Como Marine Le Pen, da França, minou premiê e agora tenta enfraquecer Macron


Após ajudar a destituir o primeiro-ministro na semana passada, a líder de extrema direita deixou claro que seu próximo alvo é o presidente Emmanuel Macron.

Por Adam Nossiter

O duelo individual que moldou a vida política francesa por quase uma década aumentou um pouco de intensidade na semana passada, com a líder da direita da França, Marine Le Pen, reivindicando uma grande vitória e alertando que irá atrás de um prêmio maior: o presidente Emmanuel Macron.

Ninguém duvidou que as cartas estavam na mão dela. No entanto, na segunda feira, Macron havia relegado Le Pen e seu partido, o Reagrupamento Nacional, ao status de “pária” — nas palavras dela. Ele não se dignou a se encontrar com Le Pen em sua busca por um novo primeiro-ministro para substituir aquele que ela havia afastado na semana passada.

Líderes de outros partidos tiveram conversas com Macron no palácio presidencial; mas não Le Pen, que foi excluída porque faz parte da “frente anti-republicana” — nas palavras dele.

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Isso pode acabar sendo um grande erro. Le Pen anunciou a morte política do infeliz primeiro-ministro, Michel Barnier, no Parlamento; é claro que ele foi derrubado em um voto de desconfiança logo em seguida.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, faz seu discurso na Assembleia Nacional antes do voto de desconfiança que derrubou um primeiro-ministro da França pela primeira vez desde 1962  Foto: Michel Euler/AP

Barnier tentou forçar a aprovação de uma proposta de orçamento sem votação e, acima de tudo, mal consultou Le Pen, que tem o maior bloco de parlamentares e não pode ser ignorada.

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Ela sugeriu que sucessivos governos Macron podem ser derrubados, até que ele renuncie — deixando claro que ela está buscando um troféu mais importante: a cabeça do próprio presidente.

Macron mal havia desembarcado do avião da Arábia Saudita quando ela falou. Enquanto os parlamentares confusos ouviam, ela prometeu à França “libertação” de seus problemas, “talvez muito em breve”.

Isso parecia tanto uma promessa quanto uma ameaça. Tudo dependia da decisão de um homem, ela disse, evitando citar o nome de Macron enquanto sugeria que o estava empurrando para a saída. O alvo dela era claro.

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“Cabe à pessoa em questão, por si mesma, decidir se deve ficar”, disse ela. “Está na consciência dele determinar se deve sacrificar a política pública e o destino da França em prol de seu próprio orgulho.”

Le Pen então torceu a faca, apelando ironicamente à famosa racionalidade fria de Macron: “Cabe à razão dele decidir se ele pode ignorar a rejeição massiva do povo, que, no caso dele, acredito ser definitiva.”

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Macron, no entanto, insistiu que não vai a lugar nenhum. Le Pen, como árbitro do destino político da França, está mais perto do poder do que nunca. Ela efetuou uma transformação extraordinária de seu partido em pouco mais de uma década, substituindo os agentes pós-fascistas grosseiros da era de seu pai, fundador  do partido e antissemita Jean Marie Le Pen, pelos parlamentares de fala mansa e bem-vestidos de hoje.

E ela usou sua sólida base eleitoral — o voto de desconfiança da semana passada teve forte popularidade entre seus eleitores — para elevar a estatura de seu partido e criar uma divisão entre os outros partidos.

O presidente da França, Emmanuel Macron, à direita, encontra-se com o líder do partido centrista francês MoDem (Mouvement Démocrate), François Bayrou, no Palácio do Eliseu, em Paris, França Foto: Ludovic Marin/AP
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A pessoa mais responsável por ajudá-la nessa empreitada é ninguém menos que Macron, que moldou sua carreira política em torno do objetivo de mantê-la fora do poder.

Essa foi a lógica por trás de suas duas campanhas presidenciais, em 2017 e 2022 — quando ele era o reduto da democracia liberal contra o ataque da extrema direita — e foi a base para grande parte de seu apoio em ambas as vezes.

