se a conversar com a reportagem.

A CIA ajudou a GUR a obter sistemas avançados de vigilância e escutas eletrônicas, afirmaram autoridades, que incluíram equipamentos móveis capazes de ser instalados em linhas controladas pelos russos no leste da Ucrânia, e também ferramentas de software usadas para explorar telefones de autoridades do Kremlin em visita a territórios ocupados. Oficiais ucranianos operaram os sistemas, afirmaram autoridades, mas toda informação levantada era compartilhada com os americanos.

Preocupados com a possibilidade das antigas instalações da GUR estarem comprometidas por grampos da inteligência russa, a CIA bancou a construção de novos escritórios para nova divisão paramilitar “spetsnaz” da GUR e um diretorado separado responsável por espionagem eletrônica.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, participa de uma reunião de seu gabinete em Moscou, Rússia  Foto: Gavriil Grigorov/ AP

As novas capacidades foram transformadoras, afirmam autoridades. “Em um só dia nós conseguimos interceptar de 250 mil a 300 mil comunicações distintas” de militares russos e unidades da FSB, afirmou uma ex-autoridade graduada da GUR. “Tinha tanta informação que nós não conseguíamos dar conta sozinhos.”

Torrentes de dados foram retransmitidas para Washington por meio do novo escritório construído pela CIA. Nos EUA, as informações foram examinadas por analistas da CIA e da NSA, afirmaram autoridades.

“Nós estávamos dando a eles a capacidade — por meio das nossas — de coletar dados sobre” alvos russos, afirmou a ex-autoridade da GUR. Questionada a respeito do montante do investimento da CIA, a fonte afirmou: “foram milhões de dólares”.

Com o tempo, a GUR também desenvolveu uma rede de fontes no aparato de segurança da Rússia, incluindo na unidade da FSB responsável pelas operações na Ucrânia. Numa mostra de confiança entre EUA e Ucrânia, afirmaram autoridades, foi permitido à CIA contato direto com agentes recrutados e operados pela inteligência ucraniana.

O fruto inesperado em inteligência que resultou dessa relação esteve quase totalmente fora da visão do público, com exceções intermitentes. O SBU começou a postar interceptações de comunicações incriminatórias ou embaraçosas, incluindo uma na qual comandantes russos foram flagrados debatendo a culpabilidade de seu país na derrubada do avião comercial da Malaysian Airlines, em 2014.

Mesmo assim, autoridades afirmaram que dados de inteligência obtidos por meio da cooperação EUA-Ucrânia tem seus limites. Os alertas preliminares do governo Biden a respeito da determinação do presidente russo, Vladimir Putin, de derrubar o governo em Kiev, por exemplo, tiveram base principalmente em fluxos de inteligência distintos, dos quais a Ucrânia não esteve a par inicialmente.

De algumas maneiras, afirmam autoridades, os próprios esforços de coleta de inteligência da Ucrânia alimentaram um ceticismo que Zelenski e outros tinham a respeito dos planos de Putin porque os americanos estavam espionando militares e unidades da FSB que os ucranianos não conheciam até a véspera da guerra. “Eles estavam conseguindo um retrato acurado de pessoas que também estavam no escuro”, afirmou uma autoridade dos EUA.

Exército russo treina no sul do país em meio a guerra contra a Ucrânia  Foto: Ministério da Defesa da Rússia / AFP

Moscou na mira dos drones

As forças russas não conseguiram tomar Kiev. Mas ambas as estruturas da GUR que a CIA financiou estiveram entre as dezenas de instalações importantes na mira dos ataques da Rússia nos primeiros dias da guerra, afirmaram autoridades enfatizando que os edifícios resistiram e continuam a funcionar.

As novas capacidades de inteligência da Ucrânia provaram-se valiosas desde o início da guerra. O SBU, por exemplo, obteve informações de inteligência a respeito de alvos russos valiosos, possibilitando ataques que mataram vários comandantes e quase liquidaram o comandante das Forças Armadas da Rússia, Valeri Gerasimov.

Ao longo do ano recente, as missões dos serviços ucranianos de inteligência têm se centrado cada vez mais em alvos não apenas próximos às linhas inimigas, mas também no interior da Rússia.

