ENVIADA ESPECIAL AO RIO - O ministro de relações exteriores do Uruguai, Omar Paganini, assumiu o cargo há exatamente um ano, mesmo mês em que o libertário Javier Milei foi eleito na vizinha Argentina. A defesa do livre comércio é um dos pontos de convergência entre o dois governos agora, diz o chanceler, mas as concordâncias terminam quando o libertário passa a defender o fim completo do Estado.
“Nós somos muito defensores das liberdades. Acreditamos que às vezes o Estado tem que servir para dar às pessoas uma plataforma para ser livre. Contemplar as necessidades básicas que às vezes de outra maneira não se alcança. É uma forma também de dar às pessoas oportunidades para melhorar seu nível de liberdade”, afirmou o ministro em entrevista ao Estadão do hotel em que estava em Copacabana, com vista privilegiada para a orla.
No dia anterior, Milei fez um discurso - pouco aplaudido - na plenária da Cúpula de Líderes do G-20, onde afirmou que não é papel do Estado agir contra a fome. O argentino, em um primeiro momento, criticou a Aliança Global contra a Fome a Pobreza, principal iniciativa do Brasil neste G-20 que foi lançada nas primeiras horas da reunião. Mesmo com objeção, a Argentina aderiu de última hora à iniciativa.
“Temos aí uma diferença, filosófica provavelmente porque, sim, acreditamos que é muito importante a liberdade de empresa e mercado. O mesmo que defende o governo argentino. Mas com este matiz que o nosso presidente expressou em muitas oportunidades. O aspecto de que sim acreditamos em um papel importante do Estado sobretudo para atender aquelas pessoas que estão em situação de muita vulnerabilidade e dar-lhes acesso a coisas que de outra maneira eles não seriam livres”, continuou.
O Uruguai foi um dos países convidados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva a comparecer à cúpula do G-20, embora não pertença ao grupo. Um convite que o ministro celebrou como um sinal de inclusão e abertura do grupo, especialmente aos países latino-americanos.
Confira trechos da entrevista, que foi condensada para melhor compreensão:
Como avalia o acordo final conjunto assinado pelos países do G-20?
Foi um acordo muito bom. O Uruguai apoiou integrar a Aliança contra a Fome e a Pobreza, e acho que o acordo final refletiu bastante o que se conversou na sala. Depois, acho que a discussão sobre a transição para o desenvolvimento sustentável e a transição energética foi muito boa também, e particularmente a convocação do G-20, vieram líderes de primeiro nível de todo o mundo. Então acho que para o que foi este evento foi um sucesso. E a ideia de convidar países que não são do G-20 para participar o torna mais aberto, ouvindo outros pontos de vista, acho que é positivo. Pelo menos é o que os países da América do Sul convidados valorizamos muito, tanto o Paraguai, Bolívia e o Uruguai, é claro. Então acho que foi um evento importante.
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Este acordo foi assinado após muitas negociações e apesar dos embates com a Argentina de Javier Milei, Como avalia o posicionamento do governo argentino na cúpula?
Este governo tem uma posição muito forte sobre alguns temas que eles consideram como restrição de liberdades. Nós em geral temos uma posição um pouco diferente em relação ao da Argentina. Nós somos muito defensores das liberdades. Acreditamos que às vezes o Estado tem que servir para dar às pessoas uma plataforma para ser livre. Contemplar as necessidades básicas que às vezes de outra maneira não se alcança. É uma forma também de dar às pessoas oportunidades para melhorar seu nível de liberdade. E nesse sentido as políticas sociais que possam atender à fome, atender à pobreza, nós as vemos como algo positivo. E temos aí uma diferença filosófica provavelmente porque, sim, acreditamos que é muito importante a liberdade de empresa, a liberdade de mercado. O mesmo que defende o governo argentino. Mas com este matiz que o nosso presidente expressou em muitas oportunidades. O aspecto de que sim acreditamos em um papel importante do Estado sobretudo para atender aquelas pessoas que estão em situação de muita vulnerabilidade e dar-lhes acesso a coisas que de outra maneira eles não seriam livres. Porque ao não ter o que comer não se tem muitas opções mais que pensar em como consegui-lo.