“A linha de Emmanuel Macron era: ‘Eu sou a muralha contra Marine Le Pen’”, disse Guillaume Letourneur, especialista no Reagrupamento Nacional no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política. “Seria de se observar que o resultado foi bem fraco.”

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Em suas campanhas, Macron conseguiu obter apoio de eleitores de esquerda que normalmente teriam recuado diante de suas políticas pró-negócios porque abominavam Le Pen ainda mais. Ele também teve o apoio de eleitores tradicionais de direita que desdenhavam as origens menos palatáveis do partido de seu pai, agora com 96 anos.

Mas agora Macron foi desacreditado, entre seus próprios eleitores e a esquerda, depois de ter aberto a porta para a pluralidade do  Reagrupamento Nacional na câmara baixa e importante do Parlamento ao convocar desnecessariamente uma eleição antecipada em junho. Ao fazer isso, ele disse que buscava clareza: mas o que a eleição deixou claro foi que os eleitores preferem a extrema direita e a esquerda a ele.

Ainda assim, embora Le Pen tenha dado um golpe de mestre na semana passada, o caminho tampouco está claro para ela. Ela tem que agir rápido, pois a ameaça de um veredito de culpa e uma sentença dura em um julgamento de peculato, potencialmente em 31 de março, paira sobre a política. Ela pode ser desqualificada de concorrer se as recomendações de sentença dos promotores forem mantidas.

“O objetivo é atacar alguém na oposição política”, disse Le Pen na televisão francesa no mês passado. “Estou dizendo aos franceses que a ideia de que eles poderiam ser privados de sua escolha é um ataque muito violento à democracia.”

Mas as evidências contra ela e 24 associados do partido também em julgamento foram fortes, e uma condenação continua sendo uma possibilidade distinta. O testemunho no tribunal deixou poucas dúvidas de que, conforme acusado, o Reagrupamento National usou dinheiro da União Europeia para fins partidários domésticos, uma apropriação indevida de mais de US$ 7 milhões em fundos públicos.

Testemunhas disseram que Le Pen disse a seus subordinados do Parlamento Europeu que uma parte do dinheiro alocado pela UE teria que ir para o partido nacional; documentos judiciais descreveram um “sistema fraudulento” arquitetado pela hierarquia do partido.

Ela está correndo contra o relógio. Mas Le Pen também está operando sob o que o cientista político e especialista em extrema direita Jean-Yves Camus, da Fundação Jean Jaurès, chama de “dupla restrição”. Ela deve parecer aos eleitores “tão normal quanto possível, e também tão perturbadora quanto possível”, disse ele.

Do lado normal, ela desviou do habitual em seu discurso no Parlamento na semana passada para insistir que era a verdadeira defensora não apenas dos valores da França, mas de suas instituições republicanas.

Isso marcou uma diferença notável com a figura de extrema direita com quem ela às vezes é comparada: Trump. Trump pode estar interessado em destruir as instituições do governo; já Le Pen, definitivamente não.

Macron recebe o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, em Paris: desafios para o governo francês com cenário mundial em transformação  Foto: Michel Euler/AP

Ela caracterizou Macron como o destruidor de instituições, aquele que “trabalhou incessantemente para derrubar tudo que pôde: o Quai d’Orsay”, o Ministério das Relações Exteriores da França; “as prefeituras”, os governadores locais da França; “a polícia investigativa, o sistema de aposentadoria, o seguro-desemprego, a ferrovia nacional”. A lista de Le Pen era longa.

Seus apoiadores querem mais controle e gestão do estado, não menos, ao contrário de Trump. “Nenhum eleitor de Marine Le Pen quer que, amanhã, o Ministério da Justiça deixe de existir”, disse Camus. “E eles querem mais interferência do Ministério do Interior”.

Do lado perturbador, os “quase onze milhões” — o tamanho do eleitorado do partido na votação mais recente, frequentemente citado pelos membros do Reagrupamento Nacional — não têm interesse em apoiar conservadores tradicionais de centro-direita como o primeiro-ministro deposto, Barnier.