Para o SBU, nenhum alvo teve mais prioridade que a Ponte Kerch, que conecta a Rússia continental à Península da Crimeia anexada. A ponte é um corredor militar crucial e carrega tanto significado simbólico para Putin que ele próprio a inaugurou, em 2018.

Presidente da Rússia, Vladimir Putin, conversa com o Chefe das Forças Armadas, Valeri Gerasimov, que quase foi assassinado pela Ucrânia  Foto: Gabriil Grigorov/ AP

O SBU atingiu a ponte duas vezes no ano passado, incluindo em um bombardeio em outubro de 2022 que matou cinco pessoas e abriu um buraco na pista sentido oeste.

Zelenski inicialmente negou responsabilidade da Ucrânia, mas o diretor do SBU, Maliuk, descreveu a operação em extremo detalhe numa entrevista que concedeu este ano, reconhecendo que seu serviço tinha colocado um poderoso explosivo em um caminhão que transportava rolos industriais de celofane.

Como em outras sabotagens do SBU, essa operação envolveu cúmplices inconscientes, entre eles o motorista do caminhão morto na explosão. “Nós atravessamos os sete círculos do inferno mantendo tanta gente no escuro”, afirmou Maliuk numa entrevista a respeito da operação, que, segundo ele, dependeu da susceptibilidade de “contrabandistas russos comuns”.

Autoridades dos EUA informadas anteriormente expressaram preocupações a respeito do ataque, afirmaram autoridades, temendo uma escalada por parte da Rússia. Essas apreensões tinham presumivelmente se dissipado quando o SBU lançou um segundo ataque contra a ponte nove meses depois, usando drones navais desenvolvidos como parte de uma operação ultrassecreta envolvendo a CIA e outros serviços ocidentais de inteligência.

O relato detalhado da operação desafia a praxe da espionagem, mas serve à necessidade de Kiev de reivindicar sucessos e reflete uma rivalidade incipiente entre o SBU e a GUR. O chefe de inteligência da Ucrânia, Kirilo Budanov, tornou hábito promover as conquistas de sua agência e insultar Moscou.

Bolhas de gás são vistas após o vazamento do gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico  Foto: Comando de Defesa da Dinamarca/Reuters

Os dois serviços apresentam certo grau de redundâncias operacionais, mas as autoridades do SBU tendem a perseguir missões mais complexas, com investigações mais extensas, enquanto a GUR tende a trabalhar num ritmo mais acelerado. Autoridades ucranianas negaram envolvimento direto das agências no ataque de setembro de 2022 contra o gasoduto Nord Stream 2, no Mar Báltico, mas agências de inteligência dos EUA e de outros países ocidentais concluíram que a Ucrânia está ligada à operação de sabotagem.

A GUR tem usado sua própria frota de drones para lançar dezenas de ataques em território russo, incluindo ações que atravessaram defesas antiaéreas russas e atingiram prédios em Moscou; entre elas, uma operação em maio deste ano que incendiou brevemente parte do telhado do Kremlin.

Esses ataques envolveram drones de longo alcance lançados do território ucraniano, assim como times de operadores e partisans trabalhando dentro da Rússia, afirmaram autoridades. Os motores de alguns drones foram comprados de fornecedores chineses, com financiamento privado que não pôde ser ligado a fontes ucranianas, de acordo com uma autoridade que afirmou ter se envolvido nas transações.

Assassinatos na Rússia

A GUR também entrou no ramo dos assassinatos, afirmaram autoridades.

Em julho, o ex-comandante de submarinos russo Stanislav Rzhitski foi morto com quatro tiros no tórax e nas costas em Krasnodar, onde, segundo relatos, ele trabalhava como recrutador militar. Rzhitski, de 42 anos, era conhecido por usar o aplicativo de exercícios Strava para registrar suas rotas diárias de corrida, um hábito que pode ter revelado sua localização.

A GUR emitiu uma declaração tímida desviando da responsabilidade mas citando em detalhes precisos as circunstâncias da morte de Rzhitski e notando que, “em razão da chuva forte, o parque estava vazio” e não houve testemunhas. Autoridades em Kiev confirmaram que a GUR foi responsável pelo assassinato.