O trecho climático do acordo era uma incerteza, devido a divergências. Para o Uruguai, os termos foram positivos?
Nós estamos convencidos de que temos uma ação conjunta para mitigar as causas da mudança climática e seus efeitos. Estamos em um momento onde evidentemente os desastres naturais de origem climática são muito graves. O Uruguai teve 10 meses de seca no ano passado, há 100 anos que não havia uma seca desse tipo. Mas a região sul andina teve inundações tremendas e estamos a poucos quilômetros. Esses incidentes, obviamente que se deram em todo o mundo, implicam que temos que tomar ação climática e temos que fazê-la de forma concertada. O Uruguai defende essa posição. O Uruguai está além disso muito comprometido com uma transição energética. Já temos a eletricidade de origem renovável quase em 100% ou em 100% em muitíssimos meses, na média de 97%. E queremos dar mais passos. Temos incentivado o transporte elétrico. Queremos desenvolver o hidrogênio verde como caminho para a transição, desde o que chamamos a segunda transição. E nesse sentido acredito que estamos contribuindo com o nosso e apoiando para que o mundo vá nessa direção.
Retornando ao tema Argentina, como tem sido as relações diplomáticas e comerciais neste um ano de governo Milei?
A verdade é que a relação com a Argentina tem sido muito fluida. Desde o início do governo e agora também. Tínhamos muitas dificuldades com a Argentina no governo anterior. Estava muito atrasado o comércio bilateral. Além da distorção cambial enorme que tinha o governo anterior. Tínhamos o problema de que os comerciantes uruguaios da zona de fronteira praticamente não tinham vendas. A população atravessa para o outro lado para comprar. Tínhamos muitas dificuldades para encontrar caminhos de diálogo nestes temas. E depois tínhamos discrepâncias também nos temas relacionados ao Mercosul, onde o governo anterior via uma situação muito mais protecionista da economia. E o Uruguai precisa se abrir ao mundo. Então com este governo nada disso é um problema. E tem que destacar que também vemos, com espírito muito construtivo, o trabalho em melhorar o que é a arquitetura e a conectividade regional, e em particular a hidrovia, em particular os canais no Prata. Sobretudo temos que destacar que a Comissão Administrativa do Prata concordou em permitir que Montevidéu fosse dragada para 14 metros. Nosso porto é um dos ativos mais importantes que o país tem. Conseguir levá-lo para 14 metros nos dá, evidentemente, maior fortaleza para o desenvolvimento futuro. E entendemos que tem sido um gesto muito positivo do governo de Milei aceitar isso que estava há tempo proposto e não se concretizava.
Mesmo agora com a mudança de chanceler e uma guinada mais ideológica das relações exteriores?
A verdade é que não vemos uma mudança de posição. Vemos que do ponto de vista do conceito dos dois países queremos abrir nossas economias e somos muito pragmáticos, os uruguaios, E acredito que Milei neste sentido é também, de buscar as aberturas comerciais que se possam com o Mercosul e se não de forma bilateral ou mesmo em grupos de países. E isso foi proposto em seu momento por [Diana] Mondino. Pelo que venho falando com a administração argentina, continua sendo uma posição. Os sinais que vemos são de continuar nesta ideia de nos abrir ao mundo e que o Mercosul deve ser uma ferramenta para isso.
Aproveitando que citamos o Mercosul, teremos a cúpula do bloco em 5 e 6 de dezembro. Quais são as expectativas?