Eles estão ansiosos para ver Le Pen enfraquecendo tais figuras. “Seus eleitores não vão às urnas para ajudar a direita tradicional”, disse Camus. “Eles querem algo que a direita tradicional não pode dar a eles — um estado que forneça ainda mais serviços, só que reservados apenas para os franceses.”

O secretário-geral do partido no Parlamento, Renaud Labaye, disse em uma entrevista: “É tudo muito simples. Estamos defendendo os interesses dos franceses e dos nossos eleitores. Estamos defendendo o interesse geral. Os políticos não o defenderam.”

Subjacente a ambos os desejos — mais ordem e mais perturbação — está um sentimento ardente de ressentimento de classe que ficou evidente na jogada para derrubar Barnier. Le Pen e suas forças acreditam que foram tratadas com condescendência e desdém pelo governo de Macron, em qualquer iteração. Normalmente, esses sentimentos nem são disfarçados.

Barnier só se encontrou com Le Pen para o que foi retratado como uma discussão séria cerca de 10 dias antes do voto de desconfiança, disse Philippe Olivier, cunhado e conselheiro de Le Pen, em uma entrevista.

“Ela se reuniu com alguém que disse: ‘Vou explicar meu orçamento para você’. Ele nunca tentou chegar a um acordo, nem por um segundo”, disse Olivier, que também é membro do Parlamento Europeu. “Ele não entendeu que deveria ter sido uma negociação”, acrescentou Olivier.

“Ele nos tomou por escoteiros. Ele nos tratou como se fôssemos nada. Por trás de tudo isso há um desprezo de classe. Mas o tempo de chamar os criados acabou.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

O duelo individual que moldou a vida política francesa por quase uma década aumentou um pouco de intensidade na semana passada, com a líder da direita da França, Marine Le Pen, reivindicando uma grande vitória e alertando que irá atrás de um prêmio maior: o presidente Emmanuel Macron.

Ninguém duvidou que as cartas estavam na mão dela. No entanto, na segunda feira, Macron havia relegado Le Pen e seu partido, o Reagrupamento Nacional, ao status de “pária” — nas palavras dela. Ele não se dignou a se encontrar com Le Pen em sua busca por um novo primeiro-ministro para substituir aquele que ela havia afastado na semana passada.

Líderes de outros partidos tiveram conversas com Macron no palácio presidencial; mas não Le Pen, que foi excluída porque faz parte da “frente anti-republicana” — nas palavras dele.

Isso pode acabar sendo um grande erro. Le Pen anunciou a morte política do infeliz primeiro-ministro, Michel Barnier, no Parlamento; é claro que ele foi derrubado em um voto de desconfiança logo em seguida.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, faz seu discurso na Assembleia Nacional antes do voto de desconfiança que derrubou um primeiro-ministro da França pela primeira vez desde 1962  Foto: Michel Euler/AP

Barnier tentou forçar a aprovação de uma proposta de orçamento sem votação e, acima de tudo, mal consultou Le Pen, que tem o maior bloco de parlamentares e não pode ser ignorada.

Ela sugeriu que sucessivos governos Macron podem ser derrubados, até que ele renuncie — deixando claro que ela está buscando um troféu mais importante: a cabeça do próprio presidente.

Macron mal havia desembarcado do avião da Arábia Saudita quando ela falou. Enquanto os parlamentares confusos ouviam, ela prometeu à França “libertação” de seus problemas, “talvez muito em breve”.

Isso parecia tanto uma promessa quanto uma ameaça. Tudo dependia da decisão de um homem, ela disse, evitando citar o nome de Macron enquanto sugeria que o estava empurrando para a saída. O alvo dela era claro.

“Cabe à pessoa em questão, por si mesma, decidir se deve ficar”, disse ela. “Está na consciência dele determinar se deve sacrificar a política pública e o destino da França em prol de seu próprio orgulho.”

Le Pen então torceu a faca, apelando ironicamente à famosa racionalidade fria de Macron: “Cabe à razão dele decidir se ele pode ignorar a rejeição massiva do povo, que, no caso dele, acredito ser definitiva.”