Ainda que reconheçam responsabilidade por essas ações, as autoridades ucranianas reivindicam uma nobreza moral sobre a Rússia. O SBU e a GUR têm buscado evitar ferir transeuntes inocentes mesmo em operações letais, afirmaram autoridades, enquanto os ataques arrasadores e indiscriminados da Rússia têm matado ou ferido milhares de civis.

Autoridades de segurança afirmaram que nenhuma grande operação do SBU ou da GUR vai adiante sem aprovação — tácita ou explícita — de Zelenski. Um porta-voz do presidente ucraniano não respondeu a pedidos de comentário.

Céticos, não obstante, preocupam-se com a possibilidade do uso que a Ucrânia faz de operações de assassinato e ataques de drones contra os edifícios altos de Moscou não ajudar nem a causa ucraniana contra a Rússia nem suas aspirações a médio prazo para adesão à Otan e à UE.

Uma graduada autoridade ucraniana que trabalhou proximamente com governos ocidentais coordenando o apoio à Ucrânia afirmou que os ataques contra não combatentes e os bombardeios contra edifícios de Moscou alimentam a narrativa falsa de Putin de que a Ucrânia representava um perigo crescente para os russos comuns. “Isso colabora com suas mentiras de que os ucranianos estão indo pegar os russos”, afirmou a autoridade.

Essa visão parece minoritária. Outros consideram que os ataques estão melhorando o moral entre ucranianos sitiados e adquirem um ar de justiçamento vigilante para os supostos crimes de guerra da Rússia, que, na visão de muitos ucranianos, nunca serão submetidos a sanções das Nações Unidas ou de cortes internacionais.

O atentado com carro-bomba que matou Dugina no ano passado continua a se sobressair como um dos casos mais extremos de vingança letal — não apenas direcionada contra não combatentes, mas que envolveu uma mulher ucraniana e uma pré-adolescente presumivelmente sem conhecimento da ação.

Alexander Dugin, aliado do presidente da Rússia, Vladimir Putin, durante o funeral de sua filha, Daria Dugina  Foto: Maxim Shemetov/Reuters

As autoridades russas mal acabavam de limpar os destroços quando a FSB identificou Natalia Vovk, de 42 anos, como a principal suspeita. Ela entrou na Rússia a partir da Estônia em julho, de acordo com a FSB, viveu num apartamento no mesmo condomínio que Dugina, passou semanas realizando vigilância e, depois da explosão, voltou com a filha para a Estônia.

A FSB também identificou um suposto cúmplice que, segundo a Rússia, forneceu placas veiculares do Cazaquistão para que Vovk usasse em seu carro, um Mini Cooper, enquanto viajava pela Rússia, ajudou a montar a bomba e fugiu para a Estônia antes do ataque.

As autoridades ucranianas afirmaram que Vovk foi motivada em parte pelo cerco da Rússia à sua cidade, Mariupol. E se recusaram a comentar a natureza de sua relação com o SBU ou seu paradeiro atual.

O ataque tinha intenção de matar Dugin quando ele e sua filha deixassem um festival cultural onde o ideólogo pró-guerra, às vezes chamado de “cérebro de Putin”, tinha dado palestra. Esperava-se que ambos saíssem juntos do evento, mas Dugin entrou em outro carro. Vovk, segundo a FSB, também compareceu ao festival.

Na época, a Ucrânia negou vigorosamente envolvimento no ataque. “A Ucrânia não tem absolutamente nada a ver com isso, porque nós não somos um Estado criminoso nem terrorista como a Rússia”, afirmou Mikhailo Podoliak, um dos conselheiro de Zelenski.

Autoridades reconheceram em entrevistas recentes em Kiev, contudo, que essas negativas eram falsas — e confirmaram que o SBU planejou e executou a operação afirmando que, mesmo que Dugin fosse o alvo principal, sua filha, também apoiadora fervente da invasão, não foi uma vítima inocente.

“Ela é filha do pai da propaganda russa”, afirmou uma autoridade de segurança. O atentado com carro-bomba e outras operações dentro da Rússia “trabalham narrativas”, mostrando aos inimigos da Ucrânia que “a punição é iminente mesmo para quem acha que é intocável”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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