A cúpula no Uruguai para nós é continuar esta conversa que começamos na reunião de chanceleres que convoquei em agosto e onde este tema foi bastante discutido. Há negociações em andamento, por exemplo com os Emirados Árabes, que tem que prestar contas e com outros países, e está a negociação União Europeia-Mercosul. Uruguai sempre teve a posição favorável a este acordo, mas também vemos como vez após vez aparecem dificuldades, de modo que somos realistas nas expectativas, não queremos ser demasiado otimistas, porque já estamos vendo de novo vozes na Europa, muito fortemente contra o acordo. Espero que possamos chegar a este acordo, mas estamos na expectativa de como termina o assunto, porque vimos reações ontem e anteontem muito fortes por parte do governo da França em particular, mas seria um dos temas que vamos discutir com certeza na cúpula. Ao mesmo tempo há muito trabalho paralelo que se faz sobre temas mais concretos no Mercosul, ou se quiser, não tão visíveis, mas são importantes, por exemplo, há todo um grupo de trabalho que já faz um ano trabalhando sobre melhorar as condições de troca de bens e de pessoas na fronteira, gerar postos integrados de controle de fronteira, alguns estão funcionando, há muitos temas vinculados com normativa mais de detalhe, normas de origem, distintas considerações a respeito de normas Mercosul, que tudo isso segue avançando e na cúpula se presta contas. E vai participar, e isso tem que ser destacado, o Panamá como observador, porque está começando a avançar num convênio, na possibilidade de um acordo de Mercosul com Panamá. Também estivemos reunidos com o governo do Vietnã, que também está interessado em buscar um acordo com o Mercosul, e há outros processos em marcha com a EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre), então tudo isso vai ser prestado contas e se seguirá avançando. Não estamos na etapa de concluir nenhuma dessas coisas, mas sim de começá-las ou de segui-las desenvolvendo.
Ou seja, o Uruguai não acredita que um acordo Mercosul-UE vá acontecer tão cedo?
Vamos ver se não podemos chegar antes de 6 de dezembro a fase de acordo técnico, aí sim acho que é realista pensar que estas rodadas de negociação possam chegar a uma resolução, agora vemos que há problemas políticos, mas espero que passe.
E espera que possam avançar com a discussão de abrir para acordos bilaterais com os países, como vem defendendo Lacalle Pou?
Sim, pensamos que sim. O Uruguai realmente considera que o Mercosul é uma zona de livre comércio, como tal os países estamos habilitados a buscar acordos bilaterais, e é o que estamos fazendo. Mas também é melhor se pudermos avançar todos juntos ou avançar a diferentes velocidades. E isso é o que estava sendo conversado, e bom, se aparecem sobre a mesa opções, é o momento para discuti-las.
Estamos falando de G-20, Mercosul, espaços multilaterais, mas no próximo ano teremos nos Estados Unidos um presidente que é contra o multilateralismo. O Uruguai está preocupado com um retrocesso no sistema multilateral?
Prefiro não especular muito porque às vezes o sistema acaba funcionando e não sei se os Estados Unidos vão ser tão reativos. Prefiro pensar que temos um caminho a percorrer com o multilateralismo. Para países como o Uruguai, que são pequenos, que não têm um grande mercado em si mesmos, nem forças armadas importantes, nem poder em um sentido amplo, é muito importante ter regras do jogo e se basear em um sistema organizado em torno de regras. Tivemos o caso da OMC, que para o Uruguai é muito importante. Vemos que está funcionando cada vez menos porque não há solução de controvérsias. E vemos como no mundo está começando a surgir uma forte onda rumo ao protecionismo. Fala-se de desglobalização, mas na realidade a tecnologia, o transporte e as comunicações nos fizeram encolher o mundo. O mundo hoje está acessível para todos. Então, essa espécie de preocupação em fechar as economias, eu acredito que será temporária e não será positiva para a economia de nenhum país, mas menos ainda para os países pequenos.
Portanto, o Uruguai defende o multilateralismo, também no comércio, mas também o multilateralismo nas relações entre os países, em todos os temas, também nos políticos. Porque pensamos que precisamos nos basear em regras, instituições que possam enfrentá-lo. Problemas que são comuns, como o do clima, que não serão resolvidos pelos países individualmente, podem ser resolvidos em um ambiente conjunto. E sim, vemos o multilateralismo enfraquecido, o que nos preocupa. Pensamos que para uma quantidade muito grande de problemas que a humanidade tem, esse é o único caminho. Haverá possibilidades e é importante manter a autonomia dos países, claro, e respeitar as diferenças e os diferentes enfoques, mas existem áreas onde temos que concordar e, na medida do possível, também prevenir conflitos. Estamos vendo como há um aumento significativo dos conflitos e quem sabe poderíamos fazer uma forma de cessar-fogo, passar para negociações diplomáticas ou que são problemas militares.