Macron, no entanto, insistiu que não vai a lugar nenhum. Le Pen, como árbitro do destino político da França, está mais perto do poder do que nunca. Ela efetuou uma transformação extraordinária de seu partido em pouco mais de uma década, substituindo os agentes pós-fascistas grosseiros da era de seu pai, fundador  do partido e antissemita Jean Marie Le Pen, pelos parlamentares de fala mansa e bem-vestidos de hoje.

E ela usou sua sólida base eleitoral — o voto de desconfiança da semana passada teve forte popularidade entre seus eleitores — para elevar a estatura de seu partido e criar uma divisão entre os outros partidos.

O presidente da França, Emmanuel Macron, à direita, encontra-se com o líder do partido centrista francês MoDem (Mouvement Démocrate), François Bayrou, no Palácio do Eliseu, em Paris, França Foto: Ludovic Marin/AP

A pessoa mais responsável por ajudá-la nessa empreitada é ninguém menos que Macron, que moldou sua carreira política em torno do objetivo de mantê-la fora do poder.

Essa foi a lógica por trás de suas duas campanhas presidenciais, em 2017 e 2022 — quando ele era o reduto da democracia liberal contra o ataque da extrema direita — e foi a base para grande parte de seu apoio em ambas as vezes.

“A linha de Emmanuel Macron era: ‘Eu sou a muralha contra Marine Le Pen’”, disse Guillaume Letourneur, especialista no Reagrupamento Nacional no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política. “Seria de se observar que o resultado foi bem fraco.”

Em suas campanhas, Macron conseguiu obter apoio de eleitores de esquerda que normalmente teriam recuado diante de suas políticas pró-negócios porque abominavam Le Pen ainda mais. Ele também teve o apoio de eleitores tradicionais de direita que desdenhavam as origens menos palatáveis do partido de seu pai, agora com 96 anos.

Mas agora Macron foi desacreditado, entre seus próprios eleitores e a esquerda, depois de ter aberto a porta para a pluralidade do  Reagrupamento Nacional na câmara baixa e importante do Parlamento ao convocar desnecessariamente uma eleição antecipada em junho. Ao fazer isso, ele disse que buscava clareza: mas o que a eleição deixou claro foi que os eleitores preferem a extrema direita e a esquerda a ele.

Ainda assim, embora Le Pen tenha dado um golpe de mestre na semana passada, o caminho tampouco está claro para ela. Ela tem que agir rápido, pois a ameaça de um veredito de culpa e uma sentença dura em um julgamento de peculato, potencialmente em 31 de março, paira sobre a política. Ela pode ser desqualificada de concorrer se as recomendações de sentença dos promotores forem mantidas.

“O objetivo é atacar alguém na oposição política”, disse Le Pen na televisão francesa no mês passado. “Estou dizendo aos franceses que a ideia de que eles poderiam ser privados de sua escolha é um ataque muito violento à democracia.”

Mas as evidências contra ela e 24 associados do partido também em julgamento foram fortes, e uma condenação continua sendo uma possibilidade distinta. O testemunho no tribunal deixou poucas dúvidas de que, conforme acusado, o Reagrupamento National usou dinheiro da União Europeia para fins partidários domésticos, uma apropriação indevida de mais de US$ 7 milhões em fundos públicos.

Testemunhas disseram que Le Pen disse a seus subordinados do Parlamento Europeu que uma parte do dinheiro alocado pela UE teria que ir para o partido nacional; documentos judiciais descreveram um “sistema fraudulento” arquitetado pela hierarquia do partido.

Ela está correndo contra o relógio. Mas Le Pen também está operando sob o que o cientista político e especialista em extrema direita Jean-Yves Camus, da Fundação Jean Jaurès, chama de “dupla restrição”. Ela deve parecer aos eleitores “tão normal quanto possível, e também tão perturbadora quanto possível”, disse ele.

Do lado normal, ela desviou do habitual em seu discurso no Parlamento na semana passada para insistir que era a verdadeira defensora não apenas dos valores da França, mas de suas instituições republicanas.

Isso marcou uma diferença notável com a figura de extrema direita com quem ela às vezes é comparada: Trump. Trump pode estar interessado em destruir as instituições do governo; já Le Pen, definitivamente não.

Macron recebe o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, em Paris: desafios para o governo francês com cenário mundial em transformação  Foto: Michel Euler/AP

Ela caracterizou Macron como o destruidor de instituições, aquele que “trabalhou incessantemente para derrubar tudo que pôde: o Quai d’Orsay”, o Ministério das Relações Exteriores da França; “as prefeituras”, os governadores locais da França; “a polícia investigativa, o sistema de aposentadoria, o seguro-desemprego, a ferrovia nacional”. A lista de Le Pen era longa.

Seus apoiadores querem mais controle e gestão do estado, não menos, ao contrário de Trump. “Nenhum eleitor de Marine Le Pen quer que, amanhã, o Ministério da Justiça deixe de existir”, disse Camus. “E eles querem mais interferência do Ministério do Interior”.

Do lado perturbador, os “quase onze milhões” — o tamanho do eleitorado do partido na votação mais recente, frequentemente citado pelos membros do Reagrupamento Nacional — não têm interesse em apoiar conservadores tradicionais de centro-direita como o primeiro-ministro deposto, Barnier.

Eles estão ansiosos para ver Le Pen enfraquecendo tais figuras. “Seus eleitores não vão às urnas para ajudar a direita tradicional”, disse Camus. “Eles querem algo que a direita tradicional não pode dar a eles — um estado que forneça ainda mais serviços, só que reservados apenas para os franceses.”

O secretário-geral do partido no Parlamento, Renaud Labaye, disse em uma entrevista: “É tudo muito simples. Estamos defendendo os interesses dos franceses e dos nossos eleitores. Estamos defendendo o interesse geral. Os políticos não o defenderam.”

Subjacente a ambos os desejos — mais ordem e mais perturbação — está um sentimento ardente de ressentimento de classe que ficou evidente na jogada para derrubar Barnier. Le Pen e suas forças acreditam que foram tratadas com condescendência e desdém pelo governo de Macron, em qualquer iteração. Normalmente, esses sentimentos nem são disfarçados.

Barnier só se encontrou com Le Pen para o que foi retratado como uma discussão séria cerca de 10 dias antes do voto de desconfiança, disse Philippe Olivier, cunhado e conselheiro de Le Pen, em uma entrevista.

“Ela se reuniu com alguém que disse: ‘Vou explicar meu orçamento para você’. Ele nunca tentou chegar a um acordo, nem por um segundo”, disse Olivier, que também é membro do Parlamento Europeu. “Ele não entendeu que deveria ter sido uma negociação”, acrescentou Olivier.

“Ele nos tomou por escoteiros. Ele nos tratou como se fôssemos nada. Por trás de tudo isso há um desprezo de classe. Mas o tempo de chamar os criados acabou.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

O duelo individual que moldou a vida política francesa por quase uma década aumentou um pouco de intensidade na semana passada, com a líder da direita da França, Marine Le Pen, reivindicando uma grande vitória e alertando que irá atrás de um prêmio maior: o presidente Emmanuel Macron.

Ninguém duvidou que as cartas estavam na mão dela. No entanto, na segunda feira, Macron havia relegado Le Pen e seu partido, o Reagrupamento Nacional, ao status de “pária” — nas palavras dela. Ele não se dignou a se encontrar com Le Pen em sua busca por um novo primeiro-ministro para substituir aquele que ela havia afastado na semana passada.

Líderes de outros partidos tiveram conversas com Macron no palácio presidencial; mas não Le Pen, que foi excluída porque faz parte da “frente anti-republicana” — nas palavras dele.

Isso pode acabar sendo um grande erro. Le Pen anunciou a morte política do infeliz primeiro-ministro, Michel Barnier, no Parlamento; é claro que ele foi derrubado em um voto de desconfiança logo em seguida.

A líder da direita francesa, Marine Le Pen, faz seu discurso na Assembleia Nacional antes do voto de desconfiança que derrubou um primeiro-ministro da França pela primeira vez desde 1962  Foto: Michel Euler/AP

Barnier tentou forçar a aprovação de uma proposta de orçamento sem votação e, acima de tudo, mal consultou Le Pen, que tem o maior bloco de parlamentares e não pode ser ignorada.

Ela sugeriu que sucessivos governos Macron podem ser derrubados, até que ele renuncie — deixando claro que ela está buscando um troféu mais importante: a cabeça do próprio presidente.

Macron mal havia desembarcado do avião da Arábia Saudita quando ela falou. Enquanto os parlamentares confusos ouviam, ela prometeu à França “libertação” de seus problemas, “talvez muito em breve”.

Isso parecia tanto uma promessa quanto uma ameaça. Tudo dependia da decisão de um homem, ela disse, evitando citar o nome de Macron enquanto sugeria que o estava empurrando para a saída. O alvo dela era claro.

“Cabe à pessoa em questão, por si mesma, decidir se deve ficar”, disse ela. “Está na consciência dele determinar se deve sacrificar a política pública e o destino da França em prol de seu próprio orgulho.”

Le Pen então torceu a faca, apelando ironicamente à famosa racionalidade fria de Macron: “Cabe à razão dele decidir se ele pode ignorar a rejeição massiva do povo, que, no caso dele, acredito ser definitiva.”

Macron, no entanto, insistiu que não vai a lugar nenhum. Le Pen, como árbitro do destino político da França, está mais perto do poder do que nunca. Ela efetuou uma transformação extraordinária de seu partido em pouco mais de uma década, substituindo os agentes pós-fascistas grosseiros da era de seu pai, fundador  do partido e antissemita Jean Marie Le Pen, pelos parlamentares de fala mansa e bem-vestidos de hoje.

E ela usou sua sólida base eleitoral — o voto de desconfiança da semana passada teve forte popularidade entre seus eleitores — para elevar a estatura de seu partido e criar uma divisão entre os outros partidos.

O presidente da França, Emmanuel Macron, à direita, encontra-se com o líder do partido centrista francês MoDem (Mouvement Démocrate), François Bayrou, no Palácio do Eliseu, em Paris, França Foto: Ludovic Marin/AP

A pessoa mais responsável por ajudá-la nessa empreitada é ninguém menos que Macron, que moldou sua carreira política em torno do objetivo de mantê-la fora do poder.

Essa foi a lógica por trás de suas duas campanhas presidenciais, em 2017 e 2022 — quando ele era o reduto da democracia liberal contra o ataque da extrema direita — e foi a base para grande parte de seu apoio em ambas as vezes.

“A linha de Emmanuel Macron era: ‘Eu sou a muralha contra Marine Le Pen’”, disse Guillaume Letourneur, especialista no Reagrupamento Nacional no Centro Europeu de Sociologia e Ciência Política. “Seria de se observar que o resultado foi bem fraco.”

Em suas campanhas, Macron conseguiu obter apoio de eleitores de esquerda que normalmente teriam recuado diante de suas políticas pró-negócios porque abominavam Le Pen ainda mais. Ele também teve o apoio de eleitores tradicionais de direita que desdenhavam as origens menos palatáveis do partido de seu pai, agora com 96 anos.

Mas agora Macron foi desacreditado, entre seus próprios eleitores e a esquerda, depois de ter aberto a porta para a pluralidade do  Reagrupamento Nacional na câmara baixa e importante do Parlamento ao convocar desnecessariamente uma eleição antecipada em junho. Ao fazer isso, ele disse que buscava clareza: mas o que a eleição deixou claro foi que os eleitores preferem a extrema direita e a esquerda a ele.

Ainda assim, embora Le Pen tenha dado um golpe de mestre na semana passada, o caminho tampouco está claro para ela. Ela tem que agir rápido, pois a ameaça de um veredito de culpa e uma sentença dura em um julgamento de peculato, potencialmente em 31 de março, paira sobre a política. Ela pode ser desqualificada de concorrer se as recomendações de sentença dos promotores forem mantidas.

“O objetivo é atacar alguém na oposição política”, disse Le Pen na televisão francesa no mês passado. “Estou dizendo aos franceses que a ideia de que eles poderiam ser privados de sua escolha é um ataque muito violento à democracia.”

Mas as evidências contra ela e 24 associados do partido também em julgamento foram fortes, e uma condenação continua sendo uma possibilidade distinta. O testemunho no tribunal deixou poucas dúvidas de que, conforme acusado, o Reagrupamento National usou dinheiro da União Europeia para fins partidários domésticos, uma apropriação indevida de mais de US$ 7 milhões em fundos públicos.

Testemunhas disseram que Le Pen disse a seus subordinados do Parlamento Europeu que uma parte do dinheiro alocado pela UE teria que ir para o partido nacional; documentos judiciais descreveram um “sistema fraudulento” arquitetado pela hierarquia do partido.

Ela está correndo contra o relógio. Mas Le Pen também está operando sob o que o cientista político e especialista em extrema direita Jean-Yves Camus, da Fundação Jean Jaurès, chama de “dupla restrição”. Ela deve parecer aos eleitores “tão normal quanto possível, e também tão perturbadora quanto possível”, disse ele.

Do lado normal, ela desviou do habitual em seu discurso no Parlamento na semana passada para insistir que era a verdadeira defensora não apenas dos valores da França, mas de suas instituições republicanas.

Isso marcou uma diferença notável com a figura de extrema direita com quem ela às vezes é comparada: Trump. Trump pode estar interessado em destruir as instituições do governo; já Le Pen, definitivamente não.

Macron recebe o presidente eleito dos EUA, Donald Trump, em Paris: desafios para o governo francês com cenário mundial em transformação  Foto: Michel Euler/AP

Ela caracterizou Macron como o destruidor de instituições, aquele que “trabalhou incessantemente para derrubar tudo que pôde: o Quai d’Orsay”, o Ministério das Relações Exteriores da França; “as prefeituras”, os governadores locais da França; “a polícia investigativa, o sistema de aposentadoria, o seguro-desemprego, a ferrovia nacional”. A lista de Le Pen era longa.

Seus apoiadores querem mais controle e gestão do estado, não menos, ao contrário de Trump. “Nenhum eleitor de Marine Le Pen quer que, amanhã, o Ministério da Justiça deixe de existir”, disse Camus. “E eles querem mais interferência do Ministério do Interior”.

Do lado perturbador, os “quase onze milhões” — o tamanho do eleitorado do partido na votação mais recente, frequentemente citado pelos membros do Reagrupamento Nacional — não têm interesse em apoiar conservadores tradicionais de centro-direita como o primeiro-ministro deposto, Barnier.

Eles estão ansiosos para ver Le Pen enfraquecendo tais figuras. “Seus eleitores não vão às urnas para ajudar a direita tradicional”, disse Camus. “Eles querem algo que a direita tradicional não pode dar a eles — um estado que forneça ainda mais serviços, só que reservados apenas para os franceses.”

O secretário-geral do partido no Parlamento, Renaud Labaye, disse em uma entrevista: “É tudo muito simples. Estamos defendendo os interesses dos franceses e dos nossos eleitores. Estamos defendendo o interesse geral. Os políticos não o defenderam.”

Subjacente a ambos os desejos — mais ordem e mais perturbação — está um sentimento ardente de ressentimento de classe que ficou evidente na jogada para derrubar Barnier. Le Pen e suas forças acreditam que foram tratadas com condescendência e desdém pelo governo de Macron, em qualquer iteração. Normalmente, esses sentimentos nem são disfarçados.

Barnier só se encontrou com Le Pen para o que foi retratado como uma discussão séria cerca de 10 dias antes do voto de desconfiança, disse Philippe Olivier, cunhado e conselheiro de Le Pen, em uma entrevista.

“Ela se reuniu com alguém que disse: ‘Vou explicar meu orçamento para você’. Ele nunca tentou chegar a um acordo, nem por um segundo”, disse Olivier, que também é membro do Parlamento Europeu. “Ele não entendeu que deveria ter sido uma negociação”, acrescentou Olivier.

“Ele nos tomou por escoteiros. Ele nos tratou como se fôssemos nada. Por trás de tudo isso há um desprezo de classe. Mas o tempo de chamar os criados acabou.